sexta-feira, 13 de março de 2020

Até na epidemia, Bolsonaro fala apenas para seus fanáticos

A preocupação com a covid-19 se alastra pelo Brasil quase inteiro. Jair Bolsonaro vai então à TV para dizer, em primeiro lugar, que há uma pandemia declarada no mundo e que o sistema de saúde “tem limites” para atender os doentes.

Trata-se de frase tanto óbvia quanto atrocidade que intranquiliza ainda mais o país inteiro. Atrocidade desestabilizadora é um dos motes deste desgoverno.

O que pretende fazer desses limites? Dane-se.

O que tem a dizer ao país sobre providências para conter a epidemia, que ele chamava de “fantasia” da mídia faz dois dias? Dane-se.

O que tem a dizer sobre o risco de paralisia de atividades econômicas? Sobre a tensão nos mercados financeiros, sobre o risco de acidentes na finança? Sobre a disparada das taxas de juros na praça, que ora tem cara de prenúncio de recessão? Dane-se.


O que importa, como logo se ouviu em seu discurso, é espalhar a epidemia de golpeamentos institucionais e fazer chacrinha como animador de auditório de fanáticos de extrema direita.

Foi assim no discurso em cadeia nacional na noite desta quinta-feira.

Logo depois de dizer que o sistema de saúde é limitado, Bolsonaro usou o tempo de TV da Presidência da República para se dirigir a sua militância e aos líderes se suas falanges, que planejavam uma espécie marcha sobre o Congresso, um protesto convocado contra o Parlamento, para domingo próximo.

Naquele seu tom de quem dá ordem a um pelotão de fuzilamento e de quem não domina a leitura nem o português, Bolsonaro desconvocou a manifestação que ajudara a esquentar. No entanto, deu recados de que “a luta continua”. Foi apenas suspensa por causa da epidemia.

Bolsonaro é aquele indivíduo que, nesta semana, disse o seguinte sobre a agora pandemia: “Obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.

Bolsonaro mentia ao fazer seu discurso na TV ou mentia em seu discurso de Miami, sobre a “fantasia” da epidemia? Tanto faz. Nada do que diz faz parte do universo da razão ou de “união, serenidade e bom senso”, como recomendou ao país na sua chave de cadeia nacional de terça-feira (10).

Gente de seu governo prepara um pacote de remendos econômicos, a ser anunciado na segunda-feira que vem (16), dizem. No que importa, nos assuntos essenciais, seu governo não tem o que dizer.

O que seu governo fará para remediar o SUS, com recursos já escassos e que serão atropelados pela epidemia?

Qual a orientação de políticas nacionais para a contenção da epidemia? Deve-se deixar o vírus circular ao léu, como agora, ou é preciso esvaziar o quanto possível reuniões e aglomerações, como tantos países fizeram e fazem, suspendendo atividades escolares, esportivas e similares?

Para piorar, a loucura política que é parte do programa de degradação institucional que é o seu governo agora é acompanhada pelo Congresso, que resolveu gastar mais sem ter nenhum programa organizado, justificativa ou receita para bancar a despesa.

O desgoverno então se espraia como a praga do coronavírus. Como se não bastasse o pânico financeiro importado, o conflito desordenado nos Poderes alimentou a ruína no mercado. O desastre foi apenas contido pela atuação de técnicos de Banco Central e, de modo maciço, do Tesouro.

O país está desgovernado pela maluquice perversa.

Haverá futuro?

As riquezas continuam sendo enormes, o país tem biodiversidade, é uma potência. Basta haver um governo mais capaz no futuro
Domenico De Masi

Desvios da frágil República

O Brasil aceitou naturalmente a informação de que a perturbação nacional do processo democrático, que culminou com os surpreendentes resultados das eleições de outubro de 2018, tivesse sido decidida pela intervenção das redes sociais na formação da opinião eleitoral.

Um único dedo, de uma única mão, o dedo indicador das digitações, armou a subversão política da frágil República e colocou no desvio nosso destino como povo e nação. Pelo fato elementar de que a mudança resultante passou a ser expressão de uma vontade única, a de um pequeno grupo de pessoas que agem como uma só e personificam uma só. A que resulta de caprichos ideológicos e sectários e deformações de uma mente autoritária, antipolítica, que trata o povo e a democracia como estorvos.


A força subversiva do dedo antidemocrático refabrica o país, relativiza a força legítima das instituições políticas, o modo da interferência popular no traçado do destino da nação, reformula direitos políticos, cria uma nova categoria de brasileiros de terceira classe, os que votam sem saber no que estão votando, os que já não são considerados sujeitos de direito e de vontade política.

O sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre (1901-1991), há algumas décadas, já havia chamado a atenção para o renascimento do caráter estamental, pré-moderno e pré-capitalista, na sociedade moderna. Nesse sentido, uma sociedade resultante de um novo peneiramento social, que exclui multidões das possibilidades que o capitalismo é capaz de criar e não é politicamente capaz de distribuir e realizar.

As pessoas já não são o que conseguem com seu esforço, o trabalho e o estudo, mas o que seu nascimento permite que sejam. Mesmo que não sejam nascimentos da incubadora hereditária de direitos feudais.
Uma nova classe média conspira para ser o que não é nem nunca foi. Pauta-se pela suposição de que o oxigênio da democracia, do direito e da liberdade não existe em quantidade suficiente para assegurar a sobrevivência de todos com base no princípio da igualdade jurídica e da igualdade de direitos.

Com isso, as novas gerações, a dos que estão chegando agora, estão condenadas a não ser o que poderiam ser e o que têm direito de ser. Esta já não é mais a sociedade da liberdade e da igualdade, mas tão somente a sociedade da iniquidade, a dos que quem pode mais chora menos.

Todos os dias, em todos os cantos, vemos e ouvimos afirmações e discursos sobre a naturalidade de que os jovens se conformem em ser aquilo para o que nasceram. É claro, como se ouviu num recente discurso de formatura no Rio Grande do Sul, que isso quer dizer que o oxigênio do saber e dos direitos devem ser racionados e reduzidos a privilégio da minoria rica e dos estratos mais privilegiados da classe média. O resto é só resto.

Há algum tempo, a premiada jornalista e escritora inglesa Carole Jane Cadwalladr fez uma conferência sobre “o papel do Facebook no Brexit e a ameaça à democracia”. É assustador que um dos países mais politizados do mundo e com maior discernimento político tenha sido induzido a tomar uma decisão, provavelmente equivocada e irremediável, com base em subinformação, no desconhecimento e não no conhecimento.

Tratou-se de um experimento político para colocar um cabresto na democracia e transformá-la numa ilusão digital. Violência que poderá disseminar-se por vários países e que já se dissemina por alguns, como o Brasil, citado pela conferencista. Aqui, operam variantes da mesma máquina de restrição e relativização da democracia.

Não sei se a subversão eleitoral de 2018 faz parte da mesma trama, mas faz parte do mesmo gênero de trama. Ou se os nativos da delinquência política fizeram uma inovação à brasileira para confinar no curral de uma nova sujeição a já pobre consciência política do povo brasileiro.

A conspiração digital tem à sua disposição várias portas e vários nomes, vários recursos, várias caras. Se o dedo indicador já serviu para moleque tirar meleca do nariz, agora é instrumento para colocar meleca na democracia brasileira.

Gente sem mandato digita a esmo o que quer fazer de todos nós. Mesmo o dedo do governante quando digita as opiniões que quer impor ao país, é um dedo ilegal e inconstitucional. A mão presidencial tem que ser uma mão alfabetizada e politizada, capaz de escrever as coisas por extenso, legíveis e compreensíveis. Não é isso que estamos vendo.

Outras formas de atravessamento dos direitos do cidadão estão ativos no Brasil do dedo iníquo. Foi aqui legalizada a prática do lobby. O eleitorado elege senadores e deputados, mas os lobistas podem abordar os eleitos para seduzi-los em favor de suas causas particulares e, até, mesmo anticidadãs, fora da pauta de quem os elegeu.
José de Souza Martins

Até a covid-19 dá lição a Bolsonaro e aos fiéis dos Protocolos dos Sábios de Olavão

O “Encontro Anual da Educação Já”, promovido pela ONG Todos Pela Educação, começou e terminou no dia 9, embora previsto para mais dois. Priscila Cruz, presidente-executiva da entidade, passou mal e fez o teste para detecção da covid-19. Deu negativo felizmente. O episódio, no entanto, deu “positivo” para o vírus das trevas.

Abraham Weintraub, ministro da Educação, que comanda o segundo maior orçamento da Esplanada — ou terceiro caso se inclua a Previdência, mas acho impróprio —, resolveu se manifestar no Twitter. Postou oito mensagens atacando Priscila. No momento mais eloquente, mandou ver: “Para fechar o bloco de informações sobre Priscila Cruz e sua ONG ‘Todos pela Educação’: CORONAVÍRUS!!!".


É pouco? Veio a conclusão: “Salmos 94:23: O Senhor fará recair sobre eles a sua própria iniquidade, e os destruirá na sua própria malícia; o Senhor nosso Deus os destruirá.” Weintraub afirmava com todas as letras que a covid-19 é um castigo divino que atinge os que ele considera adversários do governo.

Na terça-feira (10), em discurso em reunião acanhada, o presidente Jair Bolsonaro decidiu estrear como líder global. Refletiu em Miami: “Obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.

É difícil adequar a pontuação da fala às regras da gramática, mas está claro o sentido moral do que diz o visionário. No dia seguinte, a OMS elevou a contaminação à condição de pandemia. E, por óbvio, no que diz respeito à prevenção, a nossa maior esperança de saída da crise, com menos trauma possível, reside no trabalho da imprensa profissional, aquela mesma que é odiada pelo sábio pensador.

A estupidez impune no governo federal e no entorno de Bolsonaro é de tal ordem que essa gente está recebendo lição de moral até de microorganismo. Sim, é uma ironia. Aqueles seres insidiosos, até onde a ciência pode alcançar, são amorais e agnósticos. Fabio Wajngarten, que comanda a guerra que Bolsonaro decidiu travar contra a imprensa, voltou de Miami com a covid-19. Estão, pois, sob observação o presidente da República, todos os que integraram a comitiva e, ora vejam!, até Donald Trump.

Quando Mônica Bergamo publicou na Folha que Wajngarten havia se submetido a exame para eventual detecção do vírus, ele próprio foi ao Twitter: “Em que pese a banda podre da imprensa já ter falado absurdos sobre a minha religião, minha família e minha empresa, agora falam da minha saúde. Mas estou bem, não precisarei de abraços do Drauzio Varella.”

Assim como a crase nos textos de Weintraub, parafraseando Ferreira Gullar, o coronavírus não foi feito para humilhar ninguém. Também não estamos diante de uma lição de história. Agora que a contaminação comunitária no país é uma realidade, qualquer um de nós está sujeito a ser capturado por aquela bela ilustração: uma bolota azul, ornada de filamentos vermelhos.

Diabos! O ministro da Educação, como sempre, está errado. O vírus não escolhe seus alvos, iníquos ou não. Também ele se submete aos ditames da história e da economia. Espalha-se por intermédio de quem pode viajar — há aí um primeiro corte de classe — e, depois, na contaminação comunitária, é especialmente perverso com os pobres: outro corte de classe. Os sem-grana têm especial atração por doenças pré-existentes sem o devido tratamento. E também gostam de economizar cano de esgoto, segundo Marcelo Crivella. Por isso morrem soterrados em deslizamentos.

Como se nota, e eu sou a prova, há um risco associado a esse troço já percebido pelos seguidores dos Protocolos dos Sábios de Olavão: o tal bicho é parte da guerra contra os justos levada adiante pelo marxismo cultural...

Para encerrar: ou bem a China agiu corretamente, como notam analistas e especialistas, ao conter a expansão da covid-19 com uma severa quarentena — e não li nenhuma contestação a respeito —, ou bem estamos por aqui a brincar com o perigo, convencidos de que o bichinho, que só atacaria os iníquos, é uma fantasia da grande mídia.

Pensamento do Dia


Eu ia escrever sobre o amor

Verdade. Eu ia escrever sobre o amor. Como as pessoas se conhecem, se apaixonam e se casam usando as redes sociais e os sites de relacionamento. Como muitos também se separam pelas redes. Tentaria mostrar como esses casais exaltam em cores e sorrisos as suas histórias de amor eterno. E como outros, diante da inevitável separação, apagam os seus passos em conjunto, eliminam qualquer evidência de um que um dia estiveram casados, deletando para sempre fotos, vídeos e declarações de amor postados no Insta e no Face. Seria uma coluna mais leve, mas ainda assim de tremendo interesse para a sociedade. Mas aí veio a última do Bolsonaro.

No auge de uma pandemia que se espalha de maneira geométrica e causa pânico em todo o mundo, o presidente deu uma entrevista afirmando que "o coronavírus não é isso tudo que a grande mídia propaga”. Outra vez culpou a imprensa por exagerar a ponto de causar uma crise global que culminou com a queda do preço do petróleo. Esta deve ter sido, se não a maior, uma das maiores sandices já ditas por um presidente da República em todos os tempos. Bolsonaro deixou de ser apenas um sujeito mal-intencionado, e passou a ser uma pessoa perigosa.

Se um brasileiro seguir a orientação do seu líder e passar a menosprezar o coronavírus como se não fosse isso tudo que estão falando, ele certamente deixará de atender às recomendações feitas por médicos e sanitaristas, transformando-se num potencial candidato a ser infectado e virar um forte transmissor da doença. O presidente disse, em outras palavras, que a pandemia é uma bobagem. Vejam o tamanho da irresponsabilidade de quem governa o Brasil. Não dava mesmo para falar de amor numa hora dessa.


Nos Estados Unidos, aonde cheguei na segunda-feira, não há outro assunto. Nem a Super Tuesday vencida por Joe Biden conseguiu desmobilizar o país em torno do coronavírus. Aliás, mesmo as campanhas dos dois candidatos democratas foram reduzidas para se evitar aglomerações no dia do pleito. Em Nova York, a Universidade Columbia suspendeu suas aulas, assim como Harvard, em Boston. Hospitais de NYC já estão racionando máscaras para pacientes, médicos e enfermeiros. Falta álcool gel nas farmácias da cidade. Alguém já imaginou que algum produto um dia faltaria em Nova York?

Uma pequena cidade a 34 quilômetros de Times Square, New Rochelle, foi colocada em quarentena. Um raio de uma milha foi estabelecido ao redor da cidade, de onde ninguém passa. Ninguém entra, ninguém sai. A Itália se isolou do mundo. Mais de 110 países já registraram a presença do vírus. E o nosso presidente diz que “não é isso tudo que a grande mídia propaga”. O que Bolsonaro fez foi apenas repetir da sua maneira grosseira o que o seu ídolo Donald Trump havia escrito no Twitter na segunda-feira. Trump disse que a “Imprensa Fake News e o Partido Democrata estão inflamando (aumentando) a situação do coronavírus”.

O que líderes serenos e comprometidos com seus países devem fazer é manter a calma da população, colocar os recursos necessários para controlar ou minimizar o problema, estimular o debate sobre a questão, sugerir medidas de segurança. Nunca dizer que o problema não existe ou é menor do que as autoridades sanitárias afirmam. Ontem, Trump mudou de tom, suspendendo por 30 dias viagens da Europa para os EUA. E ontem ainda, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, anunciou oficialmente que o coronavírus ganhara de fato status de pandemia.

Enquanto Bolsonaro produz esses absurdos perigosos e Trump vai e vem, outras pessoas trabalham em favor dos seus semelhantes, distribuem sorrisos, calor humano e abraços, mesmo que abraços de mentirinha, já que a primeira recomendação para conter o avanço do vírus é evitar contatos físicos. Ontem, uma jovem universitária distribuía gratuitamente na Washington Square, em NYC, broches com a inscrição “Air Hugger”. Numa tradução livre, significaria que o portador do broche está oferecendo a todos um abraço simbólico, ele seria um “abraçador de ar”.

Era um gesto de carinho. Um gesto que, de certa forma, faz justiça a este artigo que originalmente deveria tratar do amor.

A cartilha que Bolsonaro não leu

Uma semana depois de o presidente Jair Bolsonaro ter criticado jornalistas de modo vulgar e prometido que pedirá ao empresariado que promova um boicote publicitário a jornais, revistas, rádios e televisões que o criticam, o site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou uma cartilha sobre proteção de direitos de jornalistas. Entre outras recomendações, a cartilha pede que as autoridades públicas não façam discursos que “exponham jornalistas a riscos de violência ou aumentem sua vulnerabilidade”.


Os dois fatos não são isolados. Eles evidenciam as contradições entre as orientações da cartilha e o comportamento de ministros e do próprio presidente da República. Originariamente, a cartilha foi preparada durante a gestão de Michel Temer e divulgada em 2018. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apenas a reeditou, em cumprimento às orientações que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos vem fazendo desde 1995.

A cartilha apresenta padrões internacionalmente estabelecidos para balizar as relações entre autoridades governamentais, profissionais de comunicação e a sociedade. Apresenta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da Organização das Nações Unidas. E transcreve trechos da convenção da Organização dos Estados Americanos sobre o tema. Em outras palavras, a cartilha enumera os padrões vigentes nas democracias, onde o direito de informar e a liberdade de expressão – mesmo que o que for publicado ou criticado “possa ser inconveniente aos interesses do governo” – são garantias fundamentais.

A cartilha também pede especial atenção à segurança dos jornalistas que mantêm a sociedade informada sobre crimes relacionados à corrupção e à atuação de milícias, como as que atuam no Rio de Janeiro. “A violência contra profissionais do jornalismo objetivando impedir a ampla divulgação de tais crimes impede a sociedade de cobrar das autoridades públicas o enfrentamento da criminalidade organizada, bem como prejudicam a transparência na utilização dos recursos públicos.” Por isso, o Estado deve ter “o compromisso de não sancionar qualquer meio de comunicação ou jornalista por difundir a verdade, criticar ou fazer denúncias”, diz a cartilha.

Desde que assumiu a Presidência da República, o modo como Bolsonaro se relaciona diariamente com repórteres colide frontalmente com essas orientações sensatas e fundamentais para o bom funcionamento do Estado de Direito. Basta ver, por exemplo, que no mesmo dia em que a imprensa divulgou o teor da cartilha, na portaria do Palácio do Alvorada Bolsonaro deu mais uma demonstração de grosseria. Indagado por um repórter sobre a proposta do governo para regulamentar o Orçamento impositivo, afirmou: “Está nas minhas mídias sociais. Você que a interprete, tem curso superior para isso”.

Segundo pesquisa divulgada há dois meses pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 2019 houve, em relação ao ano anterior, um aumento de 54% nos ataques físicos e morais contra profissionais de comunicação no Brasil. Em números absolutos, foram 208 ataques, dos quais 121 foram feitos por Bolsonaro por meio de entrevistas, transmissões ao vivo e em seu perfil no Twitter. O presidente não só recorre sistematicamente a uma linguagem vulgar, fazendo algumas vezes insinuações sexuais em seus rompantes, como também se vale de mentiras nas agressões contra órgãos de comunicação e expõe na internet dados pessoais de jornalistas.

Com seu comportamento cada vez mais belicoso contra a imprensa, em total oposição às recomendações de uma cartilha que certamente não leu, Bolsonaro dá a dimensão de seu despreparo e de sua intolerância. Não compreende que, quanto mais se desmoraliza como autoridade pública, mais legitimidade perde seu governo.

O sonho da Bolsa já acabou, mas ainda temos de aguentar o pesadelo de Bolsonaro…

Conforme era esperado, o sonho da Bolsa de Valores acabou. A alta permanente das cotações, que era absolutamente artificial, porque não havia motivos concretos, passou a ser usada pelo governo como uma evidência de que a economia brasileira tinha se estabilizado e agora voltaria a crescer expressivamente, conforme ocorreu no regime militar, quando o Brasil era o país que mais se desenvolvia no mundo, derrotando a Alemanha e o Japão.

Esse raciocínio rudimentar até parece ter fundamento, porque o governo de Jair Bolsonaro tem muito mais militares nos primeiros escalões do que qualquer gestão dos idos da ditadura, quando ocorreu o “milagre brasileiro”, com o PIB crescendo 11% ao ano, de 1968 a 1973.

Naquela época, o êxito do crescimento econômico foi atribuído à criação do Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) na gestão do presidente Castelo Branco (1964-1967), com Octavio Bulhões (Fazenda) e Roberto Campos (Planejamento) comandando a equipe econômica.

O programa incluiu reforma nas áreas fiscal, tributária e financeira, com incentivo a empresas em setores estratégicos, apoio às exportações, estímulo à construção civil e abertura ao capital exterior. Ao mesmo tempo, foram criadas nada mais que 274 estatais, como a Telebrás, Embratel e Infraero.

Na mesma época, surgiu o Banco Central e o governo instituiu o Sistema Financeiro Habitacional, formado pelo Banco Nacional de Habitação, com apoio da Caixa Econômica Federal.

Na tentativa de repetir o êxito administrativo do período 1968/1973), o presidente Jair Bolsonaro encheu o governo de militares, entregou a economia a Paulo Guedes, um dos maiores admiradores de regimes autoritários, que convocou o neto de Roberto Campos. Parecia o plano perfeito, mas não era.

Se tivessem estudado Karl Marx e Friedrich Engels mesmo ligeiramente, Bolsonaro e Guedes saberiam que a Historia somente se repete como farsa. Não é possível fazer reprise…

Os tempos mudaram e o presidente civil Fernando Henrique Cardoso transformou o Brasil numa espécie de laboratório do capitalismo financeiro, ao estimular o “rentismo”, uma expressão criada premonitoriamente por Marx e Engels para denominar o capitalismo sem risco, em que o investidor colhe altos lucros sem criar empresas, gerar empregos e distribuir renda.

À frente do Banco Central, o neto de Roberto Campos conduziu a economia para os juros mais baixos da História Republicana. Com isso, reduziu o crescimento da dívida pública. Como consequência, provocou o fim do rentismo. Acostumados com o lucro fácil, os aplicadores imediatamente mergulharam na Bolsa de Valores, desconhecendo que o mercado tem regras que ninguém consegue derrubar.

Bastou uma queda brusca na cotação do petróleo, uma crise que nem é permanente, pois daqui a pouco os produtores se acertam, acompanhada da contaminação do coronavirus, que também não é permanente, loogo estará superada, e o sonho da Bolsa acabou.

Agora, o próximo sonho a acabar será o de Bolsonaro. Ele quer curtir os bônus do governo nem se envolver com os ônus. Se algum setor não funcionar, a culpa é do ministro.

Para “Toda a Espécie”: A pandemia como fenômeno mental

[Apolo] Desceu dos cumes do Olimpo, de coração irado,
trazendo aos ombros o arco e a aljava toda fechada;
à medida que ele avançava, as flechas retiniam
no ombro do deus enfurecido. E ele seguia, semelhante à noite.
Sentou-se longe das naus, e lançou uma flecha;
do arco de prata saiu um silvo terrível.
Atacou primeiro as mulas e os cães velozes,
depois atirou aos próprios homens com o seu dardo pontiagudo;
e as piras dos cadáveres ardiam sem cessar.
Durante nove dias, os dardos divinos correram o exército.

(Homero, "Ilíada", Canto I, vv. 44-53) 


Nos últimos dias, com o decretar de quarentenas e de medidas de condicionamento à vida nos espaços públicos, vimos pela primeira vez alguns espaços emblemáticos sem qualquer pessoa: Praça de S. Pedro, Catedral de S. Marcos, etc, etc, etc…. espaços que apenas concebemos com muita gente, são-nos hoje apresentados nus de pessoas.

Se até há poucas semanas o bulício de tanta gente se mostrava quase ensurdecedor, impossibilitando uma boa fruição desses espaços, hoje somos brutalmente “ofendidos” na forma como concebemos o espaço público através da anulação da inevitabilidade do Ser Humano estar lá – afinal, o espaço existe sem mim, sem o meu semelhante. O horror vacui, a natural repulsa que a natureza tem ao vazio, parece ofender um olhar habituado a ter o pulular de gentes como sinónimo de vida.

O conceito de pandemia é o mais democrático que podemos imaginar. “Todo o Povo” (παν + δήμος) é, literalmente, todo o universo de possibilidades em que nenhum grupo ou ninguém poderá afirmar estar de fora. Mais uma vez, uma epidemia tem também o horror ao vazio.

Tal como nas bíblicas Pragas do Egipto, a sexta, “sarna, que arrebentava em úlceras nos homens e no gado” (Êxodo 9:10,11), a pandemia relatada por Homero no canto I da Ilíada, tem de ser fruto de uma ira divina. É tal a subversão da ordem natural que apenas essa é a justificação plausível.

Na Ilíada, o deus Apolo é mesmo retratado de forma quase cobarde a atacar com as flechas. A guerra tinha uma ética. A morte com honra implicava a luta corpo a corpo, o olhar nos olhos. Apolo “sentou-se longe das naus, e lançou uma flecha”, cobardemente. É o que é uma pandemia; causando o caos e uma ordem fora da ordem natural.

Estas duas descrições de pandemias, que são das mais antigas que temos, ambas da primeira metade do I milénio a.C., mostram a arbitrariedade e a forma cobarde na escolha daqueles que afeta. Não é uma pandemia porque afeta todos, mas porque pode afetar todos, sem distinção. Todo um povo está a sua mercê.

Mais perto de nós, a Peste Negra, que só seria erradicada da Europa no século XIX, criaria uma verdadeira mitologia traumática que ficaria marcada nos imaginários, trauma retomado e avivado com as epidemias e pandemias dos séculos XIX e XX, especialmente com a chamada Gripe Espanhola (1918).

Hoje, o vislumbre por paisagens normalmente pejadas de humano, mostra-nos o deserto da higiene social para controlar a proliferação do contágio. Açambarcamos, pedimos o fecho das escolas, como que desejamos medidas draconianas que vão além do que a Constituição obriga, como no caso da quarentena forçada ou obrigatória.

Vemos, mesmo, as religiões a pedirem aos seus crentes que se abstenham de partes importantes da vida religiosa: só em Portugal, Católicos mudam hábitos da comunhão e deixam de fazer o “Abraço da Paz”; Protestantes recomendam a “Ceia do Senhor” com luvas; Muçulmanos anulam a oração em congregação à sexta-feira.

Parece que tudo nos conduz para um medo fortíssimo, cimentado em milhares de anos de pandemias, em que o texto bíblico e Homero são apenas dos exemplos documentados. Trauma consolidado nas estruturas de pensamento, entramos em modo pânico.

As reações são o resultado do momento e dos factos em jogo, mas são também os medos testados no ADN de uma estrutura evolutiva que é uma espécie. Sim, a forma como reagimos a uma pandemia tem ecos na “memória” da espécie e na forma como estes fenómenos são um perigo acima da vida de cada um de nós.

Uma Pandemia não é uma doença para “Todo o Povo”, mas para “Toda uma Espécie”.