segunda-feira, 2 de setembro de 2024
Extrema direita fabrica mito do passado glorioso para avançar agenda reacionária
"Ele é o leão da tribo de Judá", cantava a senhora com a mão direita ao alto e a mão esquerda no microfone. O animal aparecia no manto que ela carregava nos ombros, junto às bandeiras de Israel e do Brasil. "Oh, esperança de Israel", a mulher repetia, entoando os versos de uma canção carimbada nos cultos evangélicos.
Naquele domingo, a reunião não era religiosa. O canto da senhora enchia a esvaziada casa de eventos que abrigou a convenção municipal do PRTB em São Paulo, confirmando a pré-candidatura do influenciador, empresário e ex-coach Pablo Marçal à prefeitura da capital.
Sem o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Marçal ativou símbolos caros para a direita bolsonarista: Deus, família e os perigos do comunismo, das drogas e da "ideologia de gênero". Israel foi mais um deles.
Cinco meses antes, as bandeiras do país judaico haviam tomado as ruas da avenida Paulista, no centro da cidade, em manifestação em defesa de Bolsonaro. Do alto do carro de som, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) pregou que política e religião devem, sim, se misturar, e anunciou que o povo brasileiro é cristão.
Terminou seu discurso com um recado ao Senhor: "Que tua verdadeira shalom esteja dentro dos muros de Israel. Nós abençoamos o Brasil. Nós abençoamos Israel. Em nome de Jesus, amém".
Lá embaixo, na avenida, três senhoras envoltas pela bandeira do país judaico gravaram uma entrevista que viralizaria nas redes. Questionadas por qual motivo usavam o adereço, uma delas respondeu: "Porque somos cristãs, assim como Israel".
A defesa fervorosa de Israel é reflexo da construção de uma gramática judaico-cristã, com o estabelecimento de uma origem em comum —um passado de glória compartilhado. É o que afirma Michel Gherman, professor de sociologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor do livro "O Não Judeu Judeu: A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo".
A história mostra que movimentos fascistas se empenharam na construção do mito de um passado vitorioso para fortalecer a identidade nacional, alavancar valores reacionários e promover mudanças alinhadas com esses valores. No século 21, a extrema direita e a direita populista seguem a mesma estratégia –um de seus instrumentos é a adoração a Israel.
Segundo o professor, a construção deste mito ajuda a ativar alguns símbolos importantes para movimentos reacionários. Primeiro, a imaginada civilização judaico-cristã se afasta dos vínculos com a África. "É o Oriente Médio que se vê como europeu", diz.
Além disso, as referências aos reinos de Salomão e Davi exploram a violência como um elemento positivo, de resistência e reação ao inimigo. "Salomão e Davi como símbolos fundamentais da conquista e da expansão", afirma Gherman.
Ele também menciona o vínculo deste mito com o empreendedorismo, considerando que o reino é independente do Estado. "Tem uma leitura ultraliberal, no sentido da ausência do estado. Tem a presença do rei, que é o representante de Deus."
Mas se engana quem pensa que esse movimento de adoração a Israel é religioso, afirma Gherman. "Você pertence a uma comunidade política que já foi de vencedores. A religião é um detalhe. Não é um discurso religioso. É um discurso de pertencimento a um lugar que tem que ser resgatado", diz.
"A questão do reino de Salomão não é religiosa. É militar, política, expansionista. É um erro a gente achar que está falando de religião. A gente está falando de política."
Em 1922, no mesmo ano em que se tornou primeiro-ministro da Itália, Benito Mussolini discursava no congresso fascista em Nápoles: "Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não precisa ser uma realidade. E a esse mito, a essa grandeza, nós subordinamos tudo".
Dois anos depois, na Alemanha, o principal ideólogo do nacional socialismo, Alfred Rosenberg, escrevia: "A compreensão e o respeito pelo nosso próprio passado mitológico e pela nossa própria história constituirão a primeira condição para ancorar mais firmemente a próxima geração no solo da pátria original da Europa".
As duas falas são lembradas no primeiro capítulo do livro "Como Funciona o Fascismo", de Jason Stanley, professor de filosofia na Universidade Yale (EUA). Nele, o autor argumenta que o fascismo tem um objetivo claro ao invocar o mito de um passado puro, que foi tragicamente destruído pelos progressistas, pelo liberalismo e pelo globalismo. É na criação desse sentimento de nostalgia que os fascistas vão tentar realizar seus ideais no tempo em que vivem.
"A cultura fascista está centrada em torno de alguns mitos, e o maior deles é o de um passado patriarcal, no qual a nação era ótima, e que agora está sendo destruído pelo liberalismo. Está sendo destruído pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQ. [Grupos] que desafiam as bases dessa nação e dessa civilização", diz Stanley à Folha.
O professor defende que o nazismo estava fundamentado no que hoje se chama de teoria da Grande Substituição –a ideia conspiratória de que existe um plano das elites globais para substituir cidadãos brancos por imigrantes não brancos.
"[Para os nazistas] A Alemanha era ótima, mas então foi humilhada pela Primeira Guerra Mundial, e eles passaram a ser humilhados pela imigração. [A ideia nazista era que] Os judeus fizeram com que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra. Que eles eram traidores que tinham esfaqueado a Alemanha pelas costas. E que passaram a abrir as fronteiras para trazer imigrantes e derrubar a raça branca, a raça ariana. [Para os nazistas] Então você precisava que Hitler parasse a destruição da nação", afirma Stanley.
Se no século 20 o fascismo acusava os judeus de terem destruído o passado de glória, nos tempos atuais ganha corpo entre a extrema direita um filossemitismo deturpado, que submete os judeus a um determinado passado mítico.
"O que acontecia no fascismo histórico é que tinha um grupo muito importante na Europa que não tinha passado, ou que o passado era não europeu. Um passado desconhecido, de traição, de não reconhecimento do verdadeiro Deus", diz Gherman.
Hoje, o professor continua, o passado ideal para a extrema direita não é mais, como no século 20, referente aos bárbaros arianos ou ao Império Romano. "A novidade é um elemento fundamentador desse passado: o reino de Salomão, o reino de Judá."
Agora, ele argumenta, cria-se a ideia de um passado compartilhado, uma origem comum entre cristãos e judeus em um reino glorioso, de grandes conquistas, anterior a Cristo, no território israelense.
"Em vez de você perseguir um judeu sem passado, o que você faz agora é impor aos judeus um passado: o passado do reino. Os judeus existem para dar à luz a esse passado do reino de Salomão", diz Gherman. "Esse modelo de passado vai ser compartilhado por todos da extrema direita. É isso que eu chamo de judeu imaginário."
Apesar da construção desse passado comum com os cristãos, nem todo judeu agrada ao grupo, afirma o professor. Apenas aquele visto como descendente do reino.
"Você nunca vai ver, por exemplo, nas lógicas desse judeu imaginário, o judeu moderno. Nunca vai ver um judeu secular, um judeu progressista", diz. "Não é que eles deixaram de ser antissemitas. Eles refundam o antissemitismo, que passa a ser vinculado a um tipo de judeu e não a todos os judeus."
Gherman faz uma analogia para explicar por que é efetiva a construção do passado mítico pela extrema direita. "Eu sempre brinco com a ideia de que todo mundo que vai fazer visita a vidas passadas acaba descobrindo que era rainha, rei, descendente de um grande assessor do rei. Ninguém é simplesmente um operário, um camponês", diz. "É mais ou menos isso que a extrema direita vende, que você é descendente de uma raça gloriosa."
O professor lembra que a moeda do fascismo para reunir seguidores era vender a ideia do pertencimento a um grupo que foi soberano no passado. "Se eu pudesse resumir o que a extrema direita pensa em relação ao presente, passado e futuro, é essa ideia de que no passado você tinha alguma coisa muito importante. E que o progresso e a expansão dos direitos destituíram você dessa importância."
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, é um dos líderes da extrema direita mundial que entenderam e se aproveitam da utilidade do mito do passado glorioso.
Ele frequentemente se refere à bacia dos Cárpatos como uma terra de origem comum de todos os húngaros, dissolvida com o Tratado de Trianon, firmado após a derrota na Primeira Guerra. Mais de 100 anos depois, Orbán insufla na população o ressentimento com o tratado, que, segundo o governo, fez com que a Hungria perdesse dois terços de seu território e 3 milhões de habitantes.
Assim, o país sai como vítima de grandes potências do Ocidente. No passado, dos vencedores da guerra; hoje, da União Europeia, que alerta para o desmonte da democracia húngara e, por isso, é desafiada por Orbán.
As referências à bacia original do povo húngaro e às ameaças enfrentadas ao longo dos séculos sobre o território servem como sustentação para o nacionalismo cristão, ideologia que norteia as práticas do governo. Desde que assumiu em 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, Orbán aprovou uma série de leis antiimigração e construiu um muro na fronteira com a Sérvia em 2015.
Em discurso em 2021, por exemplo, o primeiro-ministro afirmou que a missão dos húngaros por séculos foi defender a bacia dos Cárpatos contra a ocupação do Império Otomano, a superpotência muçulmana que durou mais de 500 anos.
Na ocasião, Orbán defendeu que a proteção do território e do cristianismo diante da ascensão do mundo muçulmano na Idade Média, da ocupação nazista, da ocupação soviética e da natureza anticristã dos anos de comunismo na Hungria se transformou em uma grande missão de importância nacional e europeia.
László Kövér, um deputado húngaro aliado do primeiro-ministro, foi mais direto ao relacionar o passado mítico com a defesa atual da ideologia nacionalista cristã. Segundo a Radio Free Europe, ao comparar o êxodo populacional pós-Trianon com a crise migratória contemporânea na Europa, Kover afirmou que houve um intercâmbio populacional planejado disfarçado de migração ilegal —acenando para a teoria conspiratória da Grande Substituição.
"Em 1920, nós, húngaros, fomos atacados por potências europeias e grupos de interesse fora da bacia dos Cárpatos. Mas, hoje em dia, potências estrangeiras e grupos de interesse fora do continente estão atacando e destruindo a Europa.... O que é isso, se não a Europa marchando em direção ao seu próprio Trianon?", disse ele.
Assim como fez a gestão Bolsonaro, com a qual firmou estreitos laços, o governo Orbán também adota uma visão sobre o gênero ligada a um passado patriarcal, prática central nas experiências fascistas.
No livro "Como Funciona o Fascismo", o professor Jason Stanley argumenta que a defesa do passado patriarcal também representa a defesa do conceito de hierarquia, necessário para a manutenção da própria forma de governo autoritária.
"Em uma sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai na família patriarcal tradicional. O líder é o pai de sua nação, e sua força e seu poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e o poder do pai de família no patriarcado devem ser a fonte de sua autoridade moral máxima sobre seus filhos e esposa", escreve o professor. "Ao representar o passado da nação como um passado com uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia a uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central."
Na Constituição aprovada a toque de caixa depois que Orbán chegou ao poder, o Parlamento governista determinou que o casamento é a união de um homem com uma mulher, e que a família é a base da sobrevivência de uma nação.
Em setembro de 2022, o governo Orbán baixou um decreto obrigando mulheres grávidas que buscam aborto a primeiro obter relatório de um médico dizendo que elas foram confrontadas de forma clara com sinais de vida do feto —ou seja, que ouviram o batimento cardíaco.
O governo também aprovou políticas públicas para encorajar as famílias heterossexuais a terem filhos.
Se no nazismo mulheres eram estimuladas a procriar para aumentar o que se entendia como a população ariana, na Hungria de Orbán esse incentivo se dá em meio à crise demográfica do país e receios de que os imigrantes possam substituir os brancos europeus como maioria da população.
"[A ideia da extrema direita é que] Imigrantes estão vindo e tornando o país não branco, no caso dos Estados Unidos, e não ariano, no caso da Alemanha [nazista]. Então as mulheres precisam ter mais bebês para restaurar a nação", afirma Stanley.
Os acenos ao passado glorioso funcionam especialmente em um momento global de crise democrática, com os percalços das democracias liberais e capitalistas que, encaradas como o modelo político ideal e definitivo após a queda do Muro de Berlim, hoje não conseguem responder aos anseios de boa parte dos cidadãos.
"Grande parte da população em países democráticos está pessimista em relação ao futuro", afirma à Folha Benjamin Teitelbaum, autor de "Guerra Pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista". "Cada vez mais eles rejeitam a promessa da democracia liberal de que a vida vai melhorar, de que a passagem do tempo equivale a uma vida melhor. Muita gente não acredita mais nisso. Então é poderoso, politicamente, usar esse sentimento."
É desse sentimento que nasce o slogan do ex-presidente Donald Trump, o "Make America Great Again" (na tradução livre, algo como "Torne a América Grande Novamente"). "Essa frase pertence a uma visão reacionária do passado. É notável por quão pouco ela diz. A frase não diz o que é tão bom sobre a América. Não há conteúdo para o conceito de grandeza. O que importa é a filosofia do tempo que está embutida nessas quatro palavras", diz o autor.
Conselheiro número 1 de Trump, Steve Bannon tem uma visão singular sobre o passado, na qual Teitelbaum mergulhou para escrever seu livro. Após mais de 20 horas de gravação com Bannon, ele afirma que o estrategista político, como também Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, é um seguidor do tradicionalismo.
Assim como os fascistas, os tradicionalistas condenam o presente. Há, porém, uma cisão importante entre os dois movimentos. Enquanto os primeiros acreditam que poderiam recuperar o passado e criar uma nova realidade ainda superior, os segundos avaliam que nada será melhor do que já foi.
"[Para os tradicionalistas] O caminho para retornar ao que era tão bom sobre o passado é por meio da destruição. Não é uma ideologia de criação, de futurismo. É mais sobre deixar a modernidade se esgotar, tentando derrubar todas as instituições da modernidade com a crença de que no seu lugar o passado dourado vai ressurgir", afirma Teitelbaum.
Outro movimento de franja de exaltação do passado é o localismo —uma visão antiglobalista, antiliberal e nostálgica que defende que as pessoas deveriam voltar a viver em comunidades pequenas e unidas, centradas nas famílias. Entre seus defensores, estão o escritor conservador e católico Rod Dreher, que vive na Hungria e é um grande entusiasta de Orbán, e o professor, também católico, Patrick Deneen, autor do livro "Por que o Liberalismo Fracassou".
Os dois já foram citados como influências intelectuais pelo senador J.D. Vance, escolhido para a vice de Trump, novamente em busca da Presidência.
A extrema direita e a direita populista sofreram reveses nos últimos anos, com derrotas importantes, como a de Trump em 2020 e a de Bolsonaro em 2022.
A vertente populista, porém, segue em cena —em junho, a ultradireita nacionalista teve avanços significativos no Parlamento Europeu e, no mês seguinte, assombrou a eleição na França, embora não tenha vencido. Em novembro, Trump tentará voltar à cadeira presidencial. Não só o presente ainda continuará em disputa: o passado também.
Ana Luiza Albuquerque
Naquele domingo, a reunião não era religiosa. O canto da senhora enchia a esvaziada casa de eventos que abrigou a convenção municipal do PRTB em São Paulo, confirmando a pré-candidatura do influenciador, empresário e ex-coach Pablo Marçal à prefeitura da capital.
Sem o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Marçal ativou símbolos caros para a direita bolsonarista: Deus, família e os perigos do comunismo, das drogas e da "ideologia de gênero". Israel foi mais um deles.
Cinco meses antes, as bandeiras do país judaico haviam tomado as ruas da avenida Paulista, no centro da cidade, em manifestação em defesa de Bolsonaro. Do alto do carro de som, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) pregou que política e religião devem, sim, se misturar, e anunciou que o povo brasileiro é cristão.
Terminou seu discurso com um recado ao Senhor: "Que tua verdadeira shalom esteja dentro dos muros de Israel. Nós abençoamos o Brasil. Nós abençoamos Israel. Em nome de Jesus, amém".
Lá embaixo, na avenida, três senhoras envoltas pela bandeira do país judaico gravaram uma entrevista que viralizaria nas redes. Questionadas por qual motivo usavam o adereço, uma delas respondeu: "Porque somos cristãs, assim como Israel".
A defesa fervorosa de Israel é reflexo da construção de uma gramática judaico-cristã, com o estabelecimento de uma origem em comum —um passado de glória compartilhado. É o que afirma Michel Gherman, professor de sociologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor do livro "O Não Judeu Judeu: A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo".
A história mostra que movimentos fascistas se empenharam na construção do mito de um passado vitorioso para fortalecer a identidade nacional, alavancar valores reacionários e promover mudanças alinhadas com esses valores. No século 21, a extrema direita e a direita populista seguem a mesma estratégia –um de seus instrumentos é a adoração a Israel.
Segundo o professor, a construção deste mito ajuda a ativar alguns símbolos importantes para movimentos reacionários. Primeiro, a imaginada civilização judaico-cristã se afasta dos vínculos com a África. "É o Oriente Médio que se vê como europeu", diz.
Além disso, as referências aos reinos de Salomão e Davi exploram a violência como um elemento positivo, de resistência e reação ao inimigo. "Salomão e Davi como símbolos fundamentais da conquista e da expansão", afirma Gherman.
Ele também menciona o vínculo deste mito com o empreendedorismo, considerando que o reino é independente do Estado. "Tem uma leitura ultraliberal, no sentido da ausência do estado. Tem a presença do rei, que é o representante de Deus."
Mas se engana quem pensa que esse movimento de adoração a Israel é religioso, afirma Gherman. "Você pertence a uma comunidade política que já foi de vencedores. A religião é um detalhe. Não é um discurso religioso. É um discurso de pertencimento a um lugar que tem que ser resgatado", diz.
"A questão do reino de Salomão não é religiosa. É militar, política, expansionista. É um erro a gente achar que está falando de religião. A gente está falando de política."
Em 1922, no mesmo ano em que se tornou primeiro-ministro da Itália, Benito Mussolini discursava no congresso fascista em Nápoles: "Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não precisa ser uma realidade. E a esse mito, a essa grandeza, nós subordinamos tudo".
Dois anos depois, na Alemanha, o principal ideólogo do nacional socialismo, Alfred Rosenberg, escrevia: "A compreensão e o respeito pelo nosso próprio passado mitológico e pela nossa própria história constituirão a primeira condição para ancorar mais firmemente a próxima geração no solo da pátria original da Europa".
As duas falas são lembradas no primeiro capítulo do livro "Como Funciona o Fascismo", de Jason Stanley, professor de filosofia na Universidade Yale (EUA). Nele, o autor argumenta que o fascismo tem um objetivo claro ao invocar o mito de um passado puro, que foi tragicamente destruído pelos progressistas, pelo liberalismo e pelo globalismo. É na criação desse sentimento de nostalgia que os fascistas vão tentar realizar seus ideais no tempo em que vivem.
"A cultura fascista está centrada em torno de alguns mitos, e o maior deles é o de um passado patriarcal, no qual a nação era ótima, e que agora está sendo destruído pelo liberalismo. Está sendo destruído pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQ. [Grupos] que desafiam as bases dessa nação e dessa civilização", diz Stanley à Folha.
O professor defende que o nazismo estava fundamentado no que hoje se chama de teoria da Grande Substituição –a ideia conspiratória de que existe um plano das elites globais para substituir cidadãos brancos por imigrantes não brancos.
"[Para os nazistas] A Alemanha era ótima, mas então foi humilhada pela Primeira Guerra Mundial, e eles passaram a ser humilhados pela imigração. [A ideia nazista era que] Os judeus fizeram com que a Alemanha perdesse a Primeira Guerra. Que eles eram traidores que tinham esfaqueado a Alemanha pelas costas. E que passaram a abrir as fronteiras para trazer imigrantes e derrubar a raça branca, a raça ariana. [Para os nazistas] Então você precisava que Hitler parasse a destruição da nação", afirma Stanley.
Se no século 20 o fascismo acusava os judeus de terem destruído o passado de glória, nos tempos atuais ganha corpo entre a extrema direita um filossemitismo deturpado, que submete os judeus a um determinado passado mítico.
"O que acontecia no fascismo histórico é que tinha um grupo muito importante na Europa que não tinha passado, ou que o passado era não europeu. Um passado desconhecido, de traição, de não reconhecimento do verdadeiro Deus", diz Gherman.
Hoje, o professor continua, o passado ideal para a extrema direita não é mais, como no século 20, referente aos bárbaros arianos ou ao Império Romano. "A novidade é um elemento fundamentador desse passado: o reino de Salomão, o reino de Judá."
Agora, ele argumenta, cria-se a ideia de um passado compartilhado, uma origem comum entre cristãos e judeus em um reino glorioso, de grandes conquistas, anterior a Cristo, no território israelense.
"Em vez de você perseguir um judeu sem passado, o que você faz agora é impor aos judeus um passado: o passado do reino. Os judeus existem para dar à luz a esse passado do reino de Salomão", diz Gherman. "Esse modelo de passado vai ser compartilhado por todos da extrema direita. É isso que eu chamo de judeu imaginário."
Apesar da construção desse passado comum com os cristãos, nem todo judeu agrada ao grupo, afirma o professor. Apenas aquele visto como descendente do reino.
"Você nunca vai ver, por exemplo, nas lógicas desse judeu imaginário, o judeu moderno. Nunca vai ver um judeu secular, um judeu progressista", diz. "Não é que eles deixaram de ser antissemitas. Eles refundam o antissemitismo, que passa a ser vinculado a um tipo de judeu e não a todos os judeus."
Gherman faz uma analogia para explicar por que é efetiva a construção do passado mítico pela extrema direita. "Eu sempre brinco com a ideia de que todo mundo que vai fazer visita a vidas passadas acaba descobrindo que era rainha, rei, descendente de um grande assessor do rei. Ninguém é simplesmente um operário, um camponês", diz. "É mais ou menos isso que a extrema direita vende, que você é descendente de uma raça gloriosa."
O professor lembra que a moeda do fascismo para reunir seguidores era vender a ideia do pertencimento a um grupo que foi soberano no passado. "Se eu pudesse resumir o que a extrema direita pensa em relação ao presente, passado e futuro, é essa ideia de que no passado você tinha alguma coisa muito importante. E que o progresso e a expansão dos direitos destituíram você dessa importância."
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, é um dos líderes da extrema direita mundial que entenderam e se aproveitam da utilidade do mito do passado glorioso.
Ele frequentemente se refere à bacia dos Cárpatos como uma terra de origem comum de todos os húngaros, dissolvida com o Tratado de Trianon, firmado após a derrota na Primeira Guerra. Mais de 100 anos depois, Orbán insufla na população o ressentimento com o tratado, que, segundo o governo, fez com que a Hungria perdesse dois terços de seu território e 3 milhões de habitantes.
Assim, o país sai como vítima de grandes potências do Ocidente. No passado, dos vencedores da guerra; hoje, da União Europeia, que alerta para o desmonte da democracia húngara e, por isso, é desafiada por Orbán.
As referências à bacia original do povo húngaro e às ameaças enfrentadas ao longo dos séculos sobre o território servem como sustentação para o nacionalismo cristão, ideologia que norteia as práticas do governo. Desde que assumiu em 2010 com uma maioria de dois terços do Parlamento, Orbán aprovou uma série de leis antiimigração e construiu um muro na fronteira com a Sérvia em 2015.
Em discurso em 2021, por exemplo, o primeiro-ministro afirmou que a missão dos húngaros por séculos foi defender a bacia dos Cárpatos contra a ocupação do Império Otomano, a superpotência muçulmana que durou mais de 500 anos.
Na ocasião, Orbán defendeu que a proteção do território e do cristianismo diante da ascensão do mundo muçulmano na Idade Média, da ocupação nazista, da ocupação soviética e da natureza anticristã dos anos de comunismo na Hungria se transformou em uma grande missão de importância nacional e europeia.
László Kövér, um deputado húngaro aliado do primeiro-ministro, foi mais direto ao relacionar o passado mítico com a defesa atual da ideologia nacionalista cristã. Segundo a Radio Free Europe, ao comparar o êxodo populacional pós-Trianon com a crise migratória contemporânea na Europa, Kover afirmou que houve um intercâmbio populacional planejado disfarçado de migração ilegal —acenando para a teoria conspiratória da Grande Substituição.
"Em 1920, nós, húngaros, fomos atacados por potências europeias e grupos de interesse fora da bacia dos Cárpatos. Mas, hoje em dia, potências estrangeiras e grupos de interesse fora do continente estão atacando e destruindo a Europa.... O que é isso, se não a Europa marchando em direção ao seu próprio Trianon?", disse ele.
Assim como fez a gestão Bolsonaro, com a qual firmou estreitos laços, o governo Orbán também adota uma visão sobre o gênero ligada a um passado patriarcal, prática central nas experiências fascistas.
No livro "Como Funciona o Fascismo", o professor Jason Stanley argumenta que a defesa do passado patriarcal também representa a defesa do conceito de hierarquia, necessário para a manutenção da própria forma de governo autoritária.
"Em uma sociedade fascista, o líder da nação é análogo ao pai na família patriarcal tradicional. O líder é o pai de sua nação, e sua força e seu poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e o poder do pai de família no patriarcado devem ser a fonte de sua autoridade moral máxima sobre seus filhos e esposa", escreve o professor. "Ao representar o passado da nação como um passado com uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia a uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central."
Na Constituição aprovada a toque de caixa depois que Orbán chegou ao poder, o Parlamento governista determinou que o casamento é a união de um homem com uma mulher, e que a família é a base da sobrevivência de uma nação.
Em setembro de 2022, o governo Orbán baixou um decreto obrigando mulheres grávidas que buscam aborto a primeiro obter relatório de um médico dizendo que elas foram confrontadas de forma clara com sinais de vida do feto —ou seja, que ouviram o batimento cardíaco.
O governo também aprovou políticas públicas para encorajar as famílias heterossexuais a terem filhos.
Se no nazismo mulheres eram estimuladas a procriar para aumentar o que se entendia como a população ariana, na Hungria de Orbán esse incentivo se dá em meio à crise demográfica do país e receios de que os imigrantes possam substituir os brancos europeus como maioria da população.
"[A ideia da extrema direita é que] Imigrantes estão vindo e tornando o país não branco, no caso dos Estados Unidos, e não ariano, no caso da Alemanha [nazista]. Então as mulheres precisam ter mais bebês para restaurar a nação", afirma Stanley.
Os acenos ao passado glorioso funcionam especialmente em um momento global de crise democrática, com os percalços das democracias liberais e capitalistas que, encaradas como o modelo político ideal e definitivo após a queda do Muro de Berlim, hoje não conseguem responder aos anseios de boa parte dos cidadãos.
"Grande parte da população em países democráticos está pessimista em relação ao futuro", afirma à Folha Benjamin Teitelbaum, autor de "Guerra Pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista". "Cada vez mais eles rejeitam a promessa da democracia liberal de que a vida vai melhorar, de que a passagem do tempo equivale a uma vida melhor. Muita gente não acredita mais nisso. Então é poderoso, politicamente, usar esse sentimento."
É desse sentimento que nasce o slogan do ex-presidente Donald Trump, o "Make America Great Again" (na tradução livre, algo como "Torne a América Grande Novamente"). "Essa frase pertence a uma visão reacionária do passado. É notável por quão pouco ela diz. A frase não diz o que é tão bom sobre a América. Não há conteúdo para o conceito de grandeza. O que importa é a filosofia do tempo que está embutida nessas quatro palavras", diz o autor.
Conselheiro número 1 de Trump, Steve Bannon tem uma visão singular sobre o passado, na qual Teitelbaum mergulhou para escrever seu livro. Após mais de 20 horas de gravação com Bannon, ele afirma que o estrategista político, como também Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, é um seguidor do tradicionalismo.
Assim como os fascistas, os tradicionalistas condenam o presente. Há, porém, uma cisão importante entre os dois movimentos. Enquanto os primeiros acreditam que poderiam recuperar o passado e criar uma nova realidade ainda superior, os segundos avaliam que nada será melhor do que já foi.
"[Para os tradicionalistas] O caminho para retornar ao que era tão bom sobre o passado é por meio da destruição. Não é uma ideologia de criação, de futurismo. É mais sobre deixar a modernidade se esgotar, tentando derrubar todas as instituições da modernidade com a crença de que no seu lugar o passado dourado vai ressurgir", afirma Teitelbaum.
Outro movimento de franja de exaltação do passado é o localismo —uma visão antiglobalista, antiliberal e nostálgica que defende que as pessoas deveriam voltar a viver em comunidades pequenas e unidas, centradas nas famílias. Entre seus defensores, estão o escritor conservador e católico Rod Dreher, que vive na Hungria e é um grande entusiasta de Orbán, e o professor, também católico, Patrick Deneen, autor do livro "Por que o Liberalismo Fracassou".
Os dois já foram citados como influências intelectuais pelo senador J.D. Vance, escolhido para a vice de Trump, novamente em busca da Presidência.
A extrema direita e a direita populista sofreram reveses nos últimos anos, com derrotas importantes, como a de Trump em 2020 e a de Bolsonaro em 2022.
A vertente populista, porém, segue em cena —em junho, a ultradireita nacionalista teve avanços significativos no Parlamento Europeu e, no mês seguinte, assombrou a eleição na França, embora não tenha vencido. Em novembro, Trump tentará voltar à cadeira presidencial. Não só o presente ainda continuará em disputa: o passado também.
Ana Luiza Albuquerque
Terra envenenada
Está envenenada a terra que nos enterra ou desterra.
Já não há ar, só desar.
Já não há chuva, só chuva ácida.
Vista do crepúsculo no final do século
Já não há parques, só parkings.
Já não há sociedades, só sociedades anónimas.
Empresas em lugar de nações.
Consumidores em lugar de cidadãos.
Aglomerações em lugar de cidades.
Não há pessoas. Só públicos.
Não há visões. Só televisões.
Para elogiar uma flor, diz-se: "parece de plástico".
Já não há ar, só desar.
Já não há chuva, só chuva ácida.
Vista do crepúsculo no final do século
Já não há parques, só parkings.
Já não há sociedades, só sociedades anónimas.
Empresas em lugar de nações.
Consumidores em lugar de cidadãos.
Aglomerações em lugar de cidades.
Não há pessoas. Só públicos.
Não há visões. Só televisões.
Para elogiar uma flor, diz-se: "parece de plástico".
Eduardo Galeano
Fogo dá dinheiro
O proprietário faz a queimada, não é responsabilizado nas esferas civil e criminal e ainda consegue acesso a crédito rural a taxas mais baixas que as de mercado,.Thais Banwart, porta-voz de Florestas do Greenpeace Brasil
O futuro é idiota
Ao pedir desculpas por sua postura na campanha pela prefeitura da maior metrópole brasileira, Pablo Marçal oferece uma via de compreensão da atualidade política. Admite ter-se comportado como idiota com o objetivo, vitorioso, de subir nas pesquisas. Sua retratação não é mudança de atitude, mas retrato de uma estratégia: idiotia como caminho para o poder.
Não é demais remontar à origem da palavra. "Idiotes", na Polis grega, eram aqueles centrados em negócios privados, alheios à vida pública, que interessava aos "politikós". Os significados atuais das duas palavras derivam dessa oposição. Mas se tornou pesado o atributo de idiota, pois implica ignorância, estreiteza mental e desconexão com o mundo.
Entre nós, por semeadura de Bolsonaro ou fatalismo fonológico, a bilabial oclusiva "b" tem sido marca subliminar de palavras associadas ao destrambelho mental: bobo, besteirol, baixarias. Às vezes, na televisão, BBB, senão em pilares do atraso parlamentar, como Bala, Bíblia e Boi. O B de Bozo se esvaziou, perdeu eco, mas o oco fica à espera de que alguém o preencha. De idiotia renovada.
É que a mistificação idiotizada tem lógica própria: num determinado formato, o vazio de sentido é preenchido, como numa casca de noz, por significações secundárias, alheias ao original e, no entanto, funcionais. Acontece na propaganda, na tevê popularesca e no populismo das redes sociais. Quase uma segunda linguagem, de trânsito fácil na esfera dos "idiotes". Multidões participam à distância de um reality show.
Influenciador é um desdobramento desse infradiscurso. Agente de mídia com efeito na realidade, à cata de bode expiatório para a culpa inconsciente que cada um carrega, dispensa ideias, como um camelô de fantasias de imunidade a todos os males. Transposto para o vácuo da política, ele acena com o que chama de antissistema: esculacho dos políticos, transformação de defeitos em virtudes, liberdade de empreender, até o crime. Surpresos com a reação pública à sua "liberdade", os delinquentes do 8 de janeiro, civis e militares, julgavam-se empreendedores de patriotismo. De normalização do crime, na verdade.
Marçal garante que, com Deus, celular e rede social, todos podem empreender. Ficou conhecido ao vender a 30 pessoas um curso de como "superar a vida e tornar-se um vencedor": com ele à frente, escalariam o pico mais difícil da Mantiqueira. Terminaram, claro, resgatados às pressas por bombeiros. Mas, na retórica da xaropada, vexame é corda de alpinista na capitalização da idiotia. Dependurado, ele calcula que a Prefeitura de São Paulo seja o sopé de um novo pico, a Presidência da República. Um coach de inovadora ciência política: idoneidade não atrai eleitores, voto não é selo de verdade, o futuro é idiota.
Não é demais remontar à origem da palavra. "Idiotes", na Polis grega, eram aqueles centrados em negócios privados, alheios à vida pública, que interessava aos "politikós". Os significados atuais das duas palavras derivam dessa oposição. Mas se tornou pesado o atributo de idiota, pois implica ignorância, estreiteza mental e desconexão com o mundo.
Entre nós, por semeadura de Bolsonaro ou fatalismo fonológico, a bilabial oclusiva "b" tem sido marca subliminar de palavras associadas ao destrambelho mental: bobo, besteirol, baixarias. Às vezes, na televisão, BBB, senão em pilares do atraso parlamentar, como Bala, Bíblia e Boi. O B de Bozo se esvaziou, perdeu eco, mas o oco fica à espera de que alguém o preencha. De idiotia renovada.
É que a mistificação idiotizada tem lógica própria: num determinado formato, o vazio de sentido é preenchido, como numa casca de noz, por significações secundárias, alheias ao original e, no entanto, funcionais. Acontece na propaganda, na tevê popularesca e no populismo das redes sociais. Quase uma segunda linguagem, de trânsito fácil na esfera dos "idiotes". Multidões participam à distância de um reality show.
Influenciador é um desdobramento desse infradiscurso. Agente de mídia com efeito na realidade, à cata de bode expiatório para a culpa inconsciente que cada um carrega, dispensa ideias, como um camelô de fantasias de imunidade a todos os males. Transposto para o vácuo da política, ele acena com o que chama de antissistema: esculacho dos políticos, transformação de defeitos em virtudes, liberdade de empreender, até o crime. Surpresos com a reação pública à sua "liberdade", os delinquentes do 8 de janeiro, civis e militares, julgavam-se empreendedores de patriotismo. De normalização do crime, na verdade.
Marçal garante que, com Deus, celular e rede social, todos podem empreender. Ficou conhecido ao vender a 30 pessoas um curso de como "superar a vida e tornar-se um vencedor": com ele à frente, escalariam o pico mais difícil da Mantiqueira. Terminaram, claro, resgatados às pressas por bombeiros. Mas, na retórica da xaropada, vexame é corda de alpinista na capitalização da idiotia. Dependurado, ele calcula que a Prefeitura de São Paulo seja o sopé de um novo pico, a Presidência da República. Um coach de inovadora ciência política: idoneidade não atrai eleitores, voto não é selo de verdade, o futuro é idiota.
Entre a infância do brincar e do celular
Na era da informação abundante e veloz, a gente se sente quase que obrigado a ter opinião e falar sobre os mais diversificados e complexos temas. Uma tolice. Claro que há uma diferença conceitual entre informação e conhecimento. Mas, em qualquer hipótese, minha ignorância é tamanha que somente a curiosidade justifica escrever dois dedos de prosa.
No caso, foi o impacto da leitura “ansiosa” (sem pretensão de trocadilho) do livro de autoria do escritor, pesquisador, psicólogo social norte-americano, Jonathan Haidt , A geração ansiosa – Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (Companhia das Letras. Julho de 2024).
Haidt, autor de A mente moralista (2020) e A hipótese da felicidade: encontrando a verdade moderna na sabedoria antiga (2022) diz, na introdução Crescendo em Marte: “Este livro conta a história da geração nascida depois de 1995, popularmente conhecida como geração Z, aquela que se segue aos millennials (nascidos entre 1981 e 1995)”.
Embora reconheça as divergências dos recortes temporais (ele próprio admite 1996 e menciona referências, segundo as quais, crianças nascidas depois de 2010 já fazem parte da geração alfa), o autor utiliza o critério das mudanças tecnológicas ao afirmar: “As pessoas mais velhas da geração Z entraram na puberdade por volta de 2009 quando várias tendências tecnológicas convergiram: a rápida expansão da banda larga na década de 2000, a chegada do iPhone em 2007 e a nova era de redes hiperviralizadas – iniciada em 2009 com os botões de ‘curtir’, e ‘compartilhar (ou ‘retuitar’) que transformaram a dinâmica social do mundo online”.
Mais adiante, acrescenta que a geração Z passou pela puberdade com um portal no bolso “que os afastava das pessoas próximas e os atraía para um universo alternativo empolgante, viciante, instável e – como vou mostrar – inadequado a crianças e adolescentes”. A partir dessa constatação, o autor se reporta aos dois conceitos centrais da sua obra: “a infância baseada no brincar” que, no fim dos anos 1980, transitou para uma “infância baseada no celular”, transição concluída em meados da década de 2010.
Curiosamente, o projeto original do livro tinha como objetivo avaliar os efeitos nocivos das redes sociais à democracia nos Estado Unidos. No entanto, Haidt percebeu que estava diante de desafio muito maior do que uma história das redes sociais, mas “uma história da transformação radical da infância em algo não humano: uma existência baseada no celular”.
Neste sentido, o livro está dividido em quatro partes: I. A onda gigante; II. O pano de fundo: o declínio da infância baseada no brincar; III. A grande reconfiguração: a ascensão da infância baseada no celular; IV. Ações coletivas para uma infância mais saudável.
A obra percorre um caminho longo, denso, ancorado em pesquisas, na abordagem teórica de cientista social, professor e na condição de pai de dois adolescentes, condição esta que levou o autor assumir o papel de expor a alarmante progressão dos transtornos mentais em meninos e meninas bem como assumir o risco de defender propostas para enfrentar a gravidade do problema.
De modo a caber nos estreitos limites de um artigo, segue-se o esforço de síntese pautado nos quatro prejuízos fundamentais por conta do uso desmedido das redes sociais pela geração Z: privação social, privação de sono, atenção fragmentada e vício. Os dados referentes à crescente tendência dos transtornos mentais (ansiedade, depressão, TDAH, bipolaridade, anorexia, abuso de substâncias viciantes, esquizofrenia), em universitários americanos (FONTE; American College Health Association), é assustadora.
Porém, não se trata de um fenômeno localizado. Está disseminado mundo afora e dentro de nossas famílias. Mesmo reconhecendo controvérsias e erros, o autor propõe “quatro reformas tão importantes e em que tenho tamanha confiança que vou chamá-las de fundamentais: nada de smartphone antes do nono ano, dando aos filhos apenas celulares básicos; nada de redes sociais antes dos dezesseis; nada de celular na escola, durante todo período de aula, desde o ensino fundamental até o médio; muito mais brincar não supervisionado e independência na infância”.
O que parece simples diante de um desafio tão complexo não levaria o autor a um erro tão primário até porque a base das reformas é uma construção coletiva e solidária. Então como pôr em prática essas medidas? “Encerro com duas sugestões: fale e junte-se, propõe Haidt, acrescentando: se você acha que a infância baseada no celular é ruim para as crianças e quer o retorno da infância baseada no brincar, diga isso […] se você é pai ou mãe, junte-se a outros […] Há muitas organizações excelentes que unem pais em torno dessa causa”.
De fato, a dimensão do livro vai além de famílias, escolas, instituições que cuidam de crianças ou se importam com elas na certeira definição do próprio autor: “Geração ansiosa é sobre restabelecer uma vida humana para os seres humanos de todas as gerações”.
Gustavo Krause
No caso, foi o impacto da leitura “ansiosa” (sem pretensão de trocadilho) do livro de autoria do escritor, pesquisador, psicólogo social norte-americano, Jonathan Haidt , A geração ansiosa – Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (Companhia das Letras. Julho de 2024).
Haidt, autor de A mente moralista (2020) e A hipótese da felicidade: encontrando a verdade moderna na sabedoria antiga (2022) diz, na introdução Crescendo em Marte: “Este livro conta a história da geração nascida depois de 1995, popularmente conhecida como geração Z, aquela que se segue aos millennials (nascidos entre 1981 e 1995)”.
Embora reconheça as divergências dos recortes temporais (ele próprio admite 1996 e menciona referências, segundo as quais, crianças nascidas depois de 2010 já fazem parte da geração alfa), o autor utiliza o critério das mudanças tecnológicas ao afirmar: “As pessoas mais velhas da geração Z entraram na puberdade por volta de 2009 quando várias tendências tecnológicas convergiram: a rápida expansão da banda larga na década de 2000, a chegada do iPhone em 2007 e a nova era de redes hiperviralizadas – iniciada em 2009 com os botões de ‘curtir’, e ‘compartilhar (ou ‘retuitar’) que transformaram a dinâmica social do mundo online”.
Mais adiante, acrescenta que a geração Z passou pela puberdade com um portal no bolso “que os afastava das pessoas próximas e os atraía para um universo alternativo empolgante, viciante, instável e – como vou mostrar – inadequado a crianças e adolescentes”. A partir dessa constatação, o autor se reporta aos dois conceitos centrais da sua obra: “a infância baseada no brincar” que, no fim dos anos 1980, transitou para uma “infância baseada no celular”, transição concluída em meados da década de 2010.
Curiosamente, o projeto original do livro tinha como objetivo avaliar os efeitos nocivos das redes sociais à democracia nos Estado Unidos. No entanto, Haidt percebeu que estava diante de desafio muito maior do que uma história das redes sociais, mas “uma história da transformação radical da infância em algo não humano: uma existência baseada no celular”.
Neste sentido, o livro está dividido em quatro partes: I. A onda gigante; II. O pano de fundo: o declínio da infância baseada no brincar; III. A grande reconfiguração: a ascensão da infância baseada no celular; IV. Ações coletivas para uma infância mais saudável.
A obra percorre um caminho longo, denso, ancorado em pesquisas, na abordagem teórica de cientista social, professor e na condição de pai de dois adolescentes, condição esta que levou o autor assumir o papel de expor a alarmante progressão dos transtornos mentais em meninos e meninas bem como assumir o risco de defender propostas para enfrentar a gravidade do problema.
De modo a caber nos estreitos limites de um artigo, segue-se o esforço de síntese pautado nos quatro prejuízos fundamentais por conta do uso desmedido das redes sociais pela geração Z: privação social, privação de sono, atenção fragmentada e vício. Os dados referentes à crescente tendência dos transtornos mentais (ansiedade, depressão, TDAH, bipolaridade, anorexia, abuso de substâncias viciantes, esquizofrenia), em universitários americanos (FONTE; American College Health Association), é assustadora.
Porém, não se trata de um fenômeno localizado. Está disseminado mundo afora e dentro de nossas famílias. Mesmo reconhecendo controvérsias e erros, o autor propõe “quatro reformas tão importantes e em que tenho tamanha confiança que vou chamá-las de fundamentais: nada de smartphone antes do nono ano, dando aos filhos apenas celulares básicos; nada de redes sociais antes dos dezesseis; nada de celular na escola, durante todo período de aula, desde o ensino fundamental até o médio; muito mais brincar não supervisionado e independência na infância”.
O que parece simples diante de um desafio tão complexo não levaria o autor a um erro tão primário até porque a base das reformas é uma construção coletiva e solidária. Então como pôr em prática essas medidas? “Encerro com duas sugestões: fale e junte-se, propõe Haidt, acrescentando: se você acha que a infância baseada no celular é ruim para as crianças e quer o retorno da infância baseada no brincar, diga isso […] se você é pai ou mãe, junte-se a outros […] Há muitas organizações excelentes que unem pais em torno dessa causa”.
De fato, a dimensão do livro vai além de famílias, escolas, instituições que cuidam de crianças ou se importam com elas na certeira definição do próprio autor: “Geração ansiosa é sobre restabelecer uma vida humana para os seres humanos de todas as gerações”.
Gustavo Krause
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