De novo em Brasília, pois fiz uma viagem pelo Amazonas, e faltou ouvir os índios. Alguns líderes estão reunidos em Brasília.
Esta passagem é diferente das outras. Sempre falava com o fotógrafo Orlando Brito, ao chegar. Ele me mantinha informado de tudo o que se passa por aqui.
A cidade para mim nunca mais será a mesma sem Brito. Somos jornalistas de velha geração, dinossauros transitando pelas quadras do plano-piloto.
Quando mudava o governo, vinha aqui fazer matéria sobre a nova Corte, o grupo de vitoriosos que se instala em Brasília, com seus costumes, preferências culinárias, suas estranhas figuras.
Brito era meu cicerone. Às vezes, me transmitia a psicologia do presidente. Sensível, a cada manhã, intuía o humor do homem ou da mulher mais poderosa do Brasil:
— O Bolsonaro está maluco. Usou o helicóptero para ir do Alvorada ao Planalto.
Essas histórias, como aquela confissão de Bolsonaro de que sua vida era uma desgraça, a nostalgia pelo caldo de cana— tudo isso, soube antes de sair nos jornais.
Ainda tenho uma dezena de amigos no Congresso. Mas o clima é desolador. Na verdade, o poder tenta resolver as eleições de Brasília. A união do Centrão com Bolsonaro é poderosa porque canaliza muito dinheiro para que continuem mandando no país. E não é só o auxílio emergencial, mas sobretudo o orçamento secreto.
Eles destinam robôs para escolas que não têm água potável, superfaturam; enfim, fazem o diabo porque o controle é precário, e há a confiança de que a luta contra a corrupção no Brasil retrocedeu.
O tema que me trouxe aqui, a Amazônia, passa ao largo. Pesquisas feitas na rede indicam que praticamente não há parlamentar cuidando do tema no mundo virtual.
Os índios fazem protesto, mas ninguém parece escutá-los. O garimpo invade suas terras, como é o caso dos ianomâmis, polui suas águas, violenta as jovens da tribo.
Uma autoridade do próprio governo me revelou que a situação nas terras ianomâmis está fora de controle. Houve quatro mortes, os garimpeiros ocuparam o posto de saúde para colocar seus equipamentos. São 30 mil pessoas buscando ouro.
Júnior Yanomami, a quem entrevistei por aqui, me disse que, além de toda essa desgraça, há um barulho incessante. Quem estava acostumado apenas com o ruído das florestas escuta apenas motores que não param. Não se ouvem mais os animais, pois desapareceram ou foram caçados a tiro.
Isso não interessa aos brancos, mas deveria interessar. Os grandes rios são o elo entre cidade e floresta. Recentemente, uma pesquisa feita em Santarém revelou que as comunidades à beira do Tapajós estão contaminadas por mercúrio num nível muito superior ao tolerável, de acordo com os padrões da Organização Mundial da Saúde.
Como se não bastasse o veneno do mercúrio, há ainda o perigo do tráfico de animais. A indiferença diante da devastação não se justifica. O desmatamento e o tráfico de animais podem estar gestando novas pandemias. Quando acontecem, já é tarde: as perdas humanas e materiais são imensas.
Andando pelo acampamento dos índios de tão diferentes etnias, lembrando-me do Brito, grande pessoa e excelente fotógrafo, sinto que o Brasil tal como conhecemos e amamos está em grande perigo.
Apesar de o Censo oficial contar cerca de 900 mil índios, não existem mais do que 300 mil de verdade. Eles resistem numa floresta que também pode desaparecer como fonte de importantes serviços ambientais.
Isso parece importar pouco para a coligação que nos governa: extrema direita, Centrão, militares e evangélicos. Numa dessas manifestações antidemocráticas, para variar, espancaram repórteres e derrubaram os óculos do Brito.
Quando nos falamos logo depois, ele simplesmente tinha trocado de óculos e continuado seu trabalho. Estamos num longo túnel e temos de continuar vivendo. Ainda bem que os amigos mortos não se foram completamente e sobrevivem, dentro de nós, para nos animar.
Na hora em que vozes das catacumbas assombram o país com novas revelações sobre torturas e mortes na época da ditadura de 64, o vice-presidente Hamilton Mourão, agora filiado ao Republicanos para disputar uma vaga a senador pelo Rio Grande do Sul, despe a máscara de militar moderado e mostra-se como sempre foi.
“Vai apurar o quê? Os caras já morreram tudo. Vai trazer os caras do túmulo de volta?” – e dá uma risadinha em resposta à pergunta sobre se não seria o caso de se voltar a investigar o legado de horror de um regime que durou 21 anos, e que adotou a tortura, a morte e o desaparecimento de presos como política de Estado.
Há mais de 10 mil horas de gravações dos simulacros de julgamentos feitos pelo Superior Tribunal Militar entre 1975 e 1985, às quais o historiador Carlos Fico teve acesso. E, aos poucos, frações desse gigantesco material começam a se tornar públicos. Nem as leis da ditadura foram respeitadas por ela e pelos juízes.
Para Mourão, “isso é história, já passou. São assuntos já escritos em livros e debatidos intensamente. É passado. Faz parte da história do país”. Passou para quem, cara pálida? Para os que torturaram, mataram e se beneficiaram de uma anistia sem jamais terem sido julgados ou admitidos seus crimes?
Os que sobreviveram às torturas foram julgados, condenados, ou forçados a se exilar. Seu crime? Desarmados ou armados, lutaram contra uma ditadura que a pretexto de defender a democracia, suprimiu-a, que herdou uma inflação anual de 80% em 1963 e a empurrou para 215% em 1984. Foi um atraso na história do país.
O general desprezado por quem o escolheu para vice, prega que ao se relembrar a ditadura deve-se ouvir “os dois lados”. As gravações dão justamente voz ao lado dos que foram cúmplices do regime que violou todas as leis que dizia respeitar, e todos os tratados internacionais assinados pelo Brasil até então.
Tortura e morte, que Mourão prefere chamar de “excessos”, chocaram até mesmo alguns dos juízes militares que fizeram parte do tribunal. Como o general Rodrigo Otávio Jordão Ramos que, em 24 de junho de 1977, comentou sobre torturas em uma presa, que estava grávida e perdeu o filho:
“Alguns réus trazem aos autos acusações referentes à tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no DOI-Codi.”
Os DOI-Codi eram centros e destacamentos do Exército usados pela ditadura. O general descreveu o tipo de tortura:
“Sofreu um aborto no próprio DOI-Codi em virtude de choques elétricos em seu aparelho genital.”
O general Rodrigo Otávio Jordão Ramos, que em 1968 como Comandante da Amazônia pediu a cassação do deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ) por ele ter feito um discurso considerado ofensivo às Forças Armadas, em 15 de dezembro de 1976, como membro do Superior Tribunal Militar, ao julgá-lo, disse:
“Condená-lo em bases jurídicas é completamente inexequível. […] Em 1968, solicitei ao ministro do Exército que se tomasse uma providência drástica contra ele, inclusive a cassação. Eu vou tomar uma decisão revolucionária, deixando de lado a lei, porque pela lei não se pode condená-lo. De maneira nenhuma. Ele é inviolável”.
E condenou o deputado que já fora cassado e estava no exílio. Às favas as leis da ditadura. Às favas todos os escrúpulos, como disse em 1968 o então ministro Jarbas Passarinho ao subscrever o Ato Institucional nº 5, que suspendeu as garantias individuais e deu início ao período mais sangrento do regime militar.
O que Mourão pensa, diz e proclama como verdade é o que ainda hoje é ensinado nos cursos de formação dos oficiais das Forças Armadas. A democracia no Brasil sempre estará ameaçada enquanto o negacionismo militar seguir vivo.
Putin, e as suas forças militares, vão jogar tudo na batalha do Donbas. E os ucranianos, por sua vez, sabem que será ali, no Sul do país, a zona mais martirizada pela guerra, que terão de apostar as suas melhores forças e equipamentos para derrotar, de uma vez, o exército russo. Está tudo conjugado para um confronto duro, direto, e poderoso, no final de abril, início de maio. Nenhuma das duas forças tem espaço para falhar. Há analistas americanos que apontam para uma batalha de dimensões só vistas na II Guerra Mundial.
Estando nas últimas, e com o seu porta-voz a reconhecer pesadas baixas na Ucrânia, a aventura desastrosa e criminosa de Putin vai resumir-se em mais uma tragédia para as suas forças, para os seus soldados, e para o seu país. O Donbas não vai refazer a reputação das forças militares russas, que estão agora a juntar as sobras militares das frentes do Norte e Leste. A Rússia não pode desguarnecer outras frentes e fronteiras, particularmente com a NATO, e por isso o que vai para o Sul é o que resta da ideia megalómana de conquistar a Ucrânia, e Kiev, em 72 horas.
Jogue-se o que se jogar, a batalha de Donbas não será uma vitória para os russos. Não pode ser. Os ucranianos estão a receber cada vez mais equipamento militar dos aliados da NATO, ligeiro e pesado, estão ansiosos por dar uma coça nos russos, de uma vez, e também estão a deslocar os seus batalhões mais bem equipados para a última frente de batalha. Com um pormenor agora revelado: o Pentágono está a partilhar informações e sugestões com o comando militar ucraniano, e isso, com a ajuda do equipamento ultramoderno, resultará no enxovalho final das forças militares da Rússia.
Como é que Putin não consegue perceber que vai ser derrotado? Como é que não evita mais mortes, destruição insensata, e crimes contra a Humanidade? Não tem cara, nem coração, de quem aceita perder, mas bastaria olhar para Mariupol para concluir que nunca sairá bem, e ileso, desta loucura militar: 43 dias depois, Mariupol está cercada, mas nunca foi tomada pelos russos. Não conseguiram, mesmo destruindo 90% da cidade e do porto. Isto não fez soar os alarmes no Kremlin? A batalha final do Donbas, mais cedo do que tarde, vai ser o pano que cai no teatro de guerra. Putin já não tem concerto.