sexta-feira, 12 de abril de 2019

Brasil, salvação vem do campo


Mares revoltos

Há dois balanços dos cem primeiros dias do governo Jair Bolsonaro: o do próprio Bolsonaro, que admite “mar revolto”, mas vê “céu de brigadeiro”, e o da opinião pública, que só vê o “mar revolto” que engoliu 15 pontos na popularidade do presidente.

O pacote de medidas de ontem foi uma clara tentativa de fugir de um balanço analítico e forçar uma contabilidade aritmética. Na solenidade, Bolsonaro confirmou o 13.º salário para o Bolsa Família, a independência do Banco Central e o polêmico ensino domiciliar.


Muito além dessas questões pontuais, que geram acalorados debates, a palavra-chave dos cem dias de Bolsonaro é: ideologia. Enquanto condena o excesso de ideologia da era PT, o presidente se pauta, a cada ato, a cada fala, a cada viagem, exatamente por um excesso de ideologia. Só que do avesso.

Isso causou os piores momentos e as maiores críticas ao início do governo, com a divulgação de um vídeo asqueroso contra o Carnaval, os elogios chocantes aos ditadores sanguinários Stroessner e Pinochet, a constrangedora opinião de que o nazismo era de esquerda, a veneração quase infantil a Donald Trump, a reinvenção da diplomacia nas relações com Binyamin Netanyahu. Além de reinventar a história, Bolsonaro trouxe para a Presidência as suas crenças pessoais.

O nome mais simbólico desses cem dias não foi de nenhum ministro, como Paulo Guedesou Sérgio Moro, nem mesmo do próprio presidente. Todas as tentativas de decifrar a “nova era” passam por Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo e agora eminência parda do governo, capaz de encantar os filhos de Bolsonaro, de sentar-se no lugar de honra de um jantar para o presidente, de xingar o vice Hamilton Mourão e generais do governo. E mais: de nomear os ministros das Relações Exteriores e da Educação, grandes responsáveis pelo “mar revolto”.

É por excesso de ideologia que o MEC está como está, o Itamaraty refaz a história e promove dança de cadeiras, o vice, os generais e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, têm de consertar os erros com a China e o mundo árabe. E o que Bolsonaro ganha com isso? Nada além de dor de cabeça e apoio de quem já o apoia.

Um destaque nos cem dias é, inequivocamente, a desenvoltura dos três filhos mais velhos do presidente. Flávio recuou diante das confusões do motorista todo-poderoso. Eduardo arvorou-se chanceler e infiltrou sua turma por toda parte, até na Apex, como denuncia o embaixador Mário Vilalva, o segundo presidente do órgão a ser defenestrado em três meses.

Quanto a Carlos, que se refestelou no Rolls-Royce presidencial na posse: ele cuida da infantaria e da cavalaria da internet. A campanha acabou, mas o “menino” continua brincando de games contra inimigos de “esquerda”. Aparentemente, todo mundo que não é bolsonarista é de “esquerda”, “petista” ou “comunista”.

Intrigante é Bolsonaro querer “uma garotada que não se interesse por política”. Como assim? A política move o mundo. Aliás, seus três filhos são políticos e ele chegou a emancipar Carlos, aos 17 anos, para disputar um mandato e virar político. O que é bom para seus filhos não é bom para os filhos dos outros?

A grande aposta do presidente, porém, nada tem de ideológica: é a reforma da Previdência, que não é de esquerda, centro ou direita, nem mesmo do seu governo. É do País.

Até aqui, as previsões de crescimento da economia caem, mês a mês, enquanto o desemprego resiste, desesperador. Um sintoma de que a reforma vai ser aprovada e inverter essa tendência é a pergunta que passou a circular fortemente em Brasília: e depois da reforma, como vai ficar o governo Bolsonaro? Taí, é uma boa pergunta.

Os 80 tiros em nossa consciência

Também adoraria falar do outono, mas as folhas da estação estão vermelhas de sangue. E com manchas de sangue estavam as bandeiras do Brasil no enterro do músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado por soldados do Exército quando levava a família a um chá de bebê dominical. O Comando Militar do Leste primeiro disse que foi resposta a uma “injusta agressão” de “tiros de criminosos”. Depois, a versão mudou. Foi “um engano” porque Evaldo estava num carro igual ao de assaltantes.

Desculpe, senhor Exército, a desculpa não cola. Em nenhum país civilizado militares fuzilam um carro sem sofrer um tiro, sem checagem da placa ou abordagem prévia. Modelo e cor de carro não podem levar a uma execução. Nem se fossem assaltantes. Em guerras convencionais, também seria execução. E só acontece num país desgovernado, que perdeu o rumo na segurança pública. Que faz do enfrentamento com violência máxima seu mantra para “reduzir a criminalidade”

Cadê os tuítes do presidente da República e seus filhos? O general vice-presidente e os ministros também têm o dever de se pronunciar sem covardia ou mimimi sobre esse crime hediondo e a farsa montada pelos soldados. Eles foram afastados, presos. Não tenho ideia do desfecho do julgamento, mas nosso histórico de impunidade é desanimador.

Esse homicídio transcende o Rio de Janeiro. O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, chamou o fuzilamento de “acidente lamentável” e o ministro da Justiça, Sergio Moro, de “incidente trágico”. Um fato isolado. Não. Não é dissociado de uma política anticrime que manda acertar a cabecinha. O governador do Rio, Wilson Witzel, após dias se recusando a emitir “juízo de valor”, cedeu às pressões e chamou de “erro grosseiro”. Incidente? Acidente? Erro?

Pensei sobre o que conversaria a família no momento do fuzilamento. Que música escutariam? O que programavam depois do chá de bebê? O pai tocava cavaquinho no grupo Remelexo da Cor, era segurança de creche e querido. O casal estava junto havia 27 anos. “Perdi meu melhor amigo”, gritava a viúva, Luciana Nogueira. “Saí do carro, pedindo que parassem. Gente, era o quartel! Eles continuaram a atirar. Ficaram de deboche.” Admiro Luciana por sua coragem ao sair do carro e implorar aos soldados protegidos por capacete, num destemor vindo da certeza da inocência e do amor à família. Escuto sua dor de soluços roucos.

Enquanto as autoridades não entenderem que são também responsáveis por gatilhos nervosos que matam inocentes, estaremos perdidos. Moro disse que “lamentavelmente esses fatos podem acontecer”. Não podem não, Moro. É bom explicar direitinho seu pacote anticrime que permite matar em situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Os soldados podem alegar tudo isso. E aí?

Não se permitam esquecer do Evaldo, da viúva e de seu filho de 7 anos que viu o pai morrer. Ninguém pode ser vítima da boçalidade de quem porta um fuzil em nome do Estado. Militares não nasceram para patrulhar as ruas. Bolsonaro não nasceu para ser presidente e, sim, militar. Foi o que ele disse. Numa semana assim, eu sou tomada de escusável medo, surpresa e violenta emoção. A sorte é que, por princípio, nunca terei uma arma. Nem vocação para matar.

Pacote empilha projetos desconexos para vencer impressão de paralisia,

O que fica do discurso de pouco mais de quatro minutos de Jair Bolsonaro na solenidade de lançamento de um pacote desconexo que junta medidas importantes e outras irrelevantes por ocasião dos cem dias de governo é frase do presidente de que sua administração navega em “céu de brigadeiro”.

Trata-se de uma boa dose de desconexão da realidade que marcou os três meses inaugurais de seu mandato. O empacotamento de medidas tão díspares, no entanto, trai as palavras do presidente e evidencia uma ansiedade generalizada de mostrar que a gestão vai sair da paralisia provocada por excesso de polêmicas ideológicas bestas e inexperiência da equipe —a começar do comandante.


Entre as medidas relevantes estão o projeto que dá autonomia ao Banco Central, o acordo de cessão onerosa com a Petrobras, a uniformização de regras para nomeações de dirigentes de bancos públicos com as exigências que já vigoram para instituições privadas e o “revogaço” que vai limpar a burocracia estatal de uma série de normas já caducas.

São importantes porque estão em linha com promessas de campanha de destravar a economia, dando-lhe uma diretriz liberal e pró-investimento e porque sinalizam o caminho, também vendido como promessa por Bolsonaro, de profissionalizar a gestão pública.

Há aquelas medidas-pegadinha, que querem afetar grande importância quando não têm a mínima. Nesse rol estão a extinção de cargos que já estavam vazios e de conselhos criados pelo assembleismo petista que estavam desativados e —ao contrário do que podem pensar os bolsonaristas iludidos— não implicavam em jetom para os integrantes.

Há ainda as medidas que são meros “calhaus”, jargão jornalístico para uma notícia ou anúncio que você encaixa para tapar buraco numa página. Nesse grupo estão coisas exóticas como a uniformização do domínio “.gov” nos sites oficiais e a mudança na forma de tratamento nas comunicações oficiais.

E existem, por fim, anúncios que têm de ser analisados melhor porque podem significar retrocessos, como a lei que institui o ensino domiciliar, que deve gerar controvérsia com o STF, e a conversão de multas ambientais, que pode virar senha para um vale-tudo na área.

O fato é que a grande medida que se espera do governo são as reformas estruturantes. Bolsonaro falou na Previdência e prometeu empenho —que, diga-se, vem dedicando em doses maiores nas últimas semanas. Mas urge profissionalizar o acompanhamento de votos na Câmara dos Deputados, planilhando os apoios, monitorando as bancadas e se antecipando às tentativas, que virão, de desidratar o texto.

A reforma, por ora, não navega em mar de brigadeiro. Para piorar as marolas, o secretário da Receita, Marcos Cintra, tratou de jogar um arremedo de CPMF na praça ao antecipar o esboço da reforma tributária.

Claro que a Previdência não será o único projeto de todo o governo, e é compreensível a necessidade de marcar a efeméride dos cem dias com algo propositivo depois de tanta crise. Mas ou o governo volta sua energia para colocar a proposta em marcha de uma vez —até agora ela patina numa CCJ circense — ou não haverá pacote que ajude a melhorar a avaliação periclitante que Bolsonaro tenta negar.

Pensamento do Dia


Com um olho serás rei

É verdade que o excêntrico parece ser o novo normal nesta quadra mais que estranha da nossa República. É fato também que o mundo da política se movimenta no ritmo da dinâmica eleitoral. Ainda assim não é usual que três meses depois de iniciado um governo já se fale aberta e naturalmente em sucessão mesmo entre aqueles que até outro dia eram entusiastas do presidente eleito. Caso, por exemplo, dos governadores do Rio, Wilson Witzel, e de São Paulo, João Doria.

Bolsonaristas de caniço e samburá, ambos atuam com total falta de cerimônia, como se a gestão de Jair Bolsonaro fosse acabar amanhã. Witzel se assume pré-candidato e Doria age como tal. Os dois já estão buscando manter distância regulamentar do governante, cuja avaliação de desempenho nas pesquisas de opinião é a pior desde que se faz esse tipo de medição — da primeira eleição presidencial direta pós-redemocratização para cá.

Faltando três anos e praticamente nove meses para o término do mandato, é claro que há tempo de sobra para Jair Bolsonaro se acertar e recuperar fôlego suficiente para pleitear a reeleição que jura rejeitar. Mas no momento o aroma no ar não é esse, e aí se assanham os adeptos da antecedência.

Uns mais explícitos, como Witzel, outros em atuação implícita, como Doria, e ainda há os que caminham devagar e na sombra. Nesse caso está o apresentador Luciano Huck. Entre outros movimentos, o apresentador, no mês passado, pediu para conversar com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Não se sabe o assunto, mas para contar votos pela reforma da Previdência é que não foi.

E a oposição? Pobrezinha, está perdida e muito mal paga. Primeiro, vamos entender o que é oposição: partidos e políticos que se posicionaram contra Jair Bolsonaro ou com ele concorreram na eleição. Os mais importantes estão às voltas com problemas partidários internos. Fernando Haddad, com o PT de uma nota só do lema “Lula livre”, e Geraldo Alckmin, refém da resistência tucana ao avanço de Doria sobre o comando total do PSDB. Isso nas horas vagas de seu novo papel de parceiro de Ronnie Von na TV.

Desse campo Bolsonaro nada tem a temer. Já quem está aqui do outro lado do balcão tem muito a recear diante do deserto de pessoas e ideias no geral. Corremos o sério risco de repetir o critério da escolha de um governante pela lógica do “menos pior”. Foi assim quando o país quis se livrar do PT. Não poderá ser assim, mas talvez seja, se o Brasil quiser se livrar das bolsonarices que se traduzem em bizarrices.

Se as coisas continuarem ruins, o pior que nos espera será a desesperança em grau crescente. Tudo pode acontecer, da pior maneira, do jeito mais errado, e qualquer um que apareça com qualquer conversa pode convencer. A terra hoje é de cego e, nela, quem tiver um só olho poderá vir a ser coroado rei ou rainha sem que olhemos a qualidade do produto que nos parece um pouquinho melhor.

Onyx: Bolsonaro é Felipão! Só se for o do 7 a 1

A solenidade em que Jair Bolsonaro celebrou seus 100 primeiros dias de governo marcou formalmente o fim da lua de mel. É assim que os políticos chamam essa fase inaugural dos governos. No caso de Bolsonaro, a lua de mel foi regida pela Lei de Murphy. Tudo o que podia dar errado deu errado. Mas o que interessa agora é olhar para a frente.


O governo fez um balanço das 35 metas que havia estipulado. Cumpriu algo como dois terços. E baixou 18 atos. Preveem desde a regulamentação do ensino em casa até a autonomia do Banco Central. Na providência mais festejada, Bolsonaro deu 13º para o Bolsa Família. Noutros tempos, ele via a clientela do programa como "voto de cabresto" do PT. Agora, tenta segurar a coleira.

Tudo isso faz muita espuma. Mas Bolsonaro não conseguirá surfar a sua onda a menos que consiga entregar o que ele próprio elegeu como essencial: o pacote anticrime de Sergio Moro e, sobretudo, a reforma da Previdência de Paulo Guedes, sem a qual as contas públicas não entrarão nos eixos. Contas desajustadas mantêm a economia no freezer. O resfriamento do PIB eterniza o desemprego. E ainda não foi inventada a popularidade sem prosperidade.

Bolsonaro e seus operadores imaginavam que aproveitariam o calor das urnas para aprovar suas prioridades no Congresso rapidamente. O excesso de erros desvirtuou os planos.

Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil, disse que os erros foram pontuais. E comparou Bolsonaro ao Felipão de 2018, que levou o Palmeiras do limbo ao posto de campeão brasileiro. Mas esse Bolsonaro dos 100 dias está mais próximo daquele Felipão do 7 a 1. Seu governo é igualzinho a um time de futebol. Mas joga com bola quadrada, dá caneladas em si mesmo e segue as ordens de Olavo de Carvalho, um cartola que escala e arranca do time quem ele bem entende.

Um time assim só ganha no dia em gol contra puder ser contado a favor.

Deu no jornal

Racismo institucional: deputada negra é barrada por segurança da Alerj

A deputada estadual Monica Francisco foi mais uma vez barrada, desta vez por uma segurança da Alerj. Após presidir sua primeira audiência como presidente da Comissão de Trabalho da Alerj (ela comemorou no Twitter: "Primeira mulher negra a ser presidenta da Comissão"), Monica foi à sala da presidência da Alerj conversar com o presidente, deputado André Ceciliano. Quando uma segurança a impediu de entrar, colocou a mão na frente e falou: "Quem é você?". Monica usava um broche de identificação como deputada (veja na foto abaixo, no detalhe).

Em fevereiro, no Tribunal de Justiça para assistir à posse do presidente e mesmo com o broche e uma etiqueta do cerimonial, a parlamentar foi impedida de usar o elevador para autoridades e orientada a usar o destinado ao público geral, que estava sendo usado para transportar equipamentos de manutenção. 

Só neste começo de ano, três deputadas negras do Rio passaram pela mesma situação: além de Monica (duas vezes), a também deputada estadual Dani Monteiro (na Alerj) e a federal Talíria Petrone (no Congresso, em Brasília).
"Mais um caso constrangedor de racismo institucional! Já protocolamos um projeto de lei de formação para enfrentamento ao racismo voltado para servidores e terceirizados", escreveu Monica no Twitter, há pouco. O projeto de lei (299/2019) é de autoria dela e das deputadas Dani Monteiro e Renata Souza. 

"Nós iremos repetir quantas vezes for necessário: nossos corpos estarão em todos os lugares, inclusive nos espaços de decisão"

Quem atirou e matou foram soldados, mas quem paga a indenização é o povo

“Vagabunda, safada, filha da puta, cachorra…..” e muitos outros xingamentos ouviu a repórter-fotográfica “free lancer” Bete Sheila, depois de derrubada ao chão e enquanto era arrastada pelos cabelos, até ser encarcerada num porão do Forte de Copacabana por um monte de soldados do Exército, fardados e empunhando fuzis. A moça teve sua máquina fotográfica arrancada e destruída. Por que tanta covarde brutalidade? Foi porque ela e seus colegas da Imprensa estavam no Forte. E enquanto aguardavam a chegada do presidente FHC, do prefeito César Maia e suas comitivas, uma inesperada e demorada ventania fez desprender o toldo do palanque presidencial. E o toldo voou alto e foi cair no mar.

Era o início de uma noite de réveillon, a ser comemorada no Forte de Copacabana, com a presença das autoridades. Os insultos, a pancadaria e a prisão contra Bete Sheila ocorreram porque ela fotografou o palanque desabando e o toldo voando solto até cair no mar. Só por isso. Foram mais de dez soldados contra uma moça indefesa, que estava lá trabalhando para a revista Veja.

Cinco dias depois Bete Sheila foi até meu escritório. E antes de conversar comigo, chorou, chorou e chorou muito. Dela recebi procuração e dei entrada na Justiça Federal do Rio com ação indenizatória contra a União, que teve rápida tramitação.


Menos de seis meses após, a juíza federal Cláudia Valéria Bastos Fernandes assinou pesada sentença financeira para reparar os danos morais, físicos e materiais que Bete Sheila sofreu. Condenada, a União recorreu e o Tribunal Regional Federal-2 manteve a condenação. Apenas reduziu – não tão expressivamente –, o valor indenizatório que a juíza havia fixado. E através de Precatório, anos depois a repórter-fotográfica recebeu o valor da indenização.

Quem pagou a indenização? Foi a União, é claro. E dinheiro da União é dinheiro do povo brasileiro. Logo, foi o povo brasileiro que suportou o pagamento da covardia brutal e inimaginável que soldados do Exército do Forte de Copacabana cometeram contra a repórter fotográfica.

Agora, décadas depois, outra monstruosidade se repete, com o mesmo Exército, na mesma Cidade Maravilhosa, também com pessoas e famílias indefesas. Mais de oitenta tiros de fuzis foram disparados pela guarnição do Exército que fazia a segurança da região da Vila Militar de Deodoro contra o carro dirigido pelo músico Evaldo dos Santos Rosa, que morreu fuzilado.

Ele, sua filha, seu filho de 7 anos, o sogro Sérgio e uma amiga da família iam para um chá de bebê quando os militares fizeram a fuzilaria. Sérgio, também atingido, continua internado. E Luciano Macedo, um catador de sucata que foi prestar socorro, também fuzilado, continua internado em estado de coma.

A começar pelo presidente da República, nenhuma nota de pesar foi expedida pelas chamadas autoridades. Os soldados serão julgados pela Justiça da sua própria corporação. Se serão punidos? Não se sabe. Eventual absolvição não será surpresa.

As teses da “legitima defesa putativa”, do “erro escusável”, do “estado de necessidade”, do “estrito cumprimento do dever legal” e tantas e tantas outras que existem, que se criam, que se inovam, que se improvisam, poderão ser levantadas e acolhidas, ainda que tenham sido mais de 80 disparos de fuzis feitos pelo grupo de soldados do Exército.

Mas quem vai pagar mesmo é o povo brasileiro. O dinheiro do povo brasileiro. A vida não tem preço. Mas para o Direito a única forma de reparar(!) o dano é com a imposição de indenização financeira.

O advogado da família já anunciou que vai ingressar na Justiça com a ação reparatória de dano. Vencerá, é claro. A situação da União é indefensável. Mas o dinheiro sairá dos cofres da União, da mesma forma que foi o dinheiro do povo brasileiro que indenizou a repórter-fotográfica Bete Sheila.

Detalhe final: no Exército, sem haver enfrentamento, nenhum soldado atira sem receber a ordem. Nesse episódio dos 80 tiros, é importantíssimo saber quer deu a ordem.