sexta-feira, 23 de abril de 2021

Brasil, exemplo para o mundo

 


Os 'fora fila'

Todos os dias, milhões de brasileiros perdem horas preciosas em filas de ônibus e reclamam corretamente dos oportunistas fura-fila. Poucos percebem os “fora fila”: os que usam carros privados e os que não têm dinheiro nem vale-transporte. Há séculos, muitos brasileiros fazem fila para obter o que precisam, enquanto outros não têm direito nem de esperar em fila, por falta de dinheiro; enquanto outros não precisam se submeter a filas porque têm muito dinheiro.

Por causa das ineficiências econômicas, a palavra “fila” caracteriza o dia a dia dos brasileiros, mas por causa da injustiça social não se percebe os que estão fora das filas, de um lado e outro da escala de rendas. Alguns porque não precisam se submeter a elas, graças a privilégios e dinheiro; outros porque não têm o direito de entrar nelas. No meio, imprensados, os da fila, ignorando os extremos. Nós nos acostumamos a ver com naturalidade os que não precisam e ainda mais os que não conseguem entrar nas filas, por tratá-los como invisíveis.


No setor da saúde, nos indignamos com os que tentam furar a fila para tomar vacina, mas não percebemos a injustiça quando furam a fila porque podem pagar para ter atendimento médico, em vez de esperar por vaga no SUS.

Apesar do nome, o sistema nacional de saúde não é único: de um lado tem o SUS, com suas filas, e do outro o Sistema Exclusivo de Saúde (SEP) sem fila para os que podem pagar. Aceita-se furar fila graças ao dinheiro. Nem se consideram fura-filas, são os “fora fila”, aceitos por convenção de que o dinheiro pode comprar saúde.

O mesmo vale para a educação. Em função do coronavírus, o Brasil descobriu que algumas boas escolas, em geral pagas e caras, com ensino remoto, computadores e internet em casa, permitem que alguns cheguem ao Enem com mais possibilidade de aprovação do que outros. Apesar de que a aprovação é conquistada pelo mérito do concorrente, os aprovados se beneficiaram da exclusão de muitos concorrentes ao longo da educação de base. A desigualdade na qualidade da escola desiguala o preparo entre os candidatos, como uma forma de empurrar alguns para fora e outros para a frente da fila.

Temos a preocupação de assegurar os mesmos direitos para obter vacina, não o mesmo direito para a qualidade e a urgência no atendimento de saúde e de educação, independentemente da renda e do endereço da pessoa. É como se fosse normal furar fila por se ter muito dinheiro e normal ficar fora da fila por falta total de dinheiro.

No meio, ficam os que por pouco dinheiro ficam na fila e se indignam com os que tentam desrespeitar a ordem, sem se atentar para os fora da fila nos carros ou os fora da fila caminhando. Os primeiros aceitamos pelas leis do mercado, os outros tornamos invisíveis.

Bolsonaro tentou surfar em ações ambientais do PT e mentiu sobre o que tem feito

O presidente Jair Bolsonaro desafinou na reunião de cúpula. Em vez de falar do futuro, falou do passado. Curioso também é que ele elogiou o Brasil por ter reduzido o desmatamento, mas isso foi feito nos governos petistas. Os 7.8 bilhões de toneladas a menos emitidos - que ele citou - foram conquistas dos ministros nos governos do PT, Marina Silva, Carlos Minc e Izabella Teixeira que derrubaram o desmatamento entre 2004 a 2012, de 27 mil km2 até 4,5 mil kms. Ele, Bolsonaro, só fez aumentar. Para 10 mil quilômetros quadrados em 2019 e 11 mil no ano passado.

A única meta que ele melhorou foi a de longo prazo. Antecipou a neutralidade de carbono de 2060 para 2050. Nas metas de curto prazo, repetiu o que havia sido prometido pelo governo Dilma no Acordo de Paris.



Ele isentou o país. Disse que historicamente o Brasil não tem culpa já que emitiu apenas 1% das emissões de carbono na atmosfera. O tom dele desafinou porque os outros países falaram do futuro, e contaram o que podem fazer a partir de agora. Vários mudaram as metas do curto prazo. Ele, ao olhar pelo espelho retrovisor, culpou as grandes potências pelo estoque de carbono na atmosfera. O que é verdade mas eles mesmos reconhecem. E para elogiar o Brasil falou dos feitos dos governos petistas.

Sobre o seu governo, Bolsonaro mentiu. Ele disse que fortaleceu os órgãos de controle. Ele os enfraqueceu. Bolsonaro chegou a dizer que aumentou o orçamento desses órgãos de controle e o Ibama está sendo estrangulado financeiramente e impedido de agir. Então é mentira o que disse na reunião de cúpula.

Bolsonaro não fez o pedido direto de mais dinheiro. Felizmente recuou porque seria um mico internacional. Falou indiretamente que precisa de apoio financeiro imediato.

Quando se compara Bolsonaro com Bolsonaro houve um avanço porque ele já foi muito pior do que pareceu nesse discurso. Ele chegou a dizer na ONU que toda essa discussão de redução do desmatamento era complô de países competidores do Brasil no agronegócio.

As vítimas esquecidas da covid-19: cem milhões de pobres a mais

É habitual ler que, se excetuarmos o impacto das duas guerras mundiais e da Grande Depressão, a covid-19 provocou uma recessão sem precedentes no último século e meio. O que não é tão frequente é ouvirmos vozes denunciando que a crise atual prejudica em maior medida a população mais vulnerável dos países em desenvolvimento. E, entretanto, é triste comprovar que, pela primeira vez em décadas, a pobreza extrema aumentará em 100 milhões de pessoas, segundo cálculos do Banco Mundial.

Além disso, houve uma queda na renda per capita em mais de 90% dos países em desenvolvimento. Metade dessas economias perderá os avanços dos últimos cinco anos ou mais, e uma quarta parte verá todo o progresso realizado desde 2010 ser revertido.

A covid-19 está provocando uma queda nas remessas recebidas pelas famílias mais pobres. Pela primeira vez na história moderna, a quantidade de migrantes internacionais diminuiu.

Também a desigualdade aumentou. Enquanto em 10% dos lares ricos houve algum contágio, a doença chegou a mais da metade dos lares pobres, e a probabilidade de que seus moradores morram de covid-19 é quatro vezes mais elevada. A maior exposição ao coronavírus se deve a diferentes fatores:

- Ocupação em atividades essenciais que não foram interrompidas durante os confinamentos.

- Residência em bairros densamente povoados.

- Impossibilidade de reduzir as horas de trabalho por não contar com uma poupança.


As perspectivas em termos de crescimento são sombrias por causa dos cortes do investimento provocados pela deterioração nas expectativas dos agentes econômicos.

O crescimento futuro também se ressentirá do impacto da pandemia no capital humano, ao pôr em perigo os avanços no âmbito educativo e sanitário.

A aprendizagem foi interrompida com o fechamento das escolas, que prejudicou especialmente a população que não dispõe de meios para continuar a formação à distância. Além disso, a perda de renda das famílias obrigará a interromper a formação de muitas crianças e jovens. As meninas serão forçadas em maior medida a abandonar as salas de aula.

Ao mesmo tempo, a pandemia aumentou o gasto com saúde de famílias que já enfrentavam sérias limitações financeiras para cobrir suas necessidades médicas. Estima-se, igualmente, que tenha elevado em 130 milhões o número de pessoas afetadas pela fome crônica.

Ignorar este lamentável panorama não é justo, nem interessa agir assim. A pandemia só terminará quando terminar no mundo todo.

Entretanto, a resposta à covid-19 está sendo extremamente irregular: nas economias avançadas, os pacotes de estímulo contra a crise representam entre 15% e 20% do PIB, enquanto nas economias emergentes somam apenas em torno de 6% do PIB, e nos países mais pobres não chegam nem a 2%.

Pensar em termos nacionais é o mais fácil, sem dúvida, mas proteger a cooperação internacional também deveria ser uma prioridade. Não atender a tempo às urgentes necessidades dos mais desfavorecidos em longo prazo obrigará a maiores desembolsos para confrontar tragédias que poderiam ser evitadas.

O Fundo Monetário Internacional salienta que o desenrolar dos fatos a partir de agora dependerá do ritmo das campanhas de vacinação e da capacidade de oferecer uma resposta eficaz enquanto isso. Será preciso, portanto, reforçar a cooperação internacional prioritariamente em dois âmbitos.

Primeiro, é preciso assegurar o acesso em todo mundo aos exames de diagnóstico, aos tratamentos e às vacinas contra a covid-19. É animador saber que foi lançada uma iniciativa com esta finalidade, o Acelerador do acesso às ferramentas contra a covid-19, com a participação de organizações internacionais, governos, empresas e instituições da sociedade civil. Urge reforçar essa cooperação porque, neste momento, as economias avançadas adquiriram a maior parte do suprimento disponível.

De resto, é imperativo proporcionar aos países de baixa renda, que já estavam excessivamente endividados antes da propagação da covid-19, uma injeção adequada de liquidez internacional que amplie sua margem de manobra para enfrentar a crise.

O Banco Mundial e o FMI, em colaboração com o G20, criaram uma iniciativa para suspender temporariamente os pagamentos do serviço da dívida destes países. Assim, cerca de cinco bilhões de dólares puderam ser desviados para a luta contra a pandemia e suas consequências econômicas. No entanto, trata-se apenas de um primeiro passo, pois os credores privados não estão participando dessa iniciativa.

Definitivamente, a pandemia expõe a imperativa necessidade de maiores doses de cooperação internacional. Existe um risco evidente de que os países mais ricos se centrem em cobrir suas próprias necessidades. O problema é que esta atitude poderia deixar para trás as populações mais vulneráveis dos países em desenvolvimento.

Essa alternativa não é viável, nem do ponto de vista ético nem de uma perspectiva eminentemente prática. O mundo só será um lugar seguro quando todos os seus habitantes estivermos protegidos.
Mónica Goded, professora de Economia da Universidade Pontifícia Comillas e na Universidade de Nebrija, ambas em Madri

na rabuda, os 'párias'

O presidente brasileiro ficou no fim da fila dos líderes a discursar. E o presidente dos Estados Unidos não ficou para ouvir. Ou seja, a esdrúxula diplomacia do Brasil como “pária mundial” foi bem-sucedida
Flávio Dino, governador do Maranhão

Bolsonaro prometeu melhorar na Cúpula do Clima não existia

Em seu discurso na Cúpula do Clima, Jair Bolsonaro improvisou a redução de uma meta ambiental que, na prática, nunca chegou a existir.

Até ontem, o Brasil nunca havia se comprometido a neutralizar suas emissões de carbono em 2060, como o presidente sugeriu em seu discurso. Na mais recente manifestação formal sobre o tema, protocolada na Organização das Nações Unidas em dezembro, o país apenas dá um “indicativo de longo prazo” de que poderia chegar lá.

A data de 2060 foi mencionada em um documento oficial de compromisso, conhecido como NDC, protocolado 22 dias antes da data final para cada país entregar à ONU sua lista quinquenal de compromissos contra o aquecimento global.

Nele, a diplomacia brasileira fixou metas numéricas para a redução da emissão de carbono até 2030 e indicou que, a continuar nesse ritmo, o país poderia chegar à neutralidade em 2060. A neutralização das emissões acontece quando o país emite apenas o volume de gases que provocam o efeito estufa equivalente ao que consegue retirar da atmosfera.


Na ocasião, porém, os diplomatas fizeram um alerta que já antecipava o discurso de Bolsonaro nesta Cúpula: “A definição final de qualquer estratégia de longo prazo para o país, em particular o ano em que a neutralidade climática pode ser alcançada, vai depender no entanto do bom funcionamento dos mecanismos previstos no Acordo de Paris”. Traduzindo: pode ser ainda mais ousado no futuro se o dinheiro prometido pelos países ricos chegar.

O documento de dezembro também havia eliminado uma das metas mais relevantes assumidas pelo Brasil em 2015, que Bolsonaro ontem resolveu ressuscitar: zerar o desmatamento ilegal até 2030.

O novo tom no discurso de Bolsonaro acontece num momento em que seu governo está sob intensa pressão internacional para mudar a política ambiental. Vários fatores pesam contra o Brasil.

Nos dois anos de governo de Bolsonaro, o desmatamento cresceu e alcançou, em 2020, a maior devastação em 12 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sofre críticas e protestos de fiscais do Ibama e do ICMBio, ONGs, lideranças indígenas e, mais recentemente, até da Polícia Federal.

Também afetou a credibilidade do Brasil o malogro do Fundo Amazônia, que tem R$ 2,9 bilhões doados pela Alemanha e pela Noruega travados no BNDES por falta de consenso com o governo brasileiro sobre a forma de gerir e aplicar os recursos.

O ministro do meio ambiente fazia questão de vetar o acesso de entidades da sociedade civil, estados e municípios aos recursos, e não aceitava as regras de governança impostas pelos financiadores.

Além disso, o presidente brasileiro perdeu seu principal aliado no cenário mundial com a derrota, nos Estados Unidos, de Donald Trump para Joe Biden -- que fez questão de deixar a reunião minutos antes de Bolsonaro falar.

Nesta quinta, EUA, Reino Unido e Noruega anunciaram a criação de um novo fundo de US$ 1 bilhão para o combate ao desmatamento de florestas tropicais. É o mesmo valor que Salles pretendia obter nesta cúpula em doações para o Brasil.

Mas, diferentemente do que foi feito na criação do Fundo Amazônia, o dinheiro desta vez só virá como compensação para resultados. Com seguidos recordes nas taxas de desmatamento, o país não terá acesso a esses recursos tão cedo.

Apesar do discurso, na prática ainda vigora no cenário internacional a desconfiança expressada pelo secretário de estado americano, John Kerry, quanto à nova meta de Bolsonaro: "Isso funciona para nós. A questão é se eles farão o que têm que fazer". Ou pelo próprio vice-presidente Hamilton Mourão: "Em 2060, estaremos todos mortos. Tem é que reduzir o desmatamento agora".