quarta-feira, 17 de abril de 2019

Brasil, palácio em festa


Mais um ano no vermelho

O governo Bolsonaro prefere rosa e azul, principalmente na roupa das crianças, mas é vermelho o seu projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) apresentado ontem: a estimativa do deficit das contas públicas no próximo ano é de R$ 124 bilhões, R$ 14 bilhões a mais do que a anterior. Ou seja, o governo está enxugando gelo em termos de ajuste fiscal, mesmo considerando a reforma da Previdência.


O outro lado da moeda é o valor do salário mínimo em 2020, que será de R$ 1.040, um aumento de R$ 42 em relação aos atuais R$ 998. Não haverá aumento real do salário mínimo no ano que vem, que será corrigido apenas pela inflação medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). Os números da LDO são um banho de realidade na retórica da “nova política”, que coleciona polêmicas no varejo. No atacado, a opção é quase o “mais do mesmo”: meta de inflação e câmbio flutuante; o superavit fiscal, premissa para a retomada do crescimento, está além do horizonte.

A economia do país está em desaceleração. Em fevereiro, registrou a maior retração desde maio de 2018, quando ocorreu a greve dos caminhoneiros, segundo os números divulgados, ontem, pelo Banco Central. Considerado uma prévia do PIB, o Índice de Atividade Econômica do BC (IBC-Br) registrou, em fevereiro, um recuo de 0,73%, na comparação com janeiro deste ano. O resultado foi calculado após ajuste sazonal (uma espécie de “compensação” para comparar períodos diferentes). Maio de 2018 foi marcado pelos efeitos da greve dos caminhoneiros, que resultou em um tombo de 3,11% na prévia do PIB.

A economia está travada. O cenário macroeconômico não mudou, em grande parte, porque o presidente Jair Bolsonaro emite sinais de que não está muito empenhado em aprovar a reforma da Previdência nem acredita nos fundamentos liberais de sua política econômica. No varejo, há sinais preocupantes de que o presidente Bolsonaro governa na contramão do projeto do atacado. O caso da política de preços da Petrobras é bastante emblemático quanto a isso.

Ao intervir numa decisão da petroleira, sustando o aumento do diesel, para atender reclamações de lideranças dos caminhoneiros, o governo meteu-se numa enrascada, porque sinalizou fraqueza e desorientação. Recuou diante de uma ameaça de greve dos caminhoneiros, que foram um esteio de sua campanha eleitoral; agiu de forma extremamente inábil, ao vetar publicamente o aumento, o que desmoralizou a diretoria da empresa e sua política de preços perante os seus investidores.

Ontem, ministros e técnicos do governo passaram o dia discutindo como consertar o estrago, enquanto o mercado aguarda uma decisão sobre o preço do diesel, que deve ser anunciada, hoje, em reunião com o próprio presidente Jair Bolsonaro. A política de concessões do governo Bolsonaro é seu ponto mais forte, administrativamente, mas está batendo no teto, enquanto o programa de concessões e os leilões de petróleo vão muito bem, obrigado. O problema são as privatizações, que estão estagnadas. Os militares ocuparam as empresas estatais e consideram muitas delas estratégicas para o desenvolvimento nacional.

Bolsonaro é um cristão novo do liberalismo, ao qual se converteu mais por conveniência política do que por convicção decorrente do conhecimento: já disse que não entende nada de economia. Entretanto, a política é a economia concentrada, e Bolsonaro não hesita na hora de tomar decisões com base no senso comum de suas bases eleitorais, sem medir muito as consequências, como no caso do diesel.

Enquanto administra no varejo, a inércia começa a mostrar sua cara no atacado. Ontem, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados decidiu discutir a proposta que aumenta os gastos obrigatórios do governo, a chamada PEC do Orçamento, antes de debater a reforma da Previdência. A reunião havia sido convocada para discutir a reforma da Previdência. Foi uma derrota anunciada do governo, pois, desde a semana passada, os partidos do Centrão passaram a articular o adiamento do debate, enquanto Bolsonaro estava mais preocupado com as máquinas e os equipamentos dos ladrões de madeira da Amazônia apreendidos pelo Ibama.

Bolsonaro precisa reavaliar a forma como está conduzindo sua relação com o Congresso. Os partidos do Centrão, como PP, PR e DEM, apoiaram um requerimento do PT para a CCJ analisar, primeiro, a proposta sobre o Orçamento. PSDB, Novo e Patriota votaram contra a inversão da pauta. Até mesmo o PSL, partido de Bolsonaro, votou a favor da mudança. As conversas com Bolsonaro levaram os líderes desses partidos a concluírem que o presidente da República não quer colar seu nome à reforma da Previdência; no jargão parlamentar, “filho feio não tem pai”.

Conseguimos piorar o que já era ruim

Com o brasileiro, não há quem possa, dizia uma musiquinha ufanista —e brega, como todo ufanismo;lá pelos anos 70.


Agora, dá para repetir: tanto é verdade que ninguém pode com o brasileiro que essa nossa formidável tribo consegue, nestes momentos, tornar ainda pior o que já era ruim, muito ruim.

Refiro-me, claro, ao surto censório de ministros do STF, que, primeiro, resolveram sair por aí caçando autores de “fake news".

Depois, aplicaram a censura a duas publicações (Antagonista e Crusoé)</a>, que ousaram reproduzir trechos de um inquérito da Lava Jato em que há uma insinuação da Odebrecht sobre o atual presidente da Corte, Dias Toffoli.

Não é curioso que, quando todas as publicações do mundo usavam trechos da Lava Jato com acusações sobre Lula, Temer, Aécio, Eduardo Cunha e uns “trocentos” outros políticos, o Supremo não censurou ninguém?

Criou-se um tremendo paradoxo, mais uma jabuticaba: um presidente da República, Jair Bolsonaro, notório por defender a ditadura (que censurou a mídia em geral) e a tortura (que matou jornalistas, caso, por exemplo, de Vladimir Herzog), agora vem a público para dizer que a "liberdade de expressão é direito legítimo e inviolável".

Enquanto isso, o STF, em tese o grande vigia do cumprimento da Constituição, a que defende o tal “direito legítimo e inviolável", viola esse princípio. Meu Deus, como é que vou explicar essa bagunça para meus amigos estrangeiros?

Chega-se agora, aliás, ao ponto culminante da bagunça. Já tínhamos um Executivo capaz de meter-se em uma confusão atrás da outra, uma espécie de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, aquele que não veio para explicar mas para confundir.

Não é o caso de repetir todas as barbaridades praticadas nestes cento e poucos dias de governo. Mas é preciso citar a mais recente, a declaração, depois corrigida, de que é possível perdoar o Holocausto, mas não se deve esquecê-lo.

Já seria uma estupidez rematada em qualquer cidadão, mas torna-se aberrante na boca de quem se diz profundo admirador de Israel. Que se ofenda um inimigo, dá até para entender (embora não se justifique), mas que se agrida um amigo, aí é coisa de louco.

Entende-se por isso a reação de autoridades judaicas para dizer que o Holocausto não é perdoável. Não é mesmo.

Trata-se de um crime não contra os judeus —o que já seria intolerável— mas contra a humanidade. Crimes contra a humanidade não são toleráveis nem prescrevem.

Mas o que esperar de quem defende outro crime contra a humanidade, como o é a tortura? 
A bagunça no Executivo estende-se ao Legislativo, como se tem visto dia sim, o outro também.

Aí vem o Judiciário e dá sua inestimável contribuição para a baderna generalizada.

No caso da investigação sobre “fake news", qualquer criança de berçário sabe de cor que quem investiga não julga; quem julga não investiga. Ponto.

O espantoso é que talentos como o dos editorialistas desta "Folha" e os imperdíveis Hélio e Bruno tenham sido obrigados a desenhar essa obviedade para os ministros do STF.

Não sei quem foi que disse que o Brasil é maior que o abismo e, portanto, não pode cair nele. Sei, não. O país está se apequenando tanto que vai acabar cabendo, sim, mais cedo que tarde.

Humildade

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa
Cora Coralina

O dilema da responsabilidade

‘Crédito maligno”, a expressão concebida pelo escritor Augusto de Franco, projeta as condições para aquilo que chamarei de dilema da responsabilidade. Qual seja: a situação do indivíduo convicto da necessidade de se aprovar uma reforma da Previdência potente, mas que, ao mesmo tempo, contempla os riscos decorrentes de entregar descompressão fiscal — logo, capacidade de investimento — a um governo cuja natureza autocrática é tão evidente quanto de operação singular.

Não trato aqui de ameaça fascista nem da possibilidade de uma ditadura conforme o modelo clássico, mas de um projeto de poder autoritário cuja dinâmica, a da campanha permanente, do conflito constante, é de emparedamento da democracia representativa e de rebaixamento das instituições republicanas em prol de uma hierarquia submetida ao governante eleito.


O governo Bolsonaro é um terreno para confronto incessante. Os choques não são pontuais nem podem ser compreendidos como típicos de uma administração ainda no início, mas consistem na exata expressão do grupo bolsonarista mais influente, a autointitulada ala antiestablishment, que não existe senão forjando campos de batalha para a tal guerra cultural. O bolsonarismo, comando para combate, produto do colapso político brasileiro, precisa do fomento continuado a rupturas e da conflagração institucional regular.

Já escrevi que o sucesso de um pacote liberal pujante tracionaria as engrenagens econômicas para que o bolsonarismo pudesse brincar longamente no parquinho ideológico. Ocorre que não é brincadeira. Não nos esqueçamos de que um governo pode ser ruim — nocivo — ao ambiente democrático, à qualidade do convívio social, e, concomitantemente, bem-sucedido em matéria econômica, esse bom resultado bancando os olhos fechados à depauperação dos pesos e contrapesos que ancoram a liberdade.

A história é rica em exemplos de quando a mentalidade econômica liberal, tecnocrata, serviu a projetos autoritários de poder. Não seria novidade nem caberia atribuir ingenuidade aos liberais econômicos; mas, antes, refletir sobre se não teriam entendido que fica mais fácil avançar a agenda sob menos contraditório.

Não é mandatório que um programa econômico liberal dependa de instituições democráticas vigorosas nem é certo que liberais econômicos tenham a democracia liberal como padrão inegociável. Certo é, porém, que o bolsonarismo precisa que algo da agenda liberal encaixe como gatilho — “crédito maligno” — para o lastro material de um esquema autocrático a ser acomodado pela tranquilidade concreta proporcionada, por exemplo, pela geração de empregos.

Aí está o dilema da responsabilidade: quanto estaremos dispostos a comerciar da estabilidade — do equilíbrio — institucional em troca de uma reforma cujo impacto abriria os cofres para um governo que funciona, como regra, na lógica da colisão e que tem, por oxigênio, a necessidade de fabricar inimigos?

Sob o bolsonarismo, obrigatoriamente, viveremos num regime de crises, sob o desgaste de um tempo de imprevisibilidade e do que sempre nos parecerão exceções — a própria negação do espírito de ponderação que caracteriza a democracia. O processo de revolução reacionária bolsonarista não é mera retórica eleitoral — no sentido de que não se esgotou com a vitória nas urnas. É perene, agora vertido em guerra interna contra o establishment encrustado na máquina pública. Um governo que, melhor ou pior gestor, é sobretudo oposição.

É batalha sem fim, briga cujo cerne é a infinitude, guerrilha de mobilização cujo norte é criminalizar a atividade política para deslocar o Poder representativo, o Legislativo, tratado como força intermediária e menor, à posição de acuado que se deve encurralar sempre. Isso está dado. Não há República que prospere assim, embora não seja improvável que a economia o faça; de modo que não será ilegítimo um parlamentar pensar da seguinte maneira, o dilema da responsabilidade agravado pelo instinto de sobrevivência: “Se, sob tamanha crise e precisando de mim, o governo me trata como bandido, como me tratará quando estiver nadando em dinheiro e eu não for mais necessário?”

Como editor e jornalista, tenho pensado: devo apoiar — devo me empenhar por — uma reforma da Previdência trilionária, que sei necessária, se também sei que é a condição fundamental para o financiamento de um projeto autoritário de poder? Tenho pensado, admito, sobre se não haveria solução intermediária capaz de minimizar o problema e empurrar o enfrentamento estrutural da Previdência para uma ocasião mais saudável politicamente.

Nunca tive dúvida de que a democracia liberal — como a temos hoje — não é valor para o bolsonarismo. O ponto é que talvez seja mesmo o empecilho.

Toffoli, uma caricatura de ditador

De duas uma. Ou falta conhecimento jurídico ao ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ou sobra vocação para ditador. Há uma terceira hipótese: à ignorância jurídica e à vocação para ditador alia-se o medo de ser flagrado em ato ilícito.

Está na Constituição: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social&#8221;. Está lá também: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

E como se não bastasse, outro artigo da Constituição determina: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Seria preciso dizer algo mais a respeito? Por desnecessário, não.

Pois bem: Toffoli pediu e seu colega Alexandre de Moraes ordenou à revista eletrônica Crusoé e ao site O Antagonista a retirada do ar de uma reportagem onde o empresário Marcelo Odebrecht revela quem era o dono do codinome “amigo do amigo do meu pai”.

O pai de Marcelo se chama Emílio. O amigo de Emílio era Lula. O amigo de Lula era Toffoli. Foi o que Marcelo contou em depoimento à Lava Jato. Toffoli foi o advogado-geral da União entre 2007 e 2009 enquanto Lula presidia o país e a Odebrecht ganhava dinheiro.

Ganhou muito nos dois mandatos de Lula, inclusive superfaturando o preço para a construção de uma hidrelétrica no Rio Madeira. A Odebrecht pagou propina no contrato firmado com o governo. Marcelo disse não saber a quem a propina foi paga.

O mais escandaloso nisso tudo, para além da censura, foi que o depoimento de Marcelo, uma vez tornado público, acabou retirado dos autos da Lava Jato depois que juiz da 13ª Vara, Luiz Antonio Bonat, pediu informações a respeito. Quem retirou? Por ordem de quem?

Em resumo: a Lava Jato quis saber quem era “o amigo do amigo do meu pai”, fato; Marcelo respondeu que era Toffoli, fato; a Crusoé e O Antagonista limitaram-se a contar o que havia ocorrido, fato. Então a censura proibida pela Constituição foi restabelecida no país, fato.

Uma aberração deu origem a outra. A censura é filha da portaria baixada por Toffoli para apurar “notícias fraudulentas, denunciações caluniosas e infrações revestidas de animus caluniador, difamador e injurioso que possam atingir a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares”.

Alexandre de Moraes foi designado por Toffoli para presidir o inquérito aberto. Ele pode convocar juízes para auxiliá-lo – e já o fez. E acionar a Polícia Federal, e já acionou. Alexandre é quem dirá se uma notícia é fake, caluniosa, e se põe em risco a segurança do STF enquanto instituição, ou dos seus ministros e parentes.

A portaria de Toffoli envergonhou vários dos seus pares, a maioria deles, contudo, sem coragem suficiente para declarar que ela é simplesmente bizarra e deve ser revogada o mais rápido possível. Se não for, melhor que se reconheça que no país da jabuticaba brotou mais uma – a ditadura da toga.

Gente fora do mapa


As três categorias de pessoas que Bolsonaro tem pressa para 'facilitar a vida'

Fiquei curioso ao ler no último dia 11, quinta-feira, que o presidente Jair Bolsonaro, em meio ao caos que vive seu Governo, acabara de anunciar que tinha decidido, em caráter de urgência, primeiro com um decreto e em seguida com um projeto de lei, “facilitar a vida” de três categorias de pessoas. A notícia foi dada por Manoel Ventura no jornal O Globo.


O presidente devia ter consciência de que o fato não era banal já que antecipou que o decreto-lei “dará o que falar”, mas que ele “havia decidido democraticamente” a favor dessas três categorias, depois de ter consultado “membros do Exército e da Polícia Federal”. Vocês imaginam quem o presidente deseja, e com urgência, favorecer? Trata-se dos “colecionadores de armas, dos atiradores e dos caçadores”.

Fui ingênuo quando, por um instante, cheguei a pensar que poderiam ser medidas importantes do presidente em matéria social para favorecer as categorias mais sofridas e abandonadas da sociedade. Por exemplo, esses seis milhões de brasileiros que, contra o que exige a Constituição, que obriga a garantir a todos trabalho e moradia, ainda carecem de um lugar para morar. Ou aos que se refugiam nas grandes periferias violentas das cidades, em casebres que os pecuaristas recusariam para seus animais pelo seu grau de insegurança, como vimos dias atrás na tragédia da favela de Muzema, no Rio, dominada pelas milícias, onde dois edifícios acabaram em pó sob o pânico de seus moradores com um balanço até agora de onze mortos.

Imaginei, também em vão, que outra categoria que Bolsonaro decidiu facilitar a vida era a desses milhões de trabalhadores que vivem todos os dias o drama de ter de se deslocar de periferias distantes e violentas para o centro da cidade para ganhar seu pão. Falem com eles e contarão histórias que ferem a dignidade humana, tendo de usar até três meios de transporte, sempre os piores, superlotados, perigosos pelos assaltos, sem um mínimo de conforto. E depois um árduo dia de trabalho, voltar a empreender o retorno para casa com o acréscimo do cansaço do dia. E assim semanas, meses e anos.

Pensei, finalmente, que o Presidente, com a sua obsessão pelo tema da educação, poderia ter decidido redimir esse exército de professoras que cuidam de 24 milhões de alunos e sobre as quais recai a responsabilidade de construir o Brasil do futuro. Acreditei que, em vez de se perder nos labirintos da Escola Sem Partido e outras loucuras que ofendem o bom senso, teria decidido redimi-las pelo menos da miséria de seus salários que lhes impede de continuar se atualizado em uma matéria em evolução no mundo. Que havia decidido, como nos países modernos, acabar com seus salários de miséria. Enquanto, por exemplo, no Canadá, uma professora primária pode ganhar como um juiz ou um senador, aqui no Brasil, pasmem!, o Estado gasta para pagar o salário de uma professora primária durante oito anos o mesmo que gasta com um deputado em um mês entre salário e privilégios. Difícil encontrar um adjetivo para tamanha injustiça.

Só que o meu foi apenas um sonho. Quando li a notícia completa das três categorias às quais Bolsonaro havia decidido, e com celeridade, “facilitar a vida”, não eram nenhuma daquelas que havia imaginado. Eram três categorias de pessoas que cultuam as armas, todas elas objetos criados para matar. Evocam a morte mais que a vida.

Não entendi por que ajudar os que colecionam não obras de arte, mas pistolas e fuzis. Ou como favorecer os atiradores, a não ser que, em vez de multiplicar nas cidades as creches e os centros de emergência médica, prefira multiplicar as academias de tiro. E os caçadores? O presidente já havia anunciado que queria favorecer o turismo na Amazônia. Será que está pensando em organizar, como em alguns países africanos, o turismo de caçadores de animais selvagens, onde existem até listas de preço de acordo com o tipo de animal que se escolhe para matar, por exemplo, um elefante, um leão, uma girafa ou um chimpanzé. Matar um filhote de elefante é geralmente mais barato, por exemplo, do que um elefante adulto. Na Amazônia, os caçadores furtivos da onça pintada estão extinguindo um dos animais mais belos do mundo. Será que o presidente quer regularizar a caça dessas joias da nossa Amazônia?

Lembro que, a respeito dos países que permitem aos turistas, pagando, abater animais selvagens, quando em abril de 2012 se descobriu na Espanha, que o então rei Juan Carlos I, que gozava da estima até de muitos não monarquistas por seu equilíbrio em manter a unidade do país, tinha ido às escondidas a Botsuana, na África, para matar um elefante. Ele sofreu a vingança dos animais ali mesmo. No hotel da reserva, quebrou uma perna. Um avião teve de ir de Madri para buscá-lo e a notícia se tornou pública. Desde então, coincidência ou não, uma série de reveses foram caindo sobre a figura do Rei, que se eclipsou e acabou abdicando dois anos depois em favor de seu filho, Felipe.

No Brasil, hoje, milhões de pessoas precisam e com urgência de que se lhes facilite a vida mais do que aos colecionadores de armas ou aos caçadores de animais. Neste país em que se tenta mudar a legislação para que cada vez seja mais fácil caçar humanos impunemente, Bolsonaro manifesta pressa em facilitar também a vida dos caçadores de animais. Os valores da vida e da dignidade da pessoa vão se desvanecendo a cada dia, enquanto cresce a paixão por armas e pela violência. Agora também contra os animais. Falta algo mais?

O culpado do mundo

Pela lógica deste sistema, toda a culpa é da pessoa. Se não tem um bom emprego, a culpa é tua; se o salário é baixo, a culpa é tua; se a Bolsa caiu, a culpa é tua; se aumentou a expectativa de vida, a culpa é tua; se não há um sistema de proteção, a culpa é tua
Andras Uthoff, professor da Universidade do Chile

O pastel e a crise

Quando a crise convida ao pessimismo ou ameaça descambar na depressão, está na hora de ler. Poesia ou prosa, tanto faz.

Verdadeiro sábio era o Rubem Braga. Tinha com a vida uma relação direta, sem intermediação intelectual. Houvesse o que houvesse, trazia no coração uma medida de equilíbrio que era um dom de nascença, mas era também fruto do aprendizado que só a experiência dá. No pequeno mundo do cotidiano, sabia como ninguém identificar as boas coisas da vida. E assim viveu até o último instante.

Certa vez, no auge de uma crise, crivada de discursos e de diagnósticos, o Rubem estava de olho nas frutas da estação. Madrugador, cedinho já sabia das coisas. Quando o largo horizonte nacional andava borrascoso, ele se punha a par das nuvens negras, mas não mantinha o olhar fixo no pé-direito alto da crise. Baixava o olhar ao rodapé, pois o sabor do Brasil está também no rés do chão. Num dia de greve geral, inquietações no ar, tudo fechado, o Rubem me telefonou: "Vamos ao Bar Luiz, na rua da Carioca? Vamos ver a crise de perto".

E lá fomos. O bar estava aberto e o chope, esplêndido. Começamos por um preto duplo, que a sede era forte. Depois mais um, agora louro. E outro. Claro que não faltou o salsichão com bastante mostarda. Calados, mas vorazes, cumpríamos um rito. Alguém por perto disse que a Vila Militar tinha descido com os tanques. Saímos dali e fomos a um sebo. O Rubem comprou Xanã, do Carlos Lacerda, com dedicatória. Depois pegamos o carro e voltamos pelo aterro, onde se pode exercer o direito da livre eructação. Tinha sido um perfeito programa cultural. E sem nenhum incentivo do governo.

Vi agora na televisão que o maracujá está em baixa e me lembrei do velho Braga. Nem tudo está perdido. Fui à feira e comprei também dois suculentos abacaxis. Caem bem nesta hora de atribulação nacional. Só falta agora descobrir um bom pastel de palmito na zona norte. Se o Rubem estivesse aí, lá iríamos nós atrás da deleitosa descoberta. Depois, de cabeça erguida, enfrentaríamos a crise e até o caos.

Otto Lara Resende

Não tem colorido na aquarela do Brasil

Nem precisava. Mas por via das dúvidas ou talvez esperança, fizeram pesquisa. E descobriram o que somente precisava ser confirmado. O Brasil é intolerante. Segundo o Instituto IPSOS e provavelmente qualquer outra pessoa ou organização. O problema é que mesmo o óbvio pode ser perigoso. É grave.


Uma nação onde não se ouve só pode mesmo resultar nestes tempos estranhos que vivemos. Se é que algum dia toleramos, hoje em dia está claro que opiniões diferentes é algo que o brasileiro combate até o fim no país tropical. Diferente é errado por definição. Pelo menos é o que acreditamos.

O resultado é o que está aí. Uma (quase) nação onde o consenso se tornou impossível. Discutir virou esporte. E ganhar a discussão, questão de honra. Não há qualquer coesão possível. Vivemos fragmentados, frustrados e infelizes com as diferenças.

Também não aprendemos. Não conseguimos ouvir crítica. E, portanto, não enxergamos os próprios erros. Vivemos sob a ilusão que, de alguma maneira que não requer explicação, estamos sempre certos. E todos os outros, errados.

Em nossa autoproclamada democracia, não existe espaço para liberdade de opinião. Depois de gerações crescendo sob ditadura, a gente não entendeu que eleição não é o suficiente para chamar um regime ou uma nação de democrática.

Ruminamos o ressentimento com aqueles que não acreditam nas mesmas coisas. E transformamos este sentimento em ação política. Por isso, ou também por isso, não conseguimos selecionar nem escolher bons candidatos.

E ficamos empacados, sem ir nem vir, em eternas discussões sem fim cujo objetivo jamais é explicar. Apenas queremos convencer. Tudo é preto ou branco. Não gostamos mais de cores. Temos horror a diversidade. Até zona cinzenta incomoda. Eliminamos há espaço para dúvidas. Não tem colorido na aquarela do Brasil.

Elton Simões