sexta-feira, 25 de maio de 2018

Brasil de hoje


Os deuses e os mortos

Dirigido pelo moçambicano naturalizado brasileiro Ruy Guerra, Os deuses e os mortos é um ícone da fase “alegórica” do Cinema Novo, vencedor do festival de Brasília de 1970, numa abordagem barroca e tropicalista que retrata a violência no campo e o monopólio da política pelas oligarquias. Era uma época em que o regime militar estava no auge; parte da esquerda ainda acreditava que derrubaria o regime pegando em armas e que implantaria um “governo popular”. Era tudo um delírio, do “Brasil, ame ou deixe-o”, do general Garrastazu Médici, ao “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, de Carlos Marighela.

Com fotografia excepcional de Dib Lufti e trilha sonora de Milton Nascimento, o filme tinha um elenco estrelado, a maioria viria a brilhar nas novelas da Globo: Othon Bastos (“O Homem”), Norma Bengell (“Soledade”), Rui Polanah (“Urbano”), Ítala Nandi (“Sereno”), Dina Sfat (“A Louca”), Nelson Xavier (“Valu”), Jorge Chaia (“Coronel Santana”), Vera Bocayuva (“Jura”), Fred Kleemann (“Homem de branco”), Vinícius Salvatore (“Cosme”), Mara Rúbia (“Prostituta”), Monsueto Menezes (“Meu Anjo”), Milton Nascimento (“Dim Dum”), Gilberto Sabóia (“Banqueiro”) e José Roberto Tavares (“Aurélio”).

O filme foi saudado pelo The New York Times como um “western tropical”, que misturava o japonês Akira Kurosawa com o italiano Sérgio Leone no sul da Bahia, tendo a temática do cacau na saga descrita por Jorge Amado como base do roteiro do próprio Guerra, Paulo José e Flávio Império. Ao lado do diretor, Sérgio Sanz fez uma edição fascinante. Audacioso no plano estético e político, a alegoria poética retratava de forma antropológica a vida nacional dos anos 1930, num ambiente rural que culturalmente permanecia o mesmo, mas, economicamente, já estava em mudança. Sua força vital e mágica parecia surgir do nada, como acontece hoje nas periferias e favelas. O protagonista é um personagem fantasmagórico, interpretado por Othon Bastos, ator de Deus e o diabo na Terra do Sol (1964) e São Bernardo (1972).


O Homem Sem Nome (Othon Bastos), depois de levar sete balas no corpo e não morrer numa chacina, se intromete entre dois clãs de coronéis que lutam pelo poder, ou seja, pela terra e pelo cacau, em cenas memoráveis. A câmara de Dib Lufti, num determinado plano-sequência, percorre lentamente um grupo enorme de guerrilheiros, com armas, sentados nos degraus a toda a volta da praça principal da cidade, à espera do grande confronto. Na cena seguinte, um plano muito aberto mostra toda essa gente agonizando na praça ensanguentada. O Homem Sem Nome fracassa.

A mesma alegoria poderia ser transposta para o cotidiano da vida urbana do presente, pois o seu material humano, do ponto de vista cultural e político, continua presente. A violência, a disputa de território, o banditismo, as oligarquias, a cultura do velho coronelismo, todos os elementos do roteiro de Os Deuses e os mortos estão vivíssimos não só nos grotões, mas nas grandes metrópoles.

Ruy Guerra sabia o que estava fazendo. “Esse filme é talvez o passo mais importante desde Deus e o diabo na Terra do Sol para definir uma realidade cultural, religiosa e humana do brasileiro, que não depende apenas do situacionismo econômico e histórico (…) O Homem, interpretado por Othon Bastos, está infinitamente ligado com o fato de ele não ser caracterizado em termos de passado, presente ou futuro, o que ‘desindividualiza’, o torna atemporal e alegórico; o desejo impessoal do poder”, explicou à época.

A alegoria com a nossa política também seria perfeita, basta ler as notícias dos jornais. O que não falta são candidatos a deuses e a mortos-vivos. Vicejam num ambiente de iniquidade social, desesperança, violência e crise ética. As narrativas desses atores funcionam como alegorias de um passado recente que foi atropelado pela globalização e pela Operação Lava-Jato, mas continua a assombrar o presente. Um ex-governador cordato e querido pelos pares tem a prisão decretada, o ex-líder de toda uma geração rebelde volta à cadeia, um ex-presidente preso insiste numa candidatura ficha-suja. Ministros, senadores, deputados, governadores compõem um cortejo de mortos-vivos, surgem candidatos a deuses.

Fora desse universo, o aparelho de segurança e o crime organizado se enfrentam, com baixas de ambos os lados. E a morte espreita o cidadão a cada esquina, no asfalto ou no morro, na noite escura ou à plena luz do dia, enquanto a vida segue milagrosamente o seu curso, ainda que a esperança não tenha sido reinventada, como nas cenas de Os deuses e os mortos. As instituições do país ainda funcionam, a economia resiste maltratada. Na democracia, acreditem, o povo astucia sua própria saída, que sempre aparece nos processos eleitorais, mesmo quando tudo parece dominado. Em algum momento, após a Copa do Mundo, haverá um reencontro entre a política e os cidadãos. E um democrático ajuste de contas.

Como fazer com que os super-ricos paguem mais impostos?

No mundo globalizado, um punhado de gigantes tecnológicos e seus donos são mais poderosos e ricos do que nações inteiras. São tempos de exuberância para os paraísos fiscais (por volta de 50 territórios em todo o planeta), o segredo bancário, a fraude e a sonegação fiscal das grandes corporações. Em boa parte do mundo, incluindo os países ricos, a sustentabilidade dos sistemas públicos (aposentadorias, saúde, educação) é posta em dúvida; o desemprego, em muitos países, é um drama enquanto a robotização ameaça os trabalhadores. E o sistema tributário atual é incapaz de captar os recursos públicos necessários para dar conta dessas necessidades.

“A enorme complexidade das operações globais das multinacionais, junto com a vontade das big four [KPMG, PwC, Ernst & Young e Deloitte] para criar estruturas que separam a tributação dos lucros dos lugares em que realmente se desenvolve a atividade da empresa, levou a uma situação em que até mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) reconhece que as leis já não servem”, diz Alex Cobham, diretor do Tax Justice Network, um grupo de ativistas que denuncia os abusos do sistema impositivo internacional. Seus especialistas fizeram contas. A sonegação fiscal das multinacionais deixa perdas de 500 bilhões de dólares (1,85 trilhão de reais) por ano no planeta e acende as luzes vermelhas. A Associação Internacional de Advogados chama essas manobras tributárias de uma violação aos direitos humanos.


Esse é o assunto quando se fala hoje de impostos. Até mesmo o jornal Financial Times – trincheira inexpugnável do liberalismo – mostrou as fraturas do sistema. Um estudo recente do jornal britânico revela que as grandes multinacionais pagam muito menos impostos agora do que antes do crash mundial de 2008. Concretamente, a taxa efetiva (a proporção de lucros que esperam pagar) caiu 9% desde a crise financeira. Uma queda que chega a 13% nas grandes empresas tecnológicas. “Precisamos de um novo paradigma que onere os impostos empresariais e do capital de uma forma mais ampla”, diz Jason Furman, ex-presidente do Conselho de Assessores de Barack Obama. “Com as políticas adequadas podemos conseguir. O ideal seria que fossem negociados e coordenados entre os países. Mas se isso, como parece, for difícil, as nações podem criar sistemas que funcionem em seus próprios territórios”.

Toda essa raiva despertou nos últimos meses as grandes empresas da revolução digital, que encontraram em inúmeros territórios com tributação ínfima (na Europa, países como Luxemburgo, Irlanda, Bélgica e Holanda) seu parque de diversões particular. Os países europeus perderam 5,4 bilhões de euros (23 bilhões de reais) entre 2013 e 2015 em impostos do Google e Facebook, porque diluíram seus lucros através dessas jurisdições. E sempre parece existir um país disposto a oferecer um paraíso fiscal melhor do que o anterior.

Poucas empresas refletem isso melhor do que a Amazon. Em 1994, a empresa de Jeff Bezos, à época somente um vendedor de livros online, procurava sede para seu negócio e a primeira opção foi uma reserva indígena norte-americana. Esses territórios têm generosas isenções fiscais. Mas o Estado da Califórnia se opôs. Depois escolheu Seattle (Washington). Bezos contou que a escolheu porque tinha uma população pequena. Naquela tempo somente os varejistas com presença física em um Estado pagavam impostos. Além disso as vendas a outros territórios com maior população não eram taxadas. Desde então, o sistema fiscal da Amazon é uma contínua evasão. De fato, o implantou em 2003 em Luxemburgo, um país que o Tax Justice Network chama de “a Estrela da Morte do segredo bancário”. Muitos de seus críticos afirmam que se a Amazon se transformou no maior varejista do planeta é em parte por essa busca de territórios com tributação ínfima. Como estão longe as palavras do jurista norte-americano Oliver Wendell Holmes (1841-1935): “os impostos são o preço que pagamos por uma sociedade civilizada”.

A União Europeia apresentou em março uma proposta para taxar em 3% as empresas de tecnologia com faturamento global superior a 750 milhões de euros (3,3 bilhões de reais) e 50 milhões de euros (220 milhões de reais) na Europa. Mas se calcula que ela não estará vigente até 2020. Os tributos que escapam impedem a construção de uma sociedade mais equitativa. Um trabalho da Royal Society of Arts (RSA) britânica sugere que com as novas taxas que poderiam ser impostas ao Facebook, Amazon e Apple seria possível dar a todos os britânicos menores de 55 anos uma renda básica universal de 10.000 libras (50.000 reais).

Um ensaio (The Role and Design of Net Wealth Taxes) da OCDE explica que hoje os milionários têm mais influência, poder e podem gerar lucros sem trabalhar. “Uma pessoa que trabalha por 20.000 euros (88.000 reais) por ano e outra que recebe o mesmo, mas investindo estão em posições diferentes”, critica o estudo. E acrescenta: “Um aspecto fundamental da acumulação de riquezas é que se retroalimenta: a riqueza gera riqueza”. Por isso o economista Thomas Pikettypropõe um imposto global sobre o patrimônio que taxe em 5% e 10% as fortunas superiores a 10 milhões de euros (44 milhões de reais).

Jorge Pérez é um dos homens mais ricos do planeta. A revista Forbes calcula sua fortuna em 3 bilhões de dólares (11 bilhões de reais). Logo será bem menor, pois se comprometeu com Bill Gates e seu programa de doar a metade para programas sociais. Colecionador de arte e um dos maiores filantropos dos Estados Unidos, reconhece que “pensa muito” em uma ideia: “Os milionários deveriam pagar mais impostos? A resposta não é fácil. O mais razoável seriam maiores taxas aos ricos e uma melhor distribuição, mas isso depende dos Governos, que são ineficientes e muitas vezes corruptos”.

Mas na sociedade cresce a pressão para taxar mais esse 1% que acumula 82% da riqueza da Terra. “Se Mark Zuckerberg prevê ganhar 4 bilhões de dólares (15 bilhões de reais) nesse ano, é melhor que esteja no mesma categoria de alguém que ganha, digamos, 300.000 dólares (1,12 bilhão de reais) ou deveria ser taxado em 90% e ter 3,6 bilhões de dólares (13 bilhões de reais) para hospitais e escolas?”, se pergunta Charles Enoch, professor na Universidade de Oxford. “E o próprio Zuckerberg seria menos ‘feliz’ se aumentasse seu patrimônio somente nesse valor?”. Parece razoável, diz Enoch, que alguém que ganha mais de 100 milhões de dólares (374 milhões de reais) por ano deva pagar pelo menos 90%.

Governo paga resgate, mas país continua refém

O baronato do transporte de carga sequestrou a rotina dos brasileiros sem levar o rosto à vitrine. Terceirizou o bloqueio de estradas aos caminhoneiros autônomos. No quarto dia, com o país submetido ao caos do desabastecimento, o Planalto cedeu integralmente às exigências. Em troca, obteve um armistício mixuruca de duas semanas, que não foi subscrito por todos os sequestradores da paz social. Quer dizer: o governo de Michel Temer pagou o resgate, mas o Brasil continua refém de uma ilegalidade: o locaute (pode me chamar de greve de patrões) é proibido pela legislação brasileira.

Nas palavras do negociador Eliseu Padilha, chefão da Casa Civil, o governo cedeu “tudo o que foi solicitado”. Isso inclui o tabelamento do preço do diesel por 30 dias e um subsídio para atenuar os reajustes até o final do ano. Para que a Petrobras não fique no prejuízo, o Tesouro Nacional (também conhecido como contribuinte) pagará à estatal a diferença entre o preço de mercado e o refresco servido à turma da roda presa. Coisa de R$ 5 bilhões até o final do ano, quando Temer será enviado de volta para casa. Ou para onde outro lugar.


Repetindo: armou-se algo muito parecido com uma versão envergonhada do controle de preços adotado sob Dilma Rousseff. A diferença é que, para não impor novos prejuízos à Petrobras, o custo do subsídio migrou do passivo da estatal para o bolso da plateia —que muita gente acredita ser a mesma coisa. Como dinheiro público não é gratuito, será necessário cortar os R$ 5 bilhões de outras áreas da administração pública. A última vez que o governo teve de fazer isso, transferiu verbas do seguro desemprego para cobrir o calote aplicado no BNDES pela Venezuela e por Moçambique.

Numa evidência de que o patronato utilizou os caminhoneiros como bonecos de ventríloquo, incluiu-se no acordo o compromisso do governo de não permitir que o Congresso reonere a folha salarial do setor. De novo: a folha das empresas transportadoras continuará isenta do pagamento de imposto. Tudo isso mais a redução de taxas e tributos que incidem sobre o diesel.

Admita-se que o governo não tinha outra alternativa senão negociar. Mas precisava fazer isso de joelhos? Não poderia ter condicionado as concessões à desinterdição prévia das rodovias? Era mesmo necessário passar a mão na cabeça do patronato que trafega no acostamento da legislação. Na manhã desta sexta-feira, ainda faltarão mantimentos na gôndola, combustível na bomba e remédios na prateleira. Mas nenhuma mercadoria é mais escassa no momento do que a autoridade presidencial.

Michel Temer tornou-se uma pequena criatura. Ninguém ignora que o personagem brigou para permanecer ao volante. Mas falta-lhe um itinerário. Consolidou-se como um ex-presidente no exercício da Presidência.

Perder tempo, paixão nacional

A crença na nossa abundância natural e inesgotável de florestas, campos férteis, subsolos ricos, rios e mares também parece valer para o tempo. Perdido, no caso.

Nos países mais prósperos e civilizados, o tempo do cidadão foi se valorizando cada vez mais, não por angústia metafísica, mas pelos resultados da boa e velha máxima time is money.

Principalmente quando money pode comprar o bem mais precioso: time.

Penso no tempo perdido no trânsito, em filas lentas e intermináveis, em longas e penosas viagens para o trabalho em transportes precários, no tempo que se perde em repartições públicas e em processos judiciais, como é tradição brasileira, e em setores modernos como bancos e supermercados.

No tempo que uma atendente de um McDonald’s americano serve quatro pessoas, uma brasileira serve uma. Uma questão de timing. E objetividade, da atendente e do freguês. O tempo ali é dinheiro para todos. É o que se pode chamar de produtividade, que dá mais dinheiro para empregados e empregadores, e mais tempo livre.

Recentemente, perguntaram a trabalhadores americanos e europeus se estariam dispostos a trabalhar mais 10% de tempo por mês para ganhar mais 10% de salário. A maioria absoluta de americanos aceitava, e os europeus rejeitavam. Pelo valor do tempo livre para eles. Mesmo em pequenos vilarejos italianos há obras de arte, tradição, histórias, famílias, comida, vinho, natureza. O que fazer numa cidadezinha americana no tempo livre?

O brasileiro tem uma capacidade nata para perder tempo, principalmente do outro. Movido por uma cultura do papo e da dispersão, tem no DNA a preguiça e a malandragem de Macunaíma, que vem de cima para baixo, e volta para cima, prejudicando a todos e torrando fortunas do bem mais precioso dos tempos modernos: o tempo.

O Brasil resiste à cultura moderna e tecnológica de “comprar um serviço” e insiste na tradição colonial de “alugar uma pessoa” o mês inteiro, para um trabalho que pode ser feito na metade do tempo.

Hoje não há tempo mais perdido do que horas vagando pela internet, espalhando mentiras e xingando adversários políticos.