sábado, 30 de abril de 2022

Trabalhadores do Brasil!

 


Eu não disse?

Não acredito nos argumentos viciados que começam com uma frase irritante, a afirmar a superioridade sobre o outro: “Eu não disse?”, diz o interlocutor infeliz que, embora em maus lençóis, ri do fracasso de quem não previu para onde estávamos indo. O que estão querendo nos dizer com um sorriso de satisfação, embora seja o sorriso do infeliz derrotado e humilhado, é que o outro é um imbecil que não percebeu o valor da intervenção feita no passado. Uma intervenção decisiva que, uma vez ouvida, nos salvaria da merda em que hoje rolamos.

Claro que não é isso o que desejo impor aqui. Mas não posso deixar de lembrar o que escrevi nessa mesma coluna na segunda metade de outubro de 2018, às vésperas do segundo turno de nossa última eleição para presidente.

“Nesses dias antes do voto decisivo”, eu escrevia, “não quero fazer proselitismo. Já o fiz no primeiro turno e meu candidato favorito ficou atrás dos dois que disputam essa final. Um montado na sela de velho cavalo que já desapontou tanto o povo que o aplaudia; outro nos assustando, a prometer o demônio armado para conter nossos desejos inocentes”.

Agora estamos no rumo da eleição mais tensa e histérica do Brasil moderno. Não é que todas as outras tenham sido mais saudáveis. Mas essa pode se tornar o clímax de todos os erros que cometemos desde o Império, quando o imperador bonachão deixava que os dois partidos, o Liberal e o Conservador, ficassem dando golpes um no outro. Ou igual à primeira eleição de Jair Bolsonaro, que se tornou presidente da República mesmo com suas ideias assustadoras (que ele aliás nunca escondeu).

Não sei como, pois o Brasil não é assim, elegemos um cara que afirmava sem disfarce que o voto não ia mudar nada no país, que tínhamos que fazer uma guerra civil, que era preciso fuzilar umas 30 mil pessoas, que a ditadura militar tinha errado prendendo gente em vez de matar logo. Que seu herói pessoal, o homem de governo que mais admirava, era o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o responsável pelas mais terríveis torturas nos porões do regime. Nós o elegemos rindo, como se o país estivesse acabando; mas nós não temos o direito de desistir do Brasil.

Os defensores dessas ideias foram todos para o governo de Jair Bolsonaro, absorvendo e espalhando abertamente seus conceitos. Gente protegida por pensadores oficiais, como Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, um preto que dizia sempre que “a escravidão foi benéfica para os descendentes dos afro-brasileiros”. Ou o deputado Eduardo Bolsonaro, que se divertiu à beça com a tortura imposta à jornalista Miriam Leitão, então grávida, declarando às gargalhadas que tinha pena da cobra com a qual os torturadores a fizeram conviver no escuro de sua cela. Ou ainda o próprio presidente: “Somos um dos países no mundo que mais protege o meio ambiente”. E ainda nos advertia contra a vacina da Covid, se a tomássemos “podíamos virar jacaré”.

Entre a Política e a Justiça, entre o desejo de uma parte da população (mesmo que eventualmente majoritária) e as regras que mantêm o país num regime de liberdade democrática (mesmo que nem sempre claras e suficientes), o que fazer? O populismo caudilhista já nos causou muitos prejuízos, agora e no passado. Não podemos aceitá-lo como uma forma de atraso civilizatório a que estamos condenados. Se precisamos mesmo de um “salvador da pátria” autocrático e cruel, é porque a nação não tem e não merece ter salvação. Só a nós mesmos cabe a resposta a esse impasse. O resto é soprar contra o vento da democracia, o único regime político que nos garante uma existência civilizada.

 Cacá Dieges 

O dinheiro compra tudo?

Entre 2014 e 2018, enquanto a família média americana pagava 14% em impostos federais, a taxa de imposto paga por Musk não chegou aos 4%. E este é um dos piores sinais que se pode dar num mundo cada vez mais desigual, em que cresce o sentimento de revolta entre as pessoas que já perceberam que os seus filhos serão os primeiros, em várias gerações, a não ter melhores condições de vida do que os pais. Por isso, cada vez mais vozes – até de políticos moderados – pedem a introdução de novos impostos para os super-ricos. Até lá, os milhões astronómicos vão comprando tudo – até o sentimento de impunidade de que gozam os novos “senhores do mundo”

Só faltam os dragões

Imagine um filme: o herói consegue fugir com a família de uma pandemia terrível, a qual, tendo sido deflagrada na cidade deles, está se propagando agora por todo o planeta. Vê-se um carro cruzando uma estrada, numa paisagem rural. Subitamente, surge um tornado, cortando a estrada. O nosso herói imobiliza a viatura. Hesita. Dá marcha à ré. Porém, rugindo mais do que o tornado, emerge um dinossauro na outra ponta da estrada. A esta altura os espectadores levantam-se, furiosos:

— Pô, cara, um dinossauro não! Assim também já é demais!

E é então que o céu se enche de dragões!

Nos últimos meses venho me sentindo um pouco como os espectadores revoltados de que falo atrás: primeiro uma pandemia, seguida de ciclones, tempestades, desabamentos, o diabo a quatro — e agora a ameaça de uma nova guerra mundial e de um apocalipse nuclear?! Assim também já é demais!


Catástrofes atrás de catástrofes, umas atropelando as outras, ameaçam a credibilidade do enredo. Num filme de pandemia não dá para colocar um terremoto. Numa invasão de extraterrestres não entram dinossauros. Se há um meteoro prestes a destruir a Terra, não faz o menor sentido acrescentar um apocalipse zumbi. Juntar Bolsonaro, milicianos, garimpeiros assassinos, pandemia, aquecimento global, Putin, eventos climáticos extremos, e ainda uma guerra nuclear é brincar com a paciência dos viventes.

Vamos com calma, senhor roteirista! Um desastre de cada vez!

Após tantos meses de terror, já todos percebemos quais são os grandes temas que o roteirista pretende deixar para reflexão:

1) Em primeiro lugar, está nos alertando para a urgência de repensar a nossa relação com o planeta. Insistir em manter uma economia predadora, com desmatamento selvagem, agricultura intensiva e a destruição sistemática de ecossistemas, conduzirá, mais cedo ou mais tarde, à extinção da Humanidade. A vida prosseguirá, é claro, mas acho que sem nós não terá tanta graça.

2) Democracias, ao contrário do que gostamos de imaginar, são sistemas frágeis, facilmente corrompidos a partir de dentro. Exigem cuidados constantes e mecanismos de vigilância, adaptação e renovação.

3) Cada um de nós tem o dever de lutar pelo desmantelamento completo de todos os arsenais nucleares. Enquanto isso não acontecer, não conseguiremos dormir em paz. Se nenhuma democracia é segura (e nenhuma é), nunca poderemos ter a certeza de que essas armas não venham a ser um dia utilizadas por déspotas loucos.

4) O que podemos fazer diante da fragilidade da moderna civilização, além de cumprir a nossa parte no processo de resistência contra a guerra e a destruição ambiental, é tentar viver intensamente cada instante: abrace seus filhos, cozinhe para seu amor, ria com seus amigos, corra na praia com seu cachorro.

Dito isto, imploro ao roteirista que nos deixe retomar o fôlego. Alguns minutos de sossego, por favor. Que venham os dragões, os vulcões, os furacões, desde que possamos, entretanto, estender uma rede no quintal e descansar um pouco. Muito obrigado.

Pensamento do Dia

 

Oleksiy Kustovsky (Ucrânia)

Carnaval, guerra e tortura

A consciência da nossa finitude certamente explica a atração pelo permanente. Por isso os que pregam certezas atraem tanto. Eles nos impingem que existe mesmo a lâmpada de Aladim e o próprio Aladim. Coisas permanentes como o Everest, ou incorruptíveis como o ouro, compensam nossa impotência diante da morte e do esquecimento. Eventos ou contextos extraordinários — carnaval, guerra, tortura — reavivam identidades que não são inatas, mas internalizadas por nossas línguas e culturas.

No entanto sabemos que injustiças e erros são cometidos e descobertos — a menos que se acredite numa sociedade perfeita — em todo lugar. A subordinação da mulher, a crueldade da escravidão, o machismo feminicida, o preconceito estrutural com os velhos, os lucros promovidos pelo capital contra o trabalho, o tabu de escolher sexualidades, nacionalidades e etnias, de contrariar costumes e, por fim, a abjeta tortura praticada no regime militar revelaram o lado perverso do nosso “bom-mocismo”, graças ao historiador Carlos Fico e à jornalista Míriam Leitão.

Hoje, a tortura, além de vergonha e desonra, é uma abominação jurídica afim aos totalitarismos, mas ela tem uma sólida história. Na Contrarreforma (séculos XVI e XVII), torturar foi legal contra hereges. Fora do nosso lado, era válido extrair confissões pela tortura, que despe de humanidade sobretudo o torturador.

Vivemos dias peculiares. Uma Semana Santa embrulhada numa Quaresma e um carnaval de desfile; a brutal agressão de uma super Rússia contra um ex-aliado num mundo cuja tecnologia dificulta segredos. E a “novidade” de que tivemos tortura no regime militar ao lado de mais outra novidade: mais crise bolsonarista.


O problema dessas coisas fora de hora e lugar é como encaixá-las como parte de nosso passado. Um passado escravocrata reprimido que volta tão forte quanto o populismo e a corrupção. Esquecidos dos pelourinhos, redefinimos o carnaval e engendramos um sistema jurídico que solta corruptos e esquece inocentes.

O Brasil, como dizia Tom Jobim, não é para principiantes...

Experimentamos todos os regimes políticos! De catequistas católicos e da fidalguia colonial, passamos a Reino graças à fuga de Dom João VI para o Rio de Janeiro. O único monarca que fugiu de seu reino para colocar, como diz brilhantemente o historiador social Patrick Wilcken, todo “um império à deriva”.

Tal movimento criou uma autovisão insegura e ambígua daquilo que veio a ser o Brasil. Debaixo do Equador, tudo seria possível, como diz Chico Buarque de Holanda, repetindo seu pai historiador, Sérgio. Um espaço onde a virtude fica sempre entre o sim e o não. Existem leis regulando tudo menos um elo de amizade ou parentesco. Temos tudo, menos o esforço para honrar uma igualdade republicana que chegou aos trambolhões, se é que li com cuidado José Murilo de Carvalho.

No meu trabalho, falo em éticas dúplices (da casa e da rua) — do pessoal e do impessoal —cuja impiedade tem seu limite na tortura, no uso particular dos recursos públicos e num absolutismo que permanentemente ronda o cargo de presidente da República.

Com tantas experiências profundas, entre as quais a maciça escravidão negra africana foi a que mais consagrou um estilo de vida aristocrático, temos, até hoje, o dilema de honrar a igualdade e a democracia, personalizando nossos supostos inimigos. Quando a tortura reaparece, desmente que somos somente o belo e bondoso “país tropical, abençoado por Deus”, e há tenebroso vislumbre dos pelourinhos, relembrando nossa imensa dívida para com um regime democrático decente. Porque perfeito, nenhum há se ser, como Vico e Herder afirmavam.

Miséria eterna, revolta eterna

Convencido de que a miséria está intimamente ligada à existência, não posso aderir a nenhuma doutrina humanitária. Elas me parecem, em sua totalidade, igualmente ilusórias e quiméricas. O próprio silêncio me parece um grito. Os animais - que vivem de seus próprios esforços - não conhecem a miséria, pois eles ignoram a hierarquia e a exploração. Este fenômeno somente aparece junto ao homem, o único que submeteu o seu igual; e somente o homem é capaz de tanto desprezo por si.

Toda a caridade do mundo não faz nada mais do que destacar a miséria, e rendê-la ainda mais revoltante do que a angústia absoluta. Frente à miséria, assim como frente às ruínas, nós deploramos uma ausência de humanidade, nós lamentamos que os homens não mudem radicalmente o que está em seu poder de mudança. Este sentimento mistura-se ao da eternidade da miséria, de seu caráter inelutável. Mesmo sabendo que os homens poderiam suprimir a miséria, nós estamos conscientes da sua permanência e acabamos por provar uma inabitual e amarga inquietude, um estado de alma perturbado e paradoxal, no qual o homem aparece em toda a sua inconsistência e pequenez. A miséria objetiva da vida social é, com efeito, apenas o pálido reflexo de uma miséria interior. E, só de pensar nisso, perco a vontade de viver. Eu deveria lançar minha pluma para chegar a um casebre em ruínas. Um desespero mortal me toma assim que evoco a terrível miséria do homem, sua decrepitude e gangrena. Em vez de elaborar teorias e de se apaixonar pelas ideologias, este animal racional faria melhor oferecendo tudo ao outro, até sua camisa - gesto de compreensão e de comunhão. A presença da miséria aqui embaixo compromete o homem mais do que tudo e faz compreender que este animal megalomaníaco é devotado a um fim catastrófico. Frente à miséria, tenho vergonha até da existência da música. A injustiça constitui a essência da vida social. Como aderir, sabendo disso, a qualquer doutrina?

A miséria destrói tudo na vida; rende-a infecciosa, hedionda e espectral. Existe a palidez aristocrática e a palidez da miséria: a primeira vem de um refinamento, a segunda de uma mumificação. Pois a miséria faz de todos um fantasma, ela cria sombras da vida e aparições estranhas, formas crepusculares como se saídas de um incêndio cósmico. Não há o menor traço de purificação em suas convulsões; somente o ódio, o desgosto e o azedume da carne. A miséria não concebe nada mais do que a doença numa alma inocente e angelical - e sua humildade não é imaculada; ela é venenosa, cruel e vingativa, e o compromisso ao que ela conduz esconde chagas e sofrimentos aguçados.

Não quero uma revolta relativa contra a injustiça. Admito apenas a revolta eterna, pois eterna é a miséria da humanidade.
Emil Cioran, "Nos cumes do desespero"

Vem, outubro!

Desde quando começamos a usar máscaras, noto que muita gente fala sozinha. Alguns já falavam antes, outros, até gesticulavam para enfatizar os argumentos, mas agora é fato comum, porque a boca oculta oferece a ilusão de privacidade.

Não são falas alegres ou uma simples cantoria. Em geral, os mascarados emitem reclamações ou, pior, vociferam agressões contra algum incauto destinatário. É assim nas ruas, dentro dos ônibus, nos corredores dos supermercados, nos balcões de serviço… Uma multidão de valentões que lembram aqueles cães que latem ameaçadoramente atrás da cerca, mas fogem com o rabo entre as pernas assim que a vítima se aproxima.


Entendo que paira sobre nossas cabeças uma nuvem de mau humor, diante das perspectivas atuais. “Está tudo tão caro!”, queixa-se uma voz de dentro da máscara, diante das gôndolas do mercado. “Que gente mole!”, reclama outra, na entrada do ônibus demorado, em fila para girar a catraca. “Nossa, toda hora é isso!”, protesta uma terceira, abordada por um pedinte.

Agressões sem troco (felizmente), porque os alvos, em geral, desconhecem o que se pensa deles. Será que tal animosidade alivia o desespero de quem não vê saída a curto prazo? “O tempo está passando tão depressa! Já é quase maio!”, me diz uma amiga, lamentando que nos encontremos pouco.

Penso com meus botões que ainda bem que os meses avançam, porque não vejo a hora de outubro chegar e, com ele, as esperadas eleições. Algo precisa mudar, há de haver algo novo sob o sol, precisamos respirar outros ares, recuperar a esperança.

Não sei até quando continuarei usando máscara. Não a descarto por enquanto, nem mesmo andando numa rua deserta. Até falo por trás dela, também, quando sem querer deixo cair algo das mãos ou no meio do caminho vejo que esqueci em casa algo importante. Queixas que faria mesmo sem mordaça, porque mora uma perfeccionista aqui dentro que não me dá sossego.

Tenhamos paciência, sempre que possível. Dias melhores virão, mesmo que os ranzinzas insistam em reclamar de tudo e todos, com ou sem razão, com ou sem máscaras. Em outubro será Primavera.
Madô Martins

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Pensamento do Dia

 


O que farão as Forças Armadas?

Jair Bolsonaro tratou de, em menos de uma semana, dar completa razão ao ministro Luís Roberto Barroso, que havia afirmado, em seminário no último fim de semana, que as Forças Armadas estão sendo orientadas a questionar a lisura do processo eleitoral brasileiro.

Em duas oportunidades o presidente, de viva voz, instou as Forças Armadas a continuar a questionar a transparência da votação eletrônica, sempre “embasando” seu clamor em informações falsas.

Numa solenidade por si só já eivada de caráter golpista, em que Bolsonaro e apoiadores fizeram uma espécie de desagravo a Daniel Silveira, o presidente colocou explicitamente em dúvida a realização das eleições caso fatos “anormais” ocorram. Os únicos fatos anormais que ameaçam a realização do pleito são as investidas sistemáticas do presidente da República contra a Justiça Eleitoral.

Ele chegou ao disparate de dizer que a sala-cofre do Tribunal Superior Eleitoral, malandramente chamada por ele de “secreta”, para dar a ela ares de conspiração, seria um local onde algumas pessoas decidem quem vencerá a eleição!


Não há mais um limite sequer entre o que sai da boca do presidente e o que dá na sua telha. Fatos, liturgia do cargo, responsabilidade com o país e a institucionalidade foram mandados às favas. Bolsonaro já nem finge que governa. Respira, almoça, janta e dorme agindo para tumultuar o ambiente político e institucional do Brasil e para a tentativa de se reeleger.

Na live desta quinta-feira, ele fez uma espécie de pot-pourri de todas as suas aleivosias: defendeu que histórico de atleta previne Covid-19, lançou dúvidas sobre a eficácia das vacinas sem nenhuma evidência e louvou sua proximidade com Vladimir Putin, dois meses depois da guerra sangrenta que ele empreende na Ucrânia.

Mas é sempre à contestação ao Judiciário, e à Justiça Eleitoral especialmente, que ele dedica mais tempo. Bolsonaro foi além do discurso da véspera e disse que as Forças Armadas “devem continuar trabalhando para convencer o TSE” a aceitar supostas modificações técnicas sugeridas por elas e a fazer uma apuração paralela dos votos.

Não existem sugestões feitas pelos militares que tenham sido tecnicamente validadas. Nos últimos meses, o TSE ampliou muito as formas de auditar as urnas eletrônicas. Informações foram prestadas aos militares e aos partidos políticos, especialistas foram chamados a analisar por dentro os mecanismos de votação. Não há nenhuma previsão constitucional, lei ou norma que preveja que as Forças Armadas devam ter qualquer papel na contagem de votos e na proclamação do resultado das eleições no Brasil.

O que Bolsonaro será capaz de fazer para forçar a barra nessa evidente, cristalina orientação dos militares para tensionar o ambiente eleitoral no país?

O ministro Luiz Ramos já havia dado a letra do samba de que eles avançariam na tentativa de envolver as Forças Armadas no processo eleitoral quando disse, em resposta a Barroso, que as eleições são tema concernente à soberania nacional. Ora, e em que a realização de eleições seguras e limpas, realizadas por urnas eletrônicas desde 1996, põe em risco a soberania nacional? Trata-se de mais um ingrediente perigoso, deletério para incendiar um debate que, por obra e graça do chefe do Executivo, já está por demais envenenado.

Tudo isso é de uma gravidade absoluta. O fantasma da leitura golpista do Artigo 142 da Constituição como pretexto a uma “solução militar” para a desvantagem de Bolsonaro nas pesquisas já está em curso. Ou as Forças Armadas se arvoram de sua missão constitucional — e se dissociam de forma clara e inequívoca dessa escalada de enfraquecimento da democracia — ou tratarão de, também elas, demonstrar que Barroso estava mais do que certo.

Haverá retorno?

O que está em jogo no Brasil, no momento, não é impedir que a democracia seja fraturada. Ela já está fraturada. É se haverá condição de retornar à trilha democrática, de recompor o que foi destruído, de reconstitucionalizar o país
Luis Felipe Miguel, autor de "Democracia na periferia capitalista" e professor do Instituto de Ciência Política da UnB

Nunca na história recente do país um presidente trabalhou tão pouco

Entre 1º de janeiro de 2019 e 6 de fevereiro de 2022, em meio à pandemia da Covid-19 que só no Brasil matou mais de 650 mil pessoas, Bolsonaro participou de apenas 5 compromissos oficiais envolvendo explicitamente o tema vacina, o que representa 0,88% dos 5.693 registros da sua Agenda Oficial no período.

É o que revela o estudo “Deixa o Homem Trabalhar?”, de Dalson Figueiredo, coordenador científico do Programa de Mestrado Profissional em Políticas Públicas da Universidade Federal de Pernambuco, Lucas Silva e Juliano Domingues. Figueiredo faz pós-doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Figueiredo apressa-se a justificar o estudo: “A nossa grande motivação é tornar esse dado público, não criticar o presidente, falando que ele trabalha mais ou menos. Criamos uma equipe multidisciplinar e levantamos os dados. A motivação é metodológica”, disse ele à revista Veja. Feita a ressalva…


Entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2022, Bolsonaro trabalhou, em média, 4,8 horas por dia. A quantidade média de sua carga de trabalho diminuiu nos últimos três anos e dois meses, passando de 5,6 horas em 2019 para só 3,6 horas este ano, levando em conta a sua agenda oficial divulgada diariamente pelo governo.

Bolsonaro trabalha, em média, 18 horas semanais a menos que um trabalhador regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e 14 horas semanais a menos que um servidor público federal da administração direta. Se lhe parece pouco, saiba: a média de 4,8 horas só foi alcançada contabilizando-se o tempo de suas viagens.

Em 2019, por exemplo, há registros de dias em que Bolsonaro trabalhou 12 horas. Segundo o estudo, todos os registros com carga horária superior a cinco horas tratam-se, na verdade, de períodos em que ele estava em trânsito. Como em 18 de novembro de 2021, quando ele voou de Doha, no Catar, para Brasília.

No dia 12 de novembro de 2021, ele partiu de Brasília para Lisboa somando 11,8 horas de trabalho. Se aplicado o mesmo critério, o tempo gasto por Bolsonaro com motociatas pelo país, ou comendo farofa nas ruas de Brasília, ou passeando de jet-ski no Guarujá seria considerado jornada de trabalho. (Isso sou eu que digo.)

O próprio Bolsonaro já admitiu que trabalha pouco. Na tarde da quinta-feira 9 de julho de 2021, mês em que o Brasil ultrapassou as 500 mil mortes pela Covid-19, ele disse aos seus devotos reunidos no cercadinho dos jardins do Palácio da Alvorada que sua agenda andava “meio folgada”. Conversou 50 minutos com eles.

O golpe, de novo

Um antigo observador da cena política, com livre trânsito em diversas esferas dos três Poderes, faz o alerta: se todos que têm responsabilidade com a manutenção das regras democráticas não voltarem a conversar, as condições estarão dadas no Brasil para um golpe ainda este ano. O tema, que havia sido retirado de pauta depois do recuo do presidente Jair Bolsonaro no feriado da independência, já voltou à agenda de assombrações no feriado de Tiradentes, graças a dois episódios: o indulto presidencial ao deputado Daniel Silveira e a desavença entre o ministro Luís Roberto Barroso e o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira.

Barroso entrou nessa por acidente. A fala em si do ministro do Supremo Tribunal Federal em um evento acadêmico no exterior foi muito criticada, mas está longe de ser caluniosa às Forças Armadas como o general indicou. Foi, isso sim, um ataque, quase uma denúncia ao presidente Jair Bolsonaro, ainda que sem jamais mencioná-lo. O ministro fez uma indagação retórica, ao se referir ao voto eletrônico: “As Forças Armadas estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo?” Mais adiante, ressalvou: “Nestes 33 anos de democracia, se teve uma instituição de onde não veio notícia ruim, e que teve um comportamento exemplar, foram as Forças Armadas.”


A resposta em tom muito acima do normal do general Paulo Sérgio sugere que se procurou criar um cavalo de batalha, para se ficar em jargão militar. Um tumulto por pouca coisa. Roteiro semelhante aconteceu em 1968, quando um discurso provocativo banal do deputado Márcio Moreira Alves desencadeou uma crise entre a cúpula do regime militar e o Congresso que desembocaria na decretação do AI-5.

O indulto a Daniel Silveira simbolizou o fim da trégua entre Bolsonaro e o Judiciário. Afinal, o deputado foi condenado pelo Supremo por incitar agressão a membros do STF. Ao indultar, Bolsonaro endossou este comportamento.

Quis o destino que as eleições de outubro venham a ser presididas pelo ministro Alexandre Moraes, no TSE, e o Supremo fique nas mãos de Rosa Weber. Eles assumirão estes postos a poucas semanas do pleito. Moraes está em pleno contencioso com Bolsonaro e Rosa Weber é famosa por seguir o figurino clássico da magistratura: inabordável, avessa a contatos políticos mesmo com seus colegas de corte, voltada para a doutrina.

A presença de Moraes à frente do TSE pode estimular os apóstolos do golpe a reforçar narrativas de que a Justiça Eleitoral no Brasil se partidarizou. O fato disso não ser verdade é irrelevante para quem procura pretextos para deslegitimar o processo e abrir caminho para um golpe. O temperamento distante de Rosa Weber pode ser um complicador para que ela exerça liderança sobre seus pares e capacidade de negociação e persuasão junto a outras forças.

A blindagem do sistema contra um golpe envolveria tirar as Forças Armadas do isolamento que vivem. Hoje os generais, brigadeiros e almirantes basicamente só estão conversando entre si e com o presidente Jair Bolsonaro. Não há pontes estabelecidas, canais de comunicação azeitados, entre o Judiciário e o meio militar, ou entre o Congresso e o meio militar, e muito menos entre a oposição e os quartéis.

Entre 1983 e 1984, no fim do governo Figueiredo, uma reação no meio militar contra o fim do regime autoritário e a ascensão de Tancredo Neves chegou a se armar. Esta inquietação foi neutralizada porque havia pontes entre os militares e outros atores políticos, conforme relatos inclusive da imprensa da época. O então governador paranaense José Richa era bem relacionado com o comandante do 3º Exército e o próprio Tancredo conseguiu estabelecer diálogo com o ex-presidente Ernesto Geisel e com o ministro do Exército, general Walter Pires.

Desta vez, comenta esta fonte, não tem ninguém conversando com ninguém. O líder nas pesquisas de intenção de voto, Luiz Inácio Lula da Silva, acaba de ser enquadrado pelo PT e perder o comando da comunicação de sua própria campanha, com a provável substituição de Franklin Martins, um nome seu, por um burocrata da máquina partidária.

Lula ainda se enreda dentro da sua própria base e com a negociação entre correligionários e aliados. Não está falando com os que não estarão com ele durante a campanha, mas que poderão garantir a sua governabilidade, caso venha a ser eleito. Ele não tem interlocutor junto às Forças Armadas e, se assim continuar, não terá como desarmar uma contestação militar de um eventual triunfo eleitoral seu. Não está se preparando como Tancredo se preparou. Aparentemente, acha que as circunstâncias institucionais de 2022 serão iguais às de 2002, data de sua chegada ao poder. Não serão. O jogo mudou.

Mas a falta de diálogo, segundo este observador, vai além. As principais lideranças do Congresso deixaram que o corporativismo falasse mais alto ao endossarem o indulto ao parlamentar. A principal iniciativa institucional do presidente da Câmara dos Deputados nas últimas semanas pode ser classificada como no mínimo estranha, de tal modo inoportuna: a instalação de uma comissão para estudar a implantação do semipresidencialismo a partir de 2030. É de se pensar como será a discussão deste assunto em novembro, com a confusão se desenhando no horizonte.

Em favor de Lira e Pacheco, um sinal de alerta foi o fato de ambos terem se manifestado ontem em redes sociais para defender o sistema eleitoral.

Sobre o ensaio de golpe que se desenha no horizonte brasileiro segundo as leituras mais pessimistas: a se confirmar a distopia, seria um autogolpe, com aval das Forças Armadas, para anular um resultado eleitoral adverso. Uma quebra da institucionalidade neste formato contaria com um fortíssimo fator de desestímulo para aqueles que cogitam tentá-la. Trata-se da taxa de insucesso, que é alta.

De Donald Trump (Estados Unidos) a Laurent Gbagbo (Costa do Marfim), passando por Slobodan Milosevic (Iugoslávia), Evo Morales (Bolívia) e Alberto Fujimori (Peru), o resultado foi quase sempre o mesmo. Presidentes que promoveram fraude eleitoral, ou contestaram eleições legítimas em que saíram derrotados não conseguiram continuar no poder. Os casos de democracias que se converteram em autocracias são de presidentes que contavam com força popular: Putin, Erdogan, Narendra Modi, Órban, ou o salvadorenho Nayib Bukele. Nestes casos, a taxa de sucesso do golpismo é alta. E a necessidade de diálogo para o estabelecimento da resistência é muito maior.

Brasil alegórico

 


Bolsonaro e generais se unem em cerco ao STF

A usina de crises do bolsonarismo não para nem nos feriados. No dia de Tiradentes, o capitão deflagrou uma nova ofensiva contra o Supremo Tribunal Federal. Numa canetada, concedeu perdão ao aliado Daniel Silveira, condenado na véspera a oito anos e nove meses de cadeia.

O decreto cumpriu duas funções: afrontar a Corte e inflamar a militância de ultradireita contra seus juízes. A estratégia de arrastar o Supremo para o ringue já é conhecida. O deputado marombado foi apenas o pretexto da vez.

No domingo, o ministro da Defesa moveu outra peça para cercar o tribunal. Em nota ríspida, o general Paulo Sérgio Nogueira chamou o ministro Luís Roberto Barroso de “irresponsável” e o acusou de cometer “ofensa grave” contra as Forças Armadas. O general distorceu uma palestra em que o juiz elogiou os militares, mas lamentou a tentativa de usá-los para desacreditar o processo eleitoral.


A fala de Barroso pode ter sido desnecessária, mas não foi nova. Em fevereiro, ele já havia se penitenciado pela má ideia de convidar militares para um certo comitê de transparência do TSE. “Estou presumindo que as Forças Armadas estão aqui para ajudar a democracia brasileira. E não para municiar um presidente que quer atacá-la”, afirmou, na época.

O ministro da Defesa também não inovou. Há nove meses, o general que ocupava sua cadeira se disse ofendido quando o senador Omar Aziz lamentou o envolvimento de “alguns” oficiais em negociatas no Ministério da Saúde. A CPI da Covid investigava seis militares suspeitos de fazer rolo na compra de vacinas. Em tom de ameaça, o então ministro Braga Netto acusou o senador de “desrespeitar” as Forças Armadas “de forma vil e leviana”.

O capitão e seus generais se movimentam em bloco. A nota de domingo foi endossada por mais três estrelados com assento no Planalto: o vice-presidente Hamilton Mourão e os ministros Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno. Esses generais já foram apresentados como forças moderadoras no governo. No mundo real, sempre atuaram como agentes da radicalização.

Em áudio vazado em dezembro, Heleno despejou fúria sobre o Supremo e disse tomar “dois Lexotans na veia”, todos os dias, para não encorajar Bolsonaro a tomar uma “atitude mais drástica” contra o tribunal. Talvez seja o caso de prescrever o remédio a seus colegas.

A paz como fundamento da democracia e da sustentabilidade

Os conflitos e as guerras regionais colocam em evidência a insustentabilidade da sociedade contemporânea.

Como estamos pensando e nos posicionando frente a esta complexa realidade?

O conflito militar envolvendo a Ucrânia e a Rússia é uma das pontas do iceberg que expressa as contradições do mundo em que vivemos, onde a cultura da guerra fria ainda sobrevive através principalmente dos EUA e dos seus aliados da OTAN, frente a uma realidade mundial multipolar que apresenta a China, a Rússia, o Japão e a própria União Europeia como atores relevantes do atual cenário internacional.

Desde fevereiro, o conflito militar entre a Rússia e a Ucrânia ocupa papel de destaque no noticiário internacional. Envolve diretamente os EUA, a OTAN, a União Europeia e, indiretamente, a China. São disputas geopolíticas, como aconteceu e acontece hoje em diversas regiões do planeta, inclusive durante o século XX no desencadeamento das duas guerras mundiais e no período da guerra fria.



Hoje, por exemplo, qual seria a razão de existir da própria OTAN? Como sabemos, ela foi criada depois da segunda guerra mundial para impedir a expansão da ex-União Soviética, que não mais existe desde 1991. Como estão e vão se desenvolver as relações entre os EUA e a China e o papel da União Europeia e da Rússia neste contexto?

São questões a serem colocadas para um melhor entendimento do atual cenário internacional e o papel dos distintos atores envolvidos.


Portanto, a guerra na Ucrânia coloca em cheque o anacronismo das organizações multilaterais, a exemplo da ONU que ainda funciona com a lógica dos vencedores da segunda guerra mundial, com o poder de veto da Rússia (substituindo a URSS), EUA, China, Inglaterra e França.

Segundo a ONU, existem atualmente no mundo 30 regiões em conflito, a maioria armados. Os conflitos envolvem disputas territoriais, diferenças étnicas, religiosas e recursos naturais, inclusive a água. Existem zonas de tensão geopolítica, a exemplo da Coreia do Norte, do Irã e da Palestina. Ainda movimentos separatistas que criam instabilidades políticas e econômicas regionais, como na Irlanda do Norte, no Pais Basco e na Catalunha (Espanha), no Quebec (Canadá) e na Colômbia, entre outros.

Em tempo real, de maneira dramática e espetacular, o mundo acompanha a tragédia da Ucrânia. Enquanto pouco é noticiado em relação aos conflitos regionais que acontecem na América, na África, na Ásia e na própria Europa, há décadas.

Assim, estão em disputa os modelos de hegemonia a nível internacional: a unipolaridade dos EUA consagrada após o esgotamento do modelo soviético em 1991 ou a perspectiva de um mundo multipolar – processo em andamento, um mundo onde a União Europeia, o Japão, os BRICKS, aqui incluídos a China e a própria Rússia entre outros países, teriam uma participação mais efetiva na ONU e nos Organismos Multilaterais, construindo uma nova ordem mundial, mais ampla e aberta à cooperação internacional.

Sob qual perspectiva nos colocamos? O que temos a dizer como sociedade brasileira e mundial no processo de construção de uma cultura de Paz como caminho da sustentabilidade do planeta e da própria humanidade?

Os desafios atuais e o futuro

Neste contexto mundial é que devemos avaliar as guerras e os conflitos regionais ora em curso e os impactos das declarações e ações das principais lideranças dos EUA e da Europa, destacando ainda a China, a Rússia e os países diretamente envolvidos nas guerras e conflitos regionais.

A lógica da guerra, de resolver os conflitos entre os países, manu militare, não interessa à maioria da humanidade. Interessa aos complexos industrial e militar historicamente construídos, consolidados nos tempos da guerra fria e que sobrevivem até à atualidade, trazendo aos senhores da guerra lucros fantásticos no processo de destruição e reconstrução dos territórios atingidos pelos conflitos, matando, na maioria das vezes, as crianças, a juventude e a população civil em geral, além de destruição da própria natureza, da arquitetura e da cultura milenar da humanidade.

O imperativo que se coloca é a luta em defesa e ampliação da democracia como caminho para a construção de novas relações centradas na vida e na preservação da natureza, colocando a cultura e a educação para a Paz como fundamentos de novas relações nacionais, continentais e internacionais.

A pactuação desta construção, através do diálogo e da cooperação permanentes, são desafios colocados às dificuldades que estamos vivendo no Brasil e em toda a humanidade, ainda em pandemia. A pandemia e, particularmente, os conflitos regionais e os impactos das mudanças climáticas desnudam as fragilidades dos sistemas políticos, econômicos e sociais em que vivemos, desafiando a humanidade na perspectiva de construção de novas relações entre sí e com a própria natureza.

A sociedade desnudada pela pandemia nos agride no Brasil e em qualquer lugar do Planeta: nas ruas e nas redes, é visível a tragédia social de milhões de pessoas, à margem das conquistas sociais elementares: educação, trabalho, alimentação, moradia, saúde-saneamento básico, mobilidade e uma renda básica, assegurados na Declaração Universal e nas Constituições Nacionais, inclusive na atual Constituição brasileira.

A tecelagem de uma alternativa democrática às crises política, econômica, social, sanitária e ambiental em que vivemos nos desafia a construir de maneira inadiável a unidade das forças democráticas, dialogando com o mundo do trabalho e da cultura para a mobilização de uma frente democrática que garanta o Estado de Direito e o exercício da Cidadania garantindo a melhoria de vida da população brasileira e da planetária. Há espaços, no Brasil e no mundo, para a construção de novas relações políticas, econômicas e sociais, direcionando os investimentos hoje utilizados para a guerra a favor da cultura, da educação e da ciência & tecnologia, no enfrentamento dos reais problemas econômicos, sociais e ambientais da humanidade.

As sustentabilidades política, econômica, social e ambiental planetária estão em pauta. Estamos desafiados à construção de sociedades democráticas no caminho de uma cultura de paz para o Brasil e para toda a humanidade.

Portanto, a luta pela Paz é a luta pela Sustentabilidade do Planeta, é a luta pela Vida de cada um de nós. A política, a diplomacia e a cidadania mundial devem juntas agir no sentido de resolução dos conflitos militares, dos refugiados ou de qualquer outro tipo. A ONU deve ser o espaço privilegiado no caminho de resolução dos conflitos militares entre a Rússia e a Ucrânia, de todos os outros conflitos militares ou de qualquer natureza em curso no planeta. Cada ser humano é importante, independente da sua nacionalidade, da sua pele, opção sexual ou religião.

Assim, como nunca, devemos trabalhar e lutar por uma cultura de Paz. Afirmar e reafirmar os valores que nos fazem humanidade: a cooperação, a solidariedade, a luta pela igualdade, liberdade e fraternidade, valorizando , defendendo e consolidando a democracia como caminho e instrumento fundamental deste processo.

Os caminhos e as alternativas estão colocadas: as opções entre a democracia e a barbárie continuam postas. É um processo permanente, em construção. A questão democrática, a sustentabilidade e a cultura da paz se colocam como valores para a sociedade contemporânea nas suas relações entre si e com a própria natureza, no caminho de sermos uma melhor humanidade.

Estamos desafiados!

Em Portugal, a coragem da serenidade

Com muita inveja cívica, comemorei na Avenida da Liberdade os 50 anos da Revolução dos Cravos, que libertou Portugal de 40 anos da ditadura fascista e obscurantista de Salazar, que censurou, prendeu, torturou, matou e aterrorizou com sua polícia secreta, parando o país no tempo do medo, do atraso e da pobreza.

É o feriado mais importante de Portugal, a data mais querida de sua História, que celebra uma revolução sem uma gota de sangue, marcada pela coragem, serenidade e autoridade moral do capitão Salgueiro Maia, adorado pela tropa, e uma nova geração de capitães cansados de matar pretos e morrer nas inúteis e injustas guerras coloniais na África, que planejam depor uma ditadura que calava, torturava e matava opositores. Salgueiro liderou uma coluna de blindados de Santarém a Lisboa e enfrentou, literalmente, de peito aberto os tanques do governo e um general boçal e violento.

Foi como uma cena de duelo de faroeste. Numa rua de Lisboa, uma pequena coluna de blindados e soldados rebeldes fica cara a cara com os tanques do governo, separados por 50 passos e um tempo tecido a tensão e medo. Salgueiro desce do blindado, põe seu fuzil no chão, e com um lenço branco na mão caminha lentamente em direção ao general que grita ameaças e palavrões, dá ordens de prisão e tiros para o alto.

Com serenidade, Salgueiro tenta dialogar para um final pacífico de uma guerra que a ditadura já perdeu, pela adesão maciça de outros capitães e suas tropas, e, à medida que as noticias se espalham, pela população que desobedece às ordens de ficar em casa e vai para as ruas.

O general ordena abrir fogo contra Salgueiro, mas ninguém obedece, seus soldados abandonam os tanques e percorrem a rua para se unir aos rebeldes, deixando-o sozinho à frente dos tanques vazios e do ridículo.

O povo vai para as ruas aplaudir e agradecer os capitães e soldados libertadores com beijos e flores. Cravos vermelhos no cano de fuzis, na boca de canhões e no peito de soldados se tornaram o eterno símbolo de uma revolução sem tiros e sem sangue.

A velha, viciada e violenta elite militar salazarista fica isolada nos palácios com os bispos e arcebispos da Igreja Católica, os banqueiros e os políticos governistas, enquanto os rebeldes tomam os quartéis e as ruas. As tropas de Salgueiro cercam o palácio do governo e ele vai, com respeito e serenidade, dar o ultimato ao presidente Marcelo Caetano.

Tiros, mortos e feridos, só quando agentes da PIDE, a abjeta polícia secreta, entrincheirados em sua sede, abriram fogo contra a multidão que os cercava. Pouco depois, as tropas dos capitães arrombavam os portões do prédio mais odiado de Portugal e os espiões, torturadores e assassinos fugiam por saídas secretas e eram caçados como ratos nas ruas de Lisboa.

O momento mais emocionante é a invasão do presídio e a libertação dos presos políticos que correm para os braços de suas famílias.

Foi a vitória da coragem e da serenidade contra a violência e o ódio.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Pensamento do Dia

 


Bolsonarismo fala com valores do Brasil profundo

Com índices pouco favoráveis na economia e uma criticada gestão da pandemia de covid, a maior crise de saúde em um século, Jair Bolsonaro não só tem se mostrado um candidato competitivo à reeleição como vem registrando crescimento nas últimas pesquisas.

Analistas viram, nos números mais recentes, os efeitos favoráveis de alguns fatores para Bolsonaro: saída da corrida presidencial do ex-juiz Sergio Moro, implementação do programa Auxílio Brasil e atual fase da pandemia, com sensação maior de otimismo entre a população após a reabertura.

O desempenho nas últimas pesquisas tem atingido um índice superior à faixa entre 20% e 25% que o eleitorado mais fiel a Bolsonaro soma normalmente nos levantamentos.

"O percentual que avalia o governo Bolsonaro como ruim e péssimo - ou seja, a rejeição a ele - está muito acima de todos os outros governos, com exceção de Dilma no segundo mandato e de Temer. Mas o que chama atenção é o percentual de ótimo e bom. Há uma grande resiliência", diz Bráulio Borges, economista-sênior da LCA e pesquisador-associado do FGV IBRE.

Em março, o país teve a maior inflação para o período em 28 anos. Em 12 meses, a alta de preços acumula 11,30%, o maior percentual desde outubro de 2003.

O Brasil ficou em 32° lugar em uma lista de desempenho do PIB (Produto Interno Bruto) de 54 países nos últimos dois anos.

Os pesquisadores Fabio Peixoto Bastos Baldaia, Tiago Medeiros Araújo, Sinval Silva de Araújo e Rodrigo Ornelas, do Instituto Federal da Bahia, estão desenvolvendo uma análise sobre o apoio relativamente estável a Bolsonaro em setores da sociedade brasileira.

"Uma coisa que a gente percebeu é que o bolsonarismo não é um reflexo de fenômenos que estão acontecendo fora do Brasil, de ascensão da extrema direita, como Donald Trump, [Viktor] Orbán na Hungria ou [Rodrigo] Duterte nas Filipinas. Ou não apenas", diz Baldaia.

Ele afirma que o bolsonarismo, de fato, conseguiu explorar a dispersão de informação via WhatsApp, Telegram e comunidades de Facebook, mas já tinha uma conexão de ideias com o que chama de "Brasil profundo" - definido no texto parcial do estudo como um conjunto de práticas e de mentalidades que depois se tornam comportamentos.

Os pesquisadores veem no bolsonarismo um grupo identitário, que demarca fronteiras com o restante da população, e tem eco tanto em segmentos da classe trabalhadora brasileira como em setores sociais médios e, ocasionalmente, em parte da elite.

"O bolsonarismo tem uma lógica de buscar coesão. É um movimento identitário nesse sentido. O bolsonarismo está reforçando a identidade de grupo o tempo todo."

"O próprio Bolsonaro e as lideranças-satélite - que são os filhos de Bolsonaro e outros nomes de destaque no movimento - estão o tempo todo tentando expurgar aqueles que não comungam desses ideais e o tempo todo estão reforçando a narrativa de que esse grupo formaria os verdadeiros brasileiros."

A linha de pensamento que galvaniza a base e se comunica com setores do "Brasil profundo" passa por temas como "olho por olho, dente por dente" em relação ao crime, o moralismo contra comportamentos sexuais fora dos padrões e uma certa aversão à política como um todo.

"Mas são coisas que já existiam antes de Bolsonaro. Só que ele deu uma cara, um formato e um sentido de pertencimento para essas pessoas", afirma Baldaia.

Outro atrativo do bolsonarismo é uma narrativa simplificada que rejeita lidar com constatações científicas (como o aquecimento global) e novas configurações de vida que vêm modificando o mundo nas últimas décadas.

A ordem da tradição é usada como defesa.

"Nesse mundo tão complexo, as pessoas estão em busca de uma narrativa mais simples, conhecida, que dê segurança e sentido e ajude a entender esse caos", diz o pesquisador.

Segundo pesquisadores, Bolsonaro lança mão de simplificações para justificar problemas econômicos

Tiago Medeiros Araújo, outro pesquisador do estudo, aponta que esse mecanismo também é usado pelo presidente para explicar os problemas econômicos.

"Como a economia é complexa demais, ele consegue terceirizar a responsabilidade para coisas que estão acontecendo em outros países: 'Tem inflação, tem desemprego? Bom, isso está acontecendo no mundo inteiro' é como ele se defende", afirma.

"Ou quando ele pressiona os governadores sobre o ICMS na alta dos combustíveis. Bolsonaro diz 'O que eu pude fazer sobre a política de combustíveis eu já fiz, agora é com os governadores'. Ele terceiriza o problema e joga de maneira conflitiva."

As questões econômicas se transformam em uma temática que o bolsonarismo procura monopolizar: a causa moral.

"Nos grupos de WhatsApp de motoboys, de caminhoneiros, a questão econômica é muito ligada à causa moral. É representada, por exemplo, pelo pai de família que sai de casa para se arriscar", diz Baldaia.

"São populações de vulnerabilidade muito grande, e aí envolve uma dimensão da macheza: 'Tem que ser muito homem para dirigir a moto, para rodar o caminhão, para expandir fronteira agrícola no oeste da Bahia, em Goiás'. Isso facilita a ascensão do bolsonarismo, com a figura do machão que bate na mesa para resolver."

"Bolsonaro diz então que vai dar condições para esse homem prosperar e sustentar a família porque o estado não dá nada, ele só atrapalha: apreende mercadoria, multa. Então o discurso dele vai nesse sentido, dizendo 'Eu vou suspender as multas ambientais, eu vou facilitar para você o que o estado dificulta'", analisa Baldaia.

Outra forma de "simplificação" empreendida por Bolsonaro, segundo o pesquisador da IFBA, é o de atacar a institucionalidade democrática e a tentativa de desestabilizar o equilíbrio entre os poderes.

"Nessa visão de mundo, tudo que envolve institucionalidade é coisa complicada. STF [Supremo Tribunal Federal] é coisa complicada. Se Bolsonaro não conseguiu fazer, apoiadores repetem, foi porque as instituições não deixaram. Porque a Câmara atrapalha, o Senado atrapalha, os governadores atrapalham."

Na última quinta-feira, o confronto com o STF teve nova crise com a concessão do indulto ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado um dia antes pelo Supremo justamente por tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União.

Na visão do sociólogo Jessé Souza, conhecido por estudar camadas da população do "Brasil profundo" em livros como Os Batalhadores Brasileiros: Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? (editora UFMG, 2010), "o tema chave aqui é a necessidade de 'reconhecimento social' - no caso, a partir da identificação com a figura de um líder forte. Os dois grandes terrenos populacionais do Bolsonaro são do 'branco pobre' do Sul e de São Paulo e os evangélicos de todas as cores".

O sociólogo aponta, ainda, o ressentimento como um dos elementos do apoio a Bolsonaro.

"Ele atualiza no Brasil a manipulação da raiva e do ressentimento de quem empobreceu com o capitalismo financeiro sem saber o porquê. (...) Passa então a ser joguete do líder no qual veem como um dos seus: finalmente alguém tão raivoso e ressentido quanto eu na presidência!"

Corrupção, nunca mais?

Os homens são atormentados pelo pecado original dos seus instintos antissociais, que permanecem mais ou menos uniformes através dos tempos. A tendência para a corrupção está implantada na natureza humana desde o princípio. Alguns homens têm força suficiente para resistir a essa tendência, outros não a têm. Tem havido corrupção sob todo o sistema de governo. A corrupção sob o sistema democrático não é pior, nos casos individuais, do que a corrupção sob a autocracia. Há meramente mais, pela simples razão de que onde o governo é popular, mais gente tem oportunidade para agir corruptamente à custa do Estado do que nos países onde o governo é autocrático. Nos estados autocraticamente organizados, o espólio do governo é compartilhado entre poucos. Nos estados democráticos há muito mais pretendentes, que só podem ser satisfeitos com uma quantidade muito maior de espólio que seria necessário para satisfazer os poucos aristocratas. 

Aldous Huxley

Mais ideias, menos personalismo

É impressionante como a atual sucessão presidencial é vazia de ideias e rica em culto a personalidades. É uma confirmação de nossa tradição política histórica. Os holofotes se concentram na trajetória pessoal e características dos personagens que protagonizam a disputa, restando aos partidos e programas um papel secundário e acessório. Isso resulta de uma eterna espera de um salvador da pátria, um super-herói, uma figura mitológica, um “deus” onipotente e onipresente que vai nos redimir de todos os males. Foi assim com Vargas, Jânio e Collor. E, hoje, é revivido em torno das lideranças carismáticas de Lula e Bolsonaro. A alternativa ao populismo seria certamente muito mais trabalhosa.

O Brasil se encontra mergulhado em profunda crise. O crescimento da economia em 2022 será pífio. A inflação inferniza o cotidiano da população. O desemprego é superior a 11%. Os juros estão nas alturas e garroteiam o consumo e a produção. A tão necessária reforma tributária continua em banho-maria. O presidencialismo brasileiro encontra-se cada vez mais atrofiado. As desigualdades sociais e regionais são escandalosas. A agenda ambiental foi praticamente abandonada. A democracia volta e meia é ameaçada. A qualidade da educação continua claudicando em patamares insatisfatórios. A eficiência estatal é cada vez menor. A crise fiscal é empurrada com a barriga. É sobre isso que os candidatos à Presidência da República deveriam se posicionar. No entanto, ficamos a discutir qualidades e defeitos pessoais que envolvem Lula e Bolsonaro.

Não se tem notícia de quais são os programas de governo que legitimam as aspirações presidenciais dos principais candidatos. Exceções pontuais existem em outras candidaturas. Mas, vamos combinar, não é isso que pauta o debate nacional. A fé que nos move é que o salvador da pátria eleito saberá o que fazer depois.


A terceira via não colocará suas ideias nas ruas enquanto não escolher uma candidatura viável e competitiva. Ciro Gomes tenta, isolado, furar a bolha da polarização. Mas o debate nas redes sociais e na cobertura jornalística se concentra no confronto entre Lula e Bolsonaro. E, daí, não se vislumbra um desenho claro de projeto para o futuro do país.

Bolsonaro perdeu dois pontos simbólicos que rechearam o conteúdo de sua campanha em 2018: o combate à corrupção, com o afastamento de Sergio Moro, e a agenda liberal de Paulo Guedes, que hoje jaz na poeira das gavetas de arquivos abandonados. Escora-se na pauta conservadora de costumes e no combate aos moinhos de vento do fantasma comunista. Evita discutir a crise econômica e social e alimenta o antipetismo.

Lula realça as conquistas do passado, espalha bravatas como a da imagem da crise da Ucrânia resolvida numa mesa de bar, passa longe de qualquer autocrítica sobre a corrupção e a desastrosa condução da política econômica nos governos petistas. Surfa na rejeição ao atual governo. Sobre o futuro, acena com uma agenda regressiva, incluindo a revogação das reformas trabalhista e previdenciária e o fim do teto de gastos.

Se o rumo da campanha for este, estaremos em maus lençóis. Há 230 anos morria Tiradentes. Certa vez, ele disse: “Se todos quisermos, poderemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-la”. Mas isso não virá com o vento nem cairá com a chuva, dependerá fundamentalmente de nossas escolhas.

Bolsonaro quer os militares como juízes das próximas eleições

O que falta para que se acredite que Bolsonaro não reconhecerá os resultados das eleições de outubro próximo se perdê-las? E que imagina contar para isso com o apoio das Forças Armadas? Não vê quem não quer ver, ou é ingênuo, ou cúmplice dele.

Em fevereiro último, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral, as Forças Armadas encaminharam propostas para tornar mais seguro o processo eletrônico de votação. Na verdade, foram mais perguntas sobre o processo do que propostas de alterações.

Ao todo, 80 perguntas, respondidas pelos técnicos do tribunal num relatório de 700 páginas. O senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) pediu enviou ofícios ao ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Oliveira, que tornassem públicas as perguntas e as respostas.

Bolsonaro, reunido, ontem, no Palácio do Planalto com parlamentares que o apoiam, depois de voltar a desacreditar mais uma vez o sistema eleitoral, antecipou-se ao general e revelou uma das propostas de alterações sugeridas pelos militares:



“Quando encerra eleições e os dados chegam pela internet, tem um cabo que alimenta a ‘sala secreta do TSE’. Dá para acreditar nisso? Sala secreta, onde meia dúzia de técnicos diz ‘quem ganhou foi esse’. Uma sugestão é que neste mesmo duto seja feita uma ramificação, um pouco à direita, porque temos um computador também das Forças Armadas para contar os votos”.

Dito de outra maneira: a sugestão dos militares, encampada pelo presidente da República, é que às Forças Armadas seja dado acesso direto e simultâneo com o tribunal à apuração dos votos que é feita pelos tribunais regionais eleitorais e repassadas a Brasília.

Em julho do ano passado, após ataque de Bolsonaro ao sistema eleitoral, o tribunal negou a existência de “sala secreta”. Segundo o tribunal, “a apuração dos resultados é feita automaticamente pela urna eletrônica logo após o encerramento da votação.”

“Sala secreta” um modo encontrado por Bolsonaro para lançar suspeição sobre o sistema de votação, é um espaço seguro onde apenas os técnicos responsáveis pela operação são admitidos. Eles não interferem na verdade expressa pelos números computados.

Cabe à Justiça Eleitoral zelar pela integridade e a correção do sistema de apuração de votos, não cabe às Forças Armadas. Foi por meio desse sistema que Bolsonaro se elegeu deputado federal durante quase 30 anos e presidente da República em 2018.

O medo de ser derrotado daqui a pouco mais de 5 meses é o que faz Bolsonaro levantar suspeição sobre o sistema de apuração. Donald Trump, derrotado por Joe Biden, fez a mesma coisa, mas só depois das eleições que estava certo de que ganharia.

Para alarmar ainda mais a sua turma, Bolsonaro advertiu os parlamentares que atenderam ao seu convite para participar de mais um ato de campanha fora de hora e transmitido para todo o país pela televisão do governo:

“Não pensem que uma possível suspeição da eleição vai ser apenas no voto do presidente. Vai entrar no Senado, Câmara, se tiver, obviamente, algo de anormal”.

Quem dirá que houve “algo de anormal”? Ele? As Forças Armadas? E se ele e as Forças Armadas disserem que “algo de anormal” aconteceu, qual a palavra que valerá? A da Justiça Eleitoral atestando a validade dos resultados? A palavra de Bolsonaro e dos militares dizendo o contrário?

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Pensamento do Dia

Ivailo Tsvetkov (Bulgária)

 

A luz do Sol desinfeta as urnas

Com seu conhecimento da História da República e com sua experiência no poder, Fernando Henrique Cardoso adverte há tempos contra crises que saem do nada. A maior delas foi a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Colocou o país na borda de uma guerra civil, sem motivo nem propósito. Jânio tinha um golpe na cabeça, é verdade, mas a maquinação estava só na cabeça dele, como se viu. 

Jair Bolsonaro alimenta uma crise semelhante e colocou no tabuleiro conflitos com o Supremo Tribunal Federal e com a Justiça Eleitoral. Para quê? Afora a vontade de permanecer no governo, não se conhece seu projeto para reduzir o desemprego ou a inflação.

Em poucos dias, surgiram dois focos críticos. 

Um é o perdão concedido ao deputado Daniel Silveira. Como o alcance da medida não afeta a inelegibilidade do cidadão, a encrenca desemboca num falso problema. A menos que o Congresso aprove uma lei mudando a regra, o que será jogo jogado.

O segundo foco surgiu com a nota do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira, vendo “ofensa grave” numa afirmação “irresponsável” do ministro Luís Roberto Barroso. O magistrado havia dito que as Forças Armadas vêm sendo orientadas para duvidar das urnas eletrônicas.


Barroso não ofendeu as Forças Armadas, basta ler o que ele disse. Elogiou-as. Ademais, a suspeição contra o processo eletrônico de votação é arroz de festa na retórica do presidente Bolsonaro. 

O ministro da Defesa lembrou em sua nota que as Forças Armadas têm assento na Comissão de Transparência das Eleições (CTE) e “apresentaram propostas colaborativas, plausíveis e exequíveis, no âmbito da CTE, calcadas em acurado estudo técnico realizado por uma equipe de especialistas, para aprimorar a segurança e a transparência do sistema eleitoral, o que ora encontra-se em apreciação naquela Comissão”.

O nó da questão está no final da frase: “ora encontra-se em apreciação naquela Comissão”.

Fica a suspeita de que foram apontadas vulnerabilidades na coleta dos votos e na sua totalização. Esse debate pode ser feito já ou depois da eleição. Se for deixado para depois, importa-se a encrenca criada por Donald Trump nos Estados Unidos. É melhor fazê-lo logo. Como ensinou o juiz americano Louis Brandeis em 1913, “a luz do Sol é o melhor desinfetante”.

O homem fracassou

O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo. 


(...) O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.

O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: ‘Senhoras e senhores, eu sou um canalha’”. 

E, em tom eloquente: 

- Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou.
Nelson Rodrigues, entrevista ao repórter J. J. Ribeiro, do jornal O Opiniático

Indulto engatilhado

Os milicianos têm método. Em sua expansão territorial no Rio, saindo da zona oeste em direção à zona sul, eles oferecem guaritas de segurança nas ruas. Após a recusa, vem a onda de furtos e roubos de celulares e carros, os quais —por milagre!— são encontrados intactos no dia seguinte. Cria-se a situação e, com ela, nova oferta de proteção, ameaçadoramente irrecusável. É o teatro do crime.

Em Brasília encena-se no momento o teatro do golpe. O deputado Daniel Silveira —ex-PM que rasgou a placa em homenagem a Marielle Franco— sabia desde sempre que seria condenado pelo STF e poderia pegar longo tempo de prisão e perder os direitos políticos. Mesmo assim, fez o jogo do chefe, pois também sabia que o indulto estava engatilhado. A bela palavra "graça" nunca foi tão aviltada.

Em arranjo disposto nos mínimos detalhes, Silveira —que nas últimas semanas conversou diversas vezes com Bolsonaro e os generais do Planalto— nem disfarçou suas intenções. Ao contrário, agiu da maneira mais exibicionista possível, recusando-se a usar tornozeleira, dizendo que não aceitaria a decisão do Supremo e exigindo um julgamento no Superior Tribunal Militar.

As costas quentes estendem-se até o presidente da Câmara, Arthur Lira, que não levou ao plenário um parecer do Conselho de Ética sugerindo a suspensão do mandato de Silveira. Para os tolos ou para os golpistas (ambos navegam no mesmo barco), o deputado continuou vestindo a fantasia de defensor das liberdades de opinião.

Sem conseguir aproximar-se significativamente de Lula, o líder das pesquisas, e com rejeição de 60%, Bolsonaro está vendo o caminho da reeleição se fechar. Não tem como explicar a corrupção no governo, o desemprego, a inflação, a fome. Resta-lhe manter as milícias digitais incendiadas, afrontar, ao lado das Forças Armadas, o STF, adversário preferido, e tumultuar o país. Os sobressaltos estão aí. Virão outros.