quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Medo, a base da religião

A religião se baseia, acredito, em primeiro lugar e principalmente, no medo. Trata-se, em parte, do terror ao desconhecido e, em parte, como eu já disse, do desejo de sentir a existência de um tipo de irmão mais velho a proteger-nos em todos os problemas e disputas. O medo é a base de todo o problema: medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte. O medo é o progenitor da crueldade, e portanto não é nada surpreendente o fato de a crueldade e a religião andarem lado a lado. Isso acontece porque o medo é a base de ambas as coisas.

Neste mundo, agora podemos começar a compreender um pouco as coisas e a controlá-las com a ajuda da ciência, que abriu seu caminho à força, passo a passo, contra a religião cristã, contra as igrejas e contra a oposição de todos os preceitos antigos. A ciência pode nos ajudar a superar esse medo covarde no qual a humanidade vive há tantas gerações. A ciência pode nos ensinar, e acredito que também nosso próprio coração pode fazê-lo, a não mais olhar em volta em busca de apoios imaginários, a não mais inventar aliados no céu, mas, em vez disso, a olhar para os nossos próprios esforços aqui embaixo, a fim de fazer deste mundo um lugar adequado para se viver, em vez do tipo de lugar em que as igrejas ao longo desses séculos todos o transformaram.

Bertrand Russell, "Por que não sou cristão"

Ah, se o Nordeste não fosse tão atrasado. Bolsonaro teria vencido

Nunca antes na história deste país, quem chegou ao segundo turno atrás virou a eleição. Quer dizer o quê? Apenas isso. Não é nada, não é nada, pode acontecer que a regra se mantenha e Bolsonaro perca, ou que pela primeira vez a regra seja ignorada e ele vença.

Faltou 1,6% de votos válidos para que Lula se elegesse. Significa… Significa que faltaram 1.800 mil votos. Para Bolsonaro, faltaram mais de 8 milhões. Cresceu o percentual dos eleitores que não votaram. E o prejuízo foi maior para Lula do que para Bolsonaro.


Bolsonaro começou a ensaiar explicações para sua derrota no primeiro turno. A primeira: os nordestinos são analfabetos. No Nordeste, ele perdeu por uma diferença de 12,9 milhões de votos. Omitiu, porém, que ali teve mais votos do que em 2018.

Os nordestinos se tornaram alvos de ataques xenofóbicos nas redes sociais. Em sua maioria, as mensagens são de perfis de apoiadores de Bolsonaro. Algumas delas sugerem que o governo deixe os nordestinos na miséria e passando fome.

A esse ponto, Bolsonaro não chegou na live que fez. Ele preferiu culpar as administrações do PT pela situação do Nordeste:

“Não é só a taxa de analfabetismo alta o mais grave nesses estados. Outros dados econômicos também são inferiores. […] Onde a esquerda entra, leva o analfabetismo, a falta de cultura, o desemprego, a falta de esperança. É assim que age a esquerda”.

Segunda explicação de Bolsonaro para sua derrota: a apuração dos votos teve “alguns problemas”. Não apontou quais. O Tribunal Superior Eleitoral não viu problemas, nem o Tribunal de Contas da União, nem os militares, nem os observadores internacionais.

Bolsonaro disse ter visto semelhanças da evolução da apuração destas eleições com a disputa entre Dilma (PT) e Aécio Neves (PSDB). Em 2014, Aécio saiu na frente e Dilma o superou depois. Agora, foi Bolsonaro que saiu na frente e acabou atropelado.

Quer dizer o quê? Num caso como no outro, a apuração foi mais rápida em regiões onde Aécio, em 2014, e Bolsonaro, este ano, conseguiram mais votos. E foi mais lenta em regiões onde Haddad e Lula conseguiram mais. Elementar, não lhes parece?

Em uma eleição, tudo se resume a isto: ganha quem atrai mais votos, perde quem atrai menos. O mais, como sempre, é choro de perdedor, temeroso em colher mais uma derrota. A mais nova pesquisa do Ipec aumentou a preocupação de Bolsonaro.

Primeira e única


Todos os homens nascem iguais, mas essa é a última vez que o são
Abraham Lincoln

Brasil e o passado imprevisível

“O passado é muito imprevisível”. A frase, brilhante e perturbadora, é da historiadora norte-americana Kristin Ross, num ensaio de 2020, no qual acrescentava o seguinte: “O passado não é didático: a sua relação com o presente não é uma relação pedagógica, não é nem estável nem fixa.” Esta reflexão não me sai da cabeça a propósito da situação brasileira. Qualquer visão etapista da história colapsa perante a vaga neofascista do século XXI. O racismo, a negação dos direitos humanos, o classismo mais violento, a apologia da violência contra a diversidade estão aí e consolidam um campo com raízes fortes.

Bolsonaro entusiasma Ventura e neutraliza, também em Portugal, outros setores de direita. Uma mulher como Cecília Meireles declarava na televisão, há dias, que não faria nenhuma escolha caso estivesse no Brasil. Montenegro, que alimenta um crescente namoro com o Chega, terá provavelmente a mesma posição. Ora, essa neutralidade de uma direita que não se reivindica do fascismo faz a força da extrema-direita, no Brasil como noutros países. Ela explica também o desaparecimento eleitoral da direita dos “democratas liberais” e a sua substituição pelo campo fascista na representação popular.

É bom lembrar, Bolsonaro é um apologista confesso da ditadura militar, dos seus assassinatos e da tortura, sendo múltiplas as declarações nesse sentido e simbólico o elogio ao torturador de Dilma na votação do impeachment. Ataca a separação de poderes e o Supremo Tribunal Federal se este não alinha pelo seu diapasão. Promoveu de forma desabrida a destruição da Amazónia, o que constitui uma tragédia para o mundo inteiro. Instiga a violência política contra os seus adversários - vários apoiantes de Lula foram assassinados nos últimos meses por bolsonaristas, em jantares, festas de família ou na rua. Defende abertamente a desigualdade entre mulheres e homens, a discriminação das minorias sexuais, o ataque às populações indígenas, o negacionismo científico e climático.

As 600 mil mortes registadas na pandemia têm sido classificadas por muitos como um genocídio que é em grande medida um efeito das suas políticas. Bolsonaro advoga a ausência de fronteiras entre política e confessionalismo religioso, cultivando uma relação de concubinato com o fundamentalismo evangélico. Ao mesmo tempo que brada contra a “corrupção”, é o exemplo acabado de um político corrupto: comprou 51 imóveis com dinheiro vivo nos últimos anos, desde que entrou para a política, no valor de mais de 5 milhões de euros. E, para gáudio de algumas elites económicas saudosas do escravismo, executa um recuo do Estado em todas as suas funções sociais, estando filiado no “Partido Liberal”, sublinhado por essa via o seu compromisso com o capitalismo extrativista e de acumulação sem regras, o qual conviveu vibrantemente, em tantos momentos históricos, com soluções políticas autoritárias.

Nas próximas semanas, será cavalgada por Bolsonaro a disparidade entre as sondagens e os resultados da primeira volta nas eleições brasileiras. Não lhe restando espaço para continuar a campanha contra o voto em urna eletrónica, como ensaiou, usará a seu favor o hiato entre o peso eleitoral que teve e as previsões publicadas. De resto, como tem sido abundantemente assinalado, a extrema-direita brasileira já teve uma vitória: a eleição de vários senadores e congressistas garante-lhe um peso significativo no próximo ciclo político e condições de reprodução da sua influência política e social, mesmo que Bolsonaro perca, como é provável, as eleições para presidente. A esta influência institucional soma-se uma força social organizada, com as suas bolhas comunicacionais, a sua máquina de notícias falsas, milhares de armas distribuídas pela população civil e importantes posições da extrema-direita no aparelho de Estado.

Lula, por seu lado, sendo a esperança que resta para que a democracia política sobreviva, está numa camisa de forças. A estratégia traçada foi a de colocar a clivagem não entre a esquerda e a direita, mas entre o campo democrático e o campo fascista, porque é essa a escolha real que se coloca na eleição presidencial no Brasil. Por isso, junto a Lula estão vários setores de direita, incluindo o seu vice-presidente, Gerlado Alkmin. O apoio de Ciro Gomes e de Simone Tebet significará novos compromissos com o centrão, com o capital financeiro e com os setores mais poderosos da sociedade brasileira, que não querem nenhuma alteração na estrutura profunda de desigualdade.