segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Abuso dos bananas

O abuso sistemático de Dias Toffoli está destruindo a instituição do Supremo Tribunal Federal. Exerce a presidência do STF como um déspota arbitrário, coadjuvado por Gilmar Mendes, que deve sofrer da síndrome de Tourette, tamanhos são os incontrolados insultos que profere nas sessões. Está na hora dos demais ministros colocarem um freio nesse arbítrio, nesse abuso, nesse repetidos desvios de poder, sob pena da degradação da instituição ser definitiva. O decano deveria, em vez de defender esses ministros, pensar na instituição e tomar a frente desse processo
Carlos Fernando dos Santos Lima, ex-procurador da Lava Jato

Biolsonaro também é uma ideia

Há alguns meses, operários escavavam um terreno para a construção de um aterro sanitário em Tultepec, na região metropolitana da Cidade do México, quando se depararam com centenas de ossos gigantescos. Na semana passada arqueólogos anunciaram do que se tratava: fósseis de 14 mamutes, que teriam sido perseguidos há 15 mil anos por humanos armados de lanças até caírem em grandes buracos cavados na terra.

Yuval Noah Harari, em “Sapiens: uma breve história da humanidade” destaca que em algum momento entre 70 mil e 30 mil anos atrás, nossos antepassados teriam vivenciado mutações genéticas acidentais nas conexões internas de nosso cérebro. Essas alterações nos legaram novas formas de pensar e comunicar, com ganhos tão expressivos para nossa espécie que o período ficou conhecido como Revolução Cognitiva.

A estratégia dos homo sapiens de Tultepec de cavar imensos buracos e atacar os mamutes até que eles caíssem na armadilha para serem mais facilmente abatidos - gerando estoques de proteína, carboidrato e gordura para abastecer a tribo por muitas semanas - seriam fruto do desenvolvimento de um sistema nervoso muito mais complexo, capaz de fazer conexões, antever o futuro e se comunicar com seus semelhantes.

Harari cita dois fatores prosaicos pelos quais o homo sapiens se tornou a espécie animal mais bem-sucedida em dominar o Planeta Terra: a fofoca e a capacidade de inventar histórias. De um lado, a deliciosa atividade de falar bem (e mal!) de nossos parentes, vizinhos e colegas estreita laços de afinidade e confiança, galvanizando alianças e coalizões. De outro, a incrível criatividade dos humanos de buscar explicações para nossos medos e dúvidas no sobrenatural e em narrativas heroicas estão na origem de religiões e nações, cujos ideais servem de amálgama para vastas coletividades.


Dando um salto de milênios, mito e fofoca (essa última rebatizada de fake news) também estão na base na ascensão de Bolsonaro ao poder. O ex-deputado do baixo clero conseguiu um número crescente de apoiadores apelando para o combate a um inimigo comum (o petismo e a velha política), o patriotismo e a religião - não é à toa que o seu slogan é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esses valores são propagados em larga escala por meio do uso habilidoso das redes sociais (a mais eficiente forma de linguagem e comunicação dos nossos tempos), na construção de narrativas heroicas para si e na busca de destruição da reputação dos seus adversários.

Na semana passada, com o lançamento de seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil, o presidente deu mais um passo na institucionalização do bolsonarismo. Com o prazo curto para ser registrado no TSE a tempo de disputar as eleições municipais do ano que vem, o novo partido promete mobilizar as redes sociais - criado há menos de uma semana, seus perfis já têm 250 mil seguidores no Facebook e quase 150 mil no Twitter - e várias entidades religiosas para coletar as assinaturas necessárias para a formalização do partido. Não será surpresa se conseguirem.

Depois que Jair Bolsonaro se transferiu para o PSL, o partido recebeu 105 mil novos filiados. Só para se ter uma ideia do poder do presidente em mobilizar um exército de apoiadores, desde o início de 2018, com uma campanha eleitoral e todo o barulho em torno do “Lula Livre”, o PT acrescentou apenas 17.719 novos membros - seis vezes menos que o antigo partido de Bolsonaro.

No seu famoso discurso na porta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC antes de ser preso, Lula proclamou: “Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou um ser humano, sou uma ideia; uma ideia misturada com a ideia de vocês.”

É inegável que o lulismo representa uma força importante na política brasileira, mas o envolvimento do PT nos escândalos de corrupção do mensalão e da Lava-Jato, bem como as consequências econômicas desastrosas das medidas adotadas nos governos Lula II e Dilma I reduziram sua influência eleitoral para as parcelas mais pobres do eleitorado, sobretudo no Norte e Nordeste - movimento captado de maneira insuspeita por André Singer, porta-voz do próprio Lula no primeiro mandato, em “Os Sentidos do Lulismo” (2012) e “O Lulismo em Crise” (2018).

Para se tornar viável na eleição de 2022, Lula e o PT precisarão bem mais do que os seus autoproclamados “tesão de 20, energia de 30 e experiência de 70” anos. Hoje em dia quem melhor representa uma “ideia” no imaginário brasileiro é Bolsonaro. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, na periferia de São Paulo em 2017 revelou que, graças ao avanço da influência das igrejas neopentecostais e da valorização do consumo e do empreendedorismo popular, um novo caldo cultural se formou em áreas que antes eram monopolizados pelo PT. “A mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionados à atuação do Estado” permeiam essa nova visão do mundo da classe trabalhadora, conclui o documento.

Basta ler o manifesto de lançamento do Aliança pelo Brasil para constatar como o bolsonarismo se utiliza desses valores para construir a sua plataforma política: “Estamos formando uma nova Aliança pelo Brasil. A Aliança por um país da liberdade, da prosperidade, da educação, da ética, da meritocracia, da transparência, do respeito às leis, da segurança e da igualdade para homens e mulheres no trabalho, na política e em todos os campos do desenvolvimento social.”

Nem Lula, nem qualquer político de centro, conseguiu até agora captar os ecos dos protestos de 2013 e para eles construir uma narrativa tão convincente quanto Bolsonaro. É óbvio que até 2022 seu governo precisa entregar resultados - e não está nem um pouco clara a sua capacidade de oferecer o crescimento econômico e os melhores serviços públicos que essa massa de eleitores demanda. Mas ninguém tem combinado tão bem mito e fofoca nas redes sociais para tocar os corações e mentes do segmento mais dinâmico dos homo sapiens brasileiros.
Bruno Carazza

Convidada por Itamar, dona Sarah voltou ao Palácio da Alvorada 32 anos depois

Delicadeza, simplicidade e espontaneidade eram marcas do Presidente Itamar Franco. Quem convivia com ele pode comprovar, como o jornalista Silvestre Gorgulho, autor deste relato:

Passava das 18 horas do dia 8 de junho de 1993. Uma terça-feira. Acabara de fechar minha coluna no jornal Correio Braziliense, quando a secretária da redação me chama:

– Silvestre Gorgulho, é do Palácio do Planalto.

Atendi. Era um velho amigo dos tempos da Embrapa, o advogado Mauro Durante, então secretário-geral da Presidência da República. Foi logo me perguntando se dona Sarah Kubitschek estava em Brasília. Disse que sim. Tinha estado com ela na casa da filha Márcia na véspera.

– Ótimo! Então aguarde um pouquinho que o Presidente quer lhe pedir um favor.

Foram dois ou três longuíssimos segundos. Um favor? Pensei comigo. Para o Presidente da República? Uma nota no jornal? O que será, meu Deus? Entra o Presidente na linha e depois de um afetuoso cumprimento e lembranças passadas, diz:

– Silvestre, tomei uma decisão. Estou morando aqui numa casa da Península dos Ministros, mas o Henrique (Hargreaves), a Ruth (Hargreaves) e o pessoal da segurança, todos estão pressionando muito para eu me mudar para o Palácio da Alvorada. O que você acha?

– Presidente…

– Presidente não! Itamar.

– Sim, sim Presidente Itamar… Acho uma sábia decisão. O senhor já devia ter feito isso há mais tempo. Lá é a residência oficial do Presidente da República. Vai lhe dar mais tranquilidade…

– É o que todos falam. Mas eu só vou numa condição. Não quero ser intruso. Preciso de energias positivas. Aquela foi a residência de um homem de bem, de um grande brasileiro e fico assim meio sem jeito de chegar lá no Alvorada assim sem mais nem menos.

– Como sem mais ou menos, Presidente… Itamar! O Palácio é a residência oficial…

– Eu sei. Mas isto tudo para mim tem um ar de mistério. A áurea do Presidente Juscelino domina o Palácio da Alvorada. Não que eu seja supersticioso. Dizem, mesmo, que no Alvorada até o piano toca sozinho à noite.

Sem saber onde ia dar esta conversa, eu falava imaginando mil coisas. Lembrei-me da primeira frase de Mauro Durante: “A dona Sarah está em Brasília?”

– Presidente… Itamar. O que o senhor acha se eu conversar com Dona Sarah e contar desta sua intenção de ir para o Alvorada? Vou pedir para ela ligar para o senhor.

– Fale com ela. Se ela quiser me ligar é um prazer. Você sabe de minha admiração pelo Presidente Juscelino e por dona Sarah. JK me ajudou muito na eleição para o Senado em 1974. Quem sabe ela e Márcia passam toda a manhã comigo lá no Alvorada.

Em vez de ligar, fui ao Memorial JK. Encontrei dona Sarah com o coronel Affonso Heliodoro e a Cirlene. Contei-lhes toda história. Muito feliz e um pouco surpresa, dona Sarah foi logo dizendo que fazia o que Presidente Itamar quisesse. Era muito importante ele ir para o Palácio da Alvorada. Depois de alguns outros comentários, concluiu:

– Silvestre, conheço bem o presidente Itamar Franco. Ele é uma pessoa simples, mas muito atento aos simbolismos. Ele não quer chegar ao Alvorada sozinho. Vamos fazer o seguinte, vou lá recebê-lo com “honras de Chefe de Estado e espírito de Minas Gerais”.

Diante da aprovação e incentivo do Cel. Heliodoro, liguei para Mauro Durante ali mesmo do Memorial:

– Ministro, estou aqui no Memorial com dona Sarah Kubitschek e ela ficou muito feliz com a decisão do Presidente Itamar em se mudar para o Alvorada. Ela vai lhe falar.

Conversaram e acertaram dia e hora para ela e Márcia irem ao Palácio da Alvorada receber o Presidente Itamar.

Assim, dia 10 de junho de 1993, uma quinta-feira, seis meses depois de ser efetivado Presidente da República, Itamar Franco se muda para o Palácio da Alvorada. Além de receber “as Honras de Estado e o espírito de Minas”, Itamar proporcionou uma das maiores emoções à dona Sarah: a eterna Primeira-Dama do Brasil havia deixado o Palácio da Alvorada pela última vez em 30 de janeiro de 1961. Há 32 anos ela não voltava à sua primeira residência em Brasília.

Numa entrevista coletiva, Itamar e dona Sarah falam para o jornalistas. Lembro-me da primeira pergunta de uma repórter de tevê:

– Dona Sarah, é verdade que aqui no Palácio da Alvorada o piano toca sozinho?

– Olha, minha filha – respondeu dona Sarah – este Palácio traz energias extras aos presidentes. Se à noite o piano toca sozinho, está provado o alto astral do Palácio da Alvorada. Há coisa melhor do que uma boa música neste ermo encantado do Cerrado?

Aplausos! E antes de se despedir de Itamar, dona Sarah agradeceu:

– Vivi um sonho, Presidente. São 32 anos sem contemplar as colunas de Niemeyer, sem entrar na Capelinha do Alvorada e sem colher uma flor deste jardim abençoado.

Para onde queremos ir

Vivemos num mundo em transformação. Isso parece óbvio, porque o mundo sempre esteve em transformação, o tempo todo. Mesmo que as circunstâncias, às vezes, o levem a uma transformação para trás. Quando isso acontece, não é por muito tempo que dura o tempo de atraso. Outras vezes, como penso que agora, trata-se de uma transformação radical e inevitável, uma negação de quase tudo que veio antes, por necessidades geradas pelas circunstâncias da vida. Um pouco como quando o Iluminismo se desenvolveu e conquistou a Europa culta, como uma resposta ao religiosismo fanático e inquisitorial. Ninguém se dispensa de ser feliz.

Ao fim da Guerra Fria, quando o Muro de Berlim caiu, há 30 anos atrás, cogitou-se até em considerar a História como finalizada. Não haveria mais para onde ir, depois do encerramento da dicotomia que, como sempre, dividira a humanidade. Era como se um dos lados em litígio tivesse ganhado a guerra e não houvesse mais o que fazer. Hoje sabemos que ainda havia muito o que fazer, que haverá sempre o que fazer. Sobretudo num país como o Brasil, um país que nunca soube direito o que ele próprio era, embora tivesse se elaborado tanto, cheio de planos e sonhos que nunca se realizaram.

Com a Ancine no Ministério do Turismo, sob a tutela de Roberto Alvim, o desbocado, talvez não se possa mais mostrar favela e sertão nos filmes brasileiros, não sei. Esses temas de artistas indignados não cooperam com o luxo de cruzeiros náuticos e semelhantes turísticos. Mas as favelas e o sertão continuam lá, onde sempre estiveram, com crianças sendo assassinadas todo dia e gente morrendo de fome, além de rios secando ou poluídos por desastres.

Quem sabe seja esse, no final das contas, o recado do governo depois de tanto desmerecer, subestimar e condenar os filmes que andamos fazendo até agora. Não escapou nenhum. Se quiserem trabalhar, os cineastas brasileiros, como outros artistas do país, terão que adivinhar o que eles querem de nós.


Por outro lado, Lula livre podia ser um bom argumento para se esquecerem um pouco da gente, se dedicarem um ao outro. Mas o neo-novo personagem não tem mais muita coisa para dizer, já ouvimos os discursos da largada, são os mesmos de sempre. Neles, ele falou mal da Rede Globo, a única emissora que transmitiu, de cabo a rabo, seu discurso daquele dia. Lá para as tantas, disse que o presidente governava para os milicianos, ou coisa que o valha. E, mais adiante, ironizou-o dizendo que, como não queria saber de trabalhar, o capitão entrou para as Forças Armadas. Tudo, como sempre, no mesmo padrão de radicalidade sem ideias, ao sabor do vento de idiossincrasias, queimando as possibilidades de diálogo em busca de pensamento e ação novos. No fundo, Bolsonaro e Lula acham que o mundo não existe sem os dois.

No Chile, o povo está nas ruas contra o populismo aristocrático, a direita de Sebastián Piñera. Na Bolívia, o povo saiu às ruas contra o populismo salvacionista, a esquerda de Evo Morales. Os dois, cada um em seu país e a seu modo, trataram seus povos como incapazes de escolher o que desejam. A velha praga latina do caudilhismo, do desrespeito aos programas anunciados, quando eles não rendem mais voto ou grana. O desrespeito à Constituição de cada um, ao prometido e ao jurado. A polarização entre os velhos extremos é um conforto para quem não se interessa em encontrar e praticar alternativas. Ou para quem tem preguiça de pensar.

Nada disso serve mais a ninguém. É uma disputa no passado que já devia ser remoto, um retorno de direita ou de esquerda ao que não interessa mais. É inevitável pensar no livro novo de Mangabeira Unger, “O homem despertado”, que o “New York Times” simplificou chamando o autor de “visionário incansável”. Nele, Mangabeira diz que a transcendência política é hoje “a capacidade de cada um de nós ser maior do que suas circunstâncias”.

No Brasil, gostei foi da ideia de um segundo turno com três candidatos. O eleitor não seria mais prisioneiro da obrigação do mau voto. Haveria sempre um tertius que nos permitiria recusar a esterilidade dos dois lados eternos. Recusar o ódio cego e fatal, fazer ciência e poder pensar.

Claro, não é a ciência que vai salvar o mundo. Mas ela não pode ser ignorada, porque nos diz o que somos e de onde viemos. Assim como a cultura nos faz imaginar o melhor para nós, nos faz escolher para onde devemos ou queremos ir. Aonde chegaremos.

Gente fora do mapa

Steve McCurry

Depende de nós

Há exatos 10 anos escrevi o primeiro dos mais de 500 artigos publicados neste blog, o que me autoriza a cometer um texto em primeira pessoa, raríssimo entre meus escritos. Mesmo sendo uma otimista incorrigível, ao reler meus domingos desta década o sentimento predominante é o inverso.

Pinçadas algumas exceções, boa parte delas vindas do combate à corrupção e da força das ruas, viramos coadjuvantes de cenas de bipolaridade explícita que desde o embate PT x PSDB envenena o ambiente político. Agora, com doses cavalares de cicuta adicionadas pelo bolsonarismo.


O primeiro artigo que escrevi aqui tratava do Dia da Consciência Negra, transformado em feriado nacional por Lula, que se aproveitava da data e dos negros para adicionar fermento à sua popularidade, ingrediente que sempre orientou cada movimento seu, cada palavra dita. De lá para cá, o inventor do presidencialismo de palanque continua usando os mesmos expedientes. E, ainda que não mais encante tanto as multidões, tem em Jair Bolsonaro um senhor aprendiz.

Bolsonaro, que quando não tem com quem confrontar briga com ele mesmo, não vai para a rua. Usa o palanque digital, testado e aprovado no ano passado. Mas, assim como Lula, joga com um linguajar para cada público, modula o tom ou esbraveja quando lhe convém. Ativa os seus com o jogo mais primário do populismo: derrotar o inimigo, agora de carne e osso. Lula faz o mesmo, com o microfone nas mãos desde que o STF o soltou.

Nada chega perto do que o Brasil precisa para pelo menos sair da marcha à ré. Ganhos como os da nova Previdência tema de diversos artigos nestes meus 10 anos -, que o Congresso Nacional conseguiu fazer andar, se perdem na instabilidade política e jurídica, cada vez mais aguda. Outras reformas reincidiram neste período, como a política tida e havida como a mãe de todas, mas condenada a jamais parir ou a tributária e a eleitoral que, embora para lá de necessárias, funcionam como matérias diversionistas, usadas para mudar o foco do debate dependendo da conveniência do governante de plantão.

Nem mesmo a área econômica do governo atual, única que parece compreender a urgência do país, consegue dar sinais claros. Fala em privatização e não a faz. Prega novos impostos e dá corda para opositores com a hipótese de um absurdo desconto no salário-desemprego.

A miséria que em 2009 Lula e depois sua afilhada Dilma Rousseff diziam ter dizimado não passou de matemática fajuta para nutrir palanques eleitorais, e o badalado crescimento econômico da era de ouro do lulismo não se sustentou nem por um biênio. O público se confundiu com o privado, a desigualdade se aprofundou. Aquele Brasil que construiu estádios bilionários para a Copa do Mundo já havia sido goleado muito antes do 7 x 1.

Minha década passou pela ascensão e queda de Dilma Rousseff - a criatura que Lula talvez preferisse não ter inventado -, responsável pela crise da qual o país ainda não emergiu. Pela ocupação das ruas em 2013. Por Aécio Neves, que quase chegou lá e, pego com a boca na botija negociando milhões, sumiu e prefere continuar no anonimato. Por Michel Temer, que até poderia ter dado certo não fosse a trama novelesca iniciada ao ser gravado por Joesley Batista em um estranho encontro, fora da agenda, na garagem do Palácio do Jaburu.

Pela prisão e a soltura de Lula a partir de uma generosa interpretação do STF sobre um tópico constitucional no qual já havia firmado, por quatro vezes, entendimento contrário. Por um Bolsonaro que só enxerga sua família acima de tudo.

O país que se imaginou mais maduro ao punir gente graúda no Mensalão e na Lava-Jato agora assiste a interpretações cada vez mais frouxas das leis. Para beneficiar poderosos. Vê retrocessos na agenda ambiental e comportamental, no respeito ao diferente, ao outro. Testemunha perigosos arroubos autoritários e inadmissíveis limites à liberdade.

O conjunto não é animador. Mas, longe de lamentar, creio que é possível transformar, achar caminhos, fazer acontecer. Depende de cada um de nós. Continuo uma otimista, cada vez mais incorrigível.
Mary Zaidan

Asfalto escala togados para o papel de pixulecos

Alguns ministros do Supremo tentam transformar a desaprovação social ao seu comportamento em ameaça institucional à Corte. Não será fácil. As ruas encolheram. Não são as mesmas da jornada de 2013 ou do impeachment de Dilma Rousseff. Mas o asfalto escalou Gilmar Mendes para o papel de Pixuleco da vez. O arremesso de tomates foi escolhido como modalidade para o exercício da liberdade de expressão. Dias Toffoli tornou-se alvo coadjuvante.

Nenhum cidadão no mundo recebe tantas informações jurídicas quanto o brasileiro. O noticiário fala mais sobre inquéritos, denúncias e ações penais do que sobre futebol. A maioria dos patrícios entende de leis apenas o suficiente para saber que precisaria entender muito mais. Entretanto, o noticiário e as transmissões da TV Justiça desenvolveram na plateia habilidades que permitem diferenciar certos magistrados dos magistrados certos.



Paradoxalmente, um pedaço do meio-fio expressou apoio a Bolsonaro. Fez isso de boa-fé ou por desinformação. A maioria não se deu conta —ou finge não notar— que a necessidade de blindar o filho Flávio Bolsonaro transformou o capitão num sujeito que, depois de velho, descobriu ser amigo de infância de Toffoli e Gilmar, protetores do Zero Um no Supremo. Por mal dos pecados, não há ingenuidade que sempre dure nem cinismo que nunca se acabe. A hora de Bolsonaro vai chegar.

Houve manifestações em várias cidades. Entre elas São Paulo, Rio e Brasília. Comparando-se com as de outrora, pode-se alegar que foram mixurucas. Verdade. Mas muitas tempestades também começam com um chuvisco. A providência mais óbvia seria abrir o guarda-chuva. Porém, certos despachos e liminares indicam que a segurança jurídica fornecida pelo Supremo, por invisível, virou uma espécie de guarda-chuva sem o pano que o recobre.

Na quarta-feira, o plenário do Supremo se reúne para julgar a liminar em que Toffoli, atribuindo-se poderes imperiais, trancou processos fornidos com dados do antigo Coaf em todo país —entre eles o de Flávio Bolsonaro. Antes do final do ano, a Segunda Turma da Suprema Corte julgará o pedido de anulação da sentença que condenou Lula no caso do tríplex. Por enquanto, as ruas arremessam tomates imagens de magistrados. Mas já demonstraram que sabem enviar trovões e raios que os partam.

Regime de fachada

Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu, tendo como repoussoir a miséria geral?
Lima Barreto

Por que tanto atraso?

Um comentário no Twitter do ministro da Educação, Abraham Weintraub, nos leva à indagação que intitula a coluna: “Não estou defendendo que voltemos à Monarquia mas… O que diabos estamos comemorando hoje? Há 130 anos foi cometida uma infâmia contra um patriota, honesto, iluminado, considerado um dos melhores gestores e governantes da História (Não estou restringindo a afirmação ao Brasil)”, disse o ministro, na sexta-feira, em meio a comemorações dos 130 anos da proclamação da República. Referia-se, obviamente, a D. Pedro II, que governou o país de 1840 a 1889.

A breve intervenção do ministro, que gerou muita polêmica nas redes sociais, revela muita coisa, a começar por um natural desconhecimento sobre a História do Brasil, sobretudo no Império, que sempre foi muito pouco estudado no ensino médio e nos cursinhos para vestibular. Em segundo lugar, indica uma nostalgia bem característica 0do pensamento reacionário, como já tivemos oportunidade de tratar por aqui. Em parte, isso acontece porque, para consolidar a República, nossos militares e políticos, impregnados de positivismo, tentaram passar uma borracha na história anterior ao15 de novembro de 1889. Diga-se de passagem, para alegria de uma elite latifundiária, patrimonialista e racista, que nunca admitiu a devida reparação aos ex-escravos e seus descendentes; muito pelo contrário, lutou para manter privilégios e obter indenizações, já que considerava o escravo uma propriedade privada, assegurada pela Constituição liberal de 1824, outorgada por D. Pedro I.


Ao contrário de todos os demais países do Novo Mundo, com exceção do Canadá e das Guianas, em 1922, o Brasil não se tornou uma república ao se tornar independente. Não foi apenas uma esperteza de D. João VI, que recomendou a iniciativa ao filho, se a ruptura com a Corte portuguesa fosse inevitável. Havia ali um projeto de reunificação do império colonial português, pois o príncipe D. Pedro I era herdeiro da casa de Bragança, e a intenção de manter o regime escravocrata (daí a tentativa, frustrada pelos ingleses, de anexar Angola para garantir o tráfico negreiro e dar a ele um caráter doméstico), com a qual conciliou José Bonifácio, patriota verdadeiro, mas monarquista convicto, traumatizado pelas revoluções europeias e a revolta dos escravos no Haiti.

No livro História da Riqueza no Brasil, Cinco Séculos de Pessoas, Costumes e Governos (Estação Brasil), o jornalista e sociólogo Jorge Caldeira, utilizando recursos de pesquisas como a antropologia e a econometria, lança luz sobre a estagnação econômica no período em que D. Pedro II governou o Brasil: “Com a acumulação dos dados, ficou cada vez mais evidente que, no final do século 18, a economia colonial brasileira era pujante, e pujante em decorrência do crescimento do seu mercado interno. Mais ainda, era uma economia bem maior que a da metrópole.”

Ao comparar dados do Brasil e de outros países, como os Estados Unidos, Caldeira mostra que foi exatamente aí que perdemos o bonde da história pela primeira vez (houve outras). Por volta de 1800, a economia brasileira tinha porte equivalente à dos EUA. Ao fim do período imperial, nos últimos anos do século 19, o peso econômico do país representava menos de 10% do ostentado pelos americanos. A economia brasileira era provavelmente maior que a dos Estados Unidos na primeira metade do século 19. As duas economias tinham exportações de valor semelhante (em torno de 4 milhões de libras esterlinas anuais), mas o mercado interno brasileiro ocupava uma área bem mais extensa e com atividades mais variadas que as 13 colônias originais.

A economia brasileira “teve uma expansão notável ao longo do século 18”, nos mostra Caldeira: “O ritmo de crescimento da produção econômica passa de 0,5% para nada menos de 1,5% ao ano, enquanto o crescimento populacional vai de 0,4% para 0,6%. O crescimento da renda per capita” salta de 0,1% para 0,9% anuais. No período que vai de 1820 a 1900, “a renda per capita do Brasil era de 670 dólares em 1820 — de 704 dólares no final do século. O crescimento teria sido de míseros 5% em um gigantesco período de 80 anos”. A economia local regrediu. A chave da estagnação foi a política monetária, focada nas exportações, e manutenção da escravidão, cujas sequelas estão presentes até hoje na sociedade brasileira, entre as quais a discriminação racial, os preconceitos e a profunda desigualdade.

Mas, entre 1906 e 1918, ou seja, após a proclamação da República, o Brasil volta a crescer de maneira vertiginosa. Durante a valorização [do café] a economia brasileira experimentou pela primeira vez uma taxa de crescimento real per capita superior à dos Estados Unidos. A taxa foi provavelmente maior que 2% ao ano. A economia cresceu rapidamente. Na República, a constituição de empresas não dependia mais do governo, e sim da vontade dos empreendedores. Era uma revolução e o Brasil integrava-se à economia internacional. O Estado finalmente liberava o mercado, o que levou ao crescimento econômico. Tratar a República Velha como um período de atraso é um equívoco, não resiste aos dados estatísticos comparativos; o que envelheceu foram certas análises sobre a formação econômica do Brasil. O Império, com suas restrições à iniciativa privada, travou parte da expansão econômica.