quarta-feira, 29 de maio de 2024

Mundo sem rótulos


Quero viver num mundo em que os seres sejam somente humanos, sem outros rótulos, sem serem golpeados na cabeça com uma régua, com uma palavra, com um rótulo.

Pablo Neruda

Brasil, Canadá e Bangladesh: há semelhança?

Tão distintos, e tão parecidos! Pela maioria dos indicadores usuais – PIB e seu crescimento, IDH, esperança de vida, mortalidade infantil, etc. -, as regiões do título são muito diferentes uma da outra. No entanto, nessa nova era em que estamos, tornam-se cada vez mais semelhantes. O “desenvolvimento econômico” é o grande responsável por essa aproximação.

Por muitos anos, aqueles treinados em economia, como eu, foram instruídos na noção de que o dito “desenvolvimento econômico” traria, em síntese, mais e rica homogeneidade global! Por conseguinte, todos buscavam facilitar tal processo. A promessa era que o “desenvolvimento” traria melhorias no padrão de vida de todos. Em suma, a felicidade geral!

A ideia de buscar o desenvolvimento continua a ser perseguida por governantes à direita e a esquerda. E aonde essa busca nos tem levado?

No Canadá, em região não distante de Vancouver, restos carbonizados de árvores caem ao solo ao serem tocados, e esqueletos de postos de gasolina demonstram a ferocidade das queimadas ali ocorridas, cuja fumaça chegou à Baltimore, Barcelona, Berlim e além. Os incêndios queimaram área maior que Flórida e lançaram na atmosfera quase três vezes as emissões anuais do país!

Em Bangladesh, a água salobra “está em nossos rios e em nossas xícaras”, dizem habitantes de áreas costeiras, muitos dos quais, sem alternativa, cozinham com água contaminada, e em seguida sofrem doenças renais e outras! Uma estação de tratamento de água, construída em 2005 com a promessa de melhorar a vida de muitos e criar “emprego e renda”, está abandonada há anos, devido a custo elevado e brigas políticas. Apesar de privatizada, a unidade segue inoperante. A terceira maior cidade do pais, Khulna, já foi um centro de “desenvolvimento”, com moinhos, pujante indústria de pesca, estaleiros e outras atividades geradores de “emprego e renda”. Cheias frequentes, ciclones e ressacas marítimas deprimiram as fontes de água potável, com a intrusão de água do mar comprometendo a disponibilidade de água doce e as demais atividades.

Só na Europa, existem 1.200 barragens impedindo a migração de peixes. Estudo recente estima, desse 1970, mundialmente, uma queda de 80% – repita-se, 80%! – na população de peixes migratórios! A queda é ainda maior na América do Sul e no Caribe! Não apenas as barragens causam tal exaustão: também a poluição, o desvio das águas dos rios e a pesca predatória são responsáveis. Vale dizer, o “desenvolvimento econômico”!

No Rio Grande do Sul, ainda mais grave é a situação de mais de meio milhão de brasileiros; isso, num estado até recentemente tido como dos mais “desenvolvidos” do nosso país!!

E assim, de “desenvolvimento” em “desenvolvimento”, vamos criando desastres e comprometendo, mundo afora, as chances de nossos filhos e netos terem vidas saudáveis, com segurança.

No RGS, mais que “reconstruir”, é hora de construir de maneira diferente, tornando-se exemplo para toda a aldeia global, cujos habitantes estão, cada vez mais, ameaçados pelo “desenvolvimento”.

Quando a verdade vale mais que um salário ou posição

Enquanto o Rio Grande do Sul enfrenta as consequências das enchentes deste mês, os australianos começam a se preparar, ainda em junho, para a estação de fogo nas florestas, evento que ocorre todo ano entre novembro e janeiro do ano seguinte.

Os fogos nas matas da Austrália acontecem há milhões de anos e contribuíram até mesmo para criar características próprias da fauna e da flora deste continente. Os incêndios mais destrutivos são precedidos por altas temperaturas, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes. Estes três fatores encontram seu "prato-feito" nas florestas de eucaliptos – a maior parte do ano extremamente secas e sempre impregnadas de seu óleo natural.


No entanto, em seus mais de 60 mil anos vivendo nesta terra, os aborígenes desenvolveram meios de contornar ou evitar situações catastróficas. Nas últimas décadas, os ex-colonizadores europeus, ou os atuais governos dos Estados, acolheram velhas práticas dos povos originários e acabaram por adotar ou adaptar suas técnicas seculares. São as chamadas backburn, ou seja, as queimas preventivas, em áreas de maior risco. Esta queima é coordenada e feita em várias áreas pelos bombeiros rurais. Destes, 72.490 são voluntários. O orçamento de combate ao fogo é da ordem de 534 milhões de dólares por ano. E, naturalmente, bombeiros e polícia investigam as causas da maioria desses incêndios – que podem ter origem criminosa ou por descuido, embora muito raramente. Mesmo as populações das menores vilas no interior são informadas e adotam medidas para encarar esses eventos.

Os incêndios de novembro de 2019 a janeiro de 2020 foram os mais intensos e abrangentes já ocorridos aqui, e tiveram ampla cobertura internacional. No Estado de New South Wales, onde vivo, foram atingidos cinco e meio milhões de hectares, parte do total dos 243.000 quilômetros quadrados que arderam no país. Isto resultou na destruição de 2.779 casas e na morte de 34 pessoas.

A maioria da mídia australiana, consultando cientistas, meteorologistas, agrônomos e ecologistas foi quase unânime em reportar os fatos como uma evidência inegável e aterradora do aquecimento global. O "quase", acima, ficou por conta da organização News Corp Australia, de propriedade de Rupert Murdoch. Esse "quase" é para ser lido como: "de forma alguma", ou "muito pelo contrário".

Murdoch, nascido na Austrália e naturalizado norte-americano, é dono de um império de empresas, entre elas a Fox Corporation, The Wall Street Journal, HarperCollins e o The New York Post. As empresas americanas abertamente apoiaram George W. Bush e Donald Trump. A mim não incomoda a tendência política ou o negacionismo gerenciado e apregoado por Murdoch. É um direito dele. Ele possui ainda jornais na Inglaterra e é dono também de cerca de 65 por cento da mídia impressa e televisiva na Austrália.

Embora as polícias e os bombeiros estaduais não tenham encontrado nem um só caso de fogo intencional nos incêndios em questão, a News Corp Australia, segundo sua gerente financeira e comercial Emily Townsend, fez circular "uma campanha de informações falsas" apresentando uma "cobertura irresponsável e perigosa" da crise. Em e-mail dirigido ao chefe executivo Michael Miller, Emily diz que sentiu "severo impacto pela cobertura mentirosa dos incêndios que visou desviar a atenção da razão verdadeira dos incêndios – que é o aquecimento global – mudando o enfoque para incêndios premeditados".

Emily já vinha ocupando esse alto cargo executivo por cinco anos. Neste e-mail, ela prossegue: "As reportagens que vi no The Australian, The Daily Telegraph e no Herald Sun são não apenas irresponsáveis; são danosas para as comunidades. (...) Sinto até uma espécie de náusea porque, de certa forma – e no entender de alguns –, eu estive contribuindo para a disseminação desse negacionismo com respeito ao aquecimento global". E para terminar esse e-mail – através do qual ela formaliza a sua demissão da empresa –, ela confessa: "É injusta e inescrupulosa a forma como esta companhia vem agindo com relação ao aquecimento global".

Gestos corajosos como este de Emily me fazem lembrar que, mesmo em meio às maiores catástrofes – e dentre elas a do negacionismo climático –, ainda se pode encontrar profissionais que arriscam tudo a bem da exatidão daquilo que virá a ser notícia.

Marcus Cremonese