sexta-feira, 18 de julho de 2025

Os transtornos causados pelos data centers gigantes e o excessivo gasto de água

Quando Beverly Morris se aposentou em 2016, ela achou que havia encontrado a casa dos seus sonhos — um recanto tranquilo na zona rural da Geórgia, nos Estados Unidos, cercado por árvores e silêncio.

Hoje, não é nada disso.

A apenas 366 metros da varanda da sua casa em Mansfield, no Estado da Geórgia, há um prédio enorme sem janelas, repleto de servidores, cabos e luzes piscando.

É um data center — um dos muitos que estão surgindo em cidades pequenas dos Estados Unidos, e ao redor do mundo todo, para abastecer tudo, desde serviços bancários online até ferramentas de inteligência artificial, como o ChatGPT.

"Não posso viver na minha casa com metade da casa funcionando e sem água", diz Morris.

"Não posso beber a água."

Ela acredita que a construção do centro, que é de propriedade da Meta (a empresa controladora do Facebook), danificou seu poço particular, causando um acúmulo excessivo de sedimentos. E agora transporta água em baldes para dar descarga no banheiro.


Morris conta que precisou consertar o encanamento da cozinha para restaurar a pressão da água. Mas a água que sai da torneira ainda tem resíduos.

"Tenho medo de beber a água, mas ainda cozinho e escovo os dentes com ela", diz Morris. "Se isso me preocupa? Sim."

A Meta afirma, no entanto, que as duas coisas não estão relacionadas.

Em declaração à BBC, a Meta disse que "ser um bom vizinho é uma prioridade".

A empresa informou que encomendou um estudo independente das águas subterrâneas para investigar as preocupações de Morris. De acordo com o relatório, a operação do seu data center "não afetou negativamente as condições das águas subterrâneas na região".

Embora a Meta conteste ter causado os problemas relacionados à água na casa de Morris, não há dúvida, na sua opinião, de que a empresa não é bem-vinda na vizinhança.

"Este era meu lugar perfeito", diz ela. "Mas não é mais."

Costumamos pensar na nuvem como algo invisível, flutuando acima de nós no éter digital. Mas a realidade é um tanto física.

A nuvem está presente em mais de 10 mil data centers em todo o mundo, a maioria deles localizados nos EUA, seguidos pelo Reino Unido e pela Alemanha.

Com a inteligência artificial impulsionando agora um aumento na atividade online, esse número está crescendo rapidamente — assim como as reclamações dos residentes próximos.

O boom dos data centers nos EUA enfrenta o desafio do ativismo local — com US$ 64 bilhões em projetos atrasados ou bloqueados em todo o país, de acordo com um relatório do grupo de monitoramento Data Center Watch.

E as preocupações não se limitam apenas à construção dos data centers. Também se referem ao consumo de água. Manter esses servidores refrigerados requer muita água.

"Esses processadores esquentam muito", afirmou Mark Mills, do Centro Nacional de Análise de Energia, perante o Congresso em abril. "É preciso muita água para resfriá-los."

Muitos centros usam sistemas de resfriamento evaporativo, em que a água absorve o calor e evapora — semelhante à forma como o suor absorve e libera o calor do nosso corpo. Em dias quentes, uma única instalação pode consumir milhões de litros.

Um estudo estima que os data centers impulsionados por inteligência artificial poderiam consumir entre 4,2 bilhões e 6,6 bilhões de metros cúbicos de água a nível mundial até 2027.

Poucos lugares ilustram essa tensão com mais clareza do que a Geórgia, um dos mercados de data center que mais cresce nos EUA.

Seu clima úmido oferece uma fonte de água natural e mais econômica para refrigeração dos data centers, o que torna o Estado atraente para os desenvolvedores. Mas essa abundância pode ter um custo.

Gordon Rogers é o diretor executivo da Flint Riverkeeper, uma organização sem fins lucrativos que monitora a saúde do rio Flint, na Geórgia.

Ele levou nossa equipe de reportagem a um riacho a jusante de um canteiro de obras de um data center que está sendo construído pela empresa americana Quality Technology Services (QTS).

George Dietz, um voluntário local, coleta uma amostra da água e coloca em um saco plástico transparente. A água está turva e marrom.

"Não deveria ter essa cor", diz ele. Para ele, isso sugere fluxo de sedimentos — e possivelmente floculantes. Esses produtos químicos são usados na construção civil para fixar o solo e evitar erosão, mas se escoarem para o sistema hídrico, podem criar lodo.

A QTS afirma que seus data centers atendem a altos padrões ambientais e geram milhões em receita tributária a nível local.

Embora a construção desses data centers seja realizada com frequência por empreiteiras terceirizadas, são os moradores que devem arcar com as consequências.

"Eles não deveriam fazer isso", diz Rogers. "Um proprietário mais rico não tem mais direitos de propriedade do que um proprietário com menos recursos."

Os gigantes da tecnologia dizem que estão cientes dos problemas, e afirmam que estão tomando providências.

"Nossa meta é que, até 2030, estaremos devolvendo mais água às bacias hidrográficas e às comunidades onde operamos os data centers do que extraindo", diz Will Hewes, líder global de gestão de recursos hídricos da Amazon Web Services (AWS), que opera mais data centers do que qualquer outra empresa no mundo.

Ele diz que a AWS está investindo em projetos como reparos de vazamentos, coleta de água da chuva e uso de águas residuais tratadas para refrigeração. Na Virgínia, a empresa está trabalhando com fazendeiros para reduzir a contaminação por nutrientes na Baía de Chesapeake, o maior estuário dos EUA.

Na África do Sul e na Índia — onde a AWS não usa água para refrigeração —, a empresa ainda está investindo em iniciativas de acesso e qualidade da água.

No continente americano, diz Hewes, a água só é usada em cerca de 10% dos dias mais quentes do ano.

Ainda assim, os números são significativos. Uma única consulta de inteligência artificial — por exemplo, uma solicitação ao ChatGPT — pode usar uma quantidade de água equivalente a uma garrafa pequena que você compra no supermercado. Multiplique isso por bilhões de consultas por dia, e a dimensão fica clara.

O professor Rajiv Garg ensina computação em nuvem na Universidade Emory, em Atlanta. Ele diz que os data centers não vão desaparecer — na verdade, estão se tornando a espinha dorsal da vida moderna.

"Não há como voltar atrás", afirma Garg.

Para o acadêmico, o segredo é pensar a longo prazo: sistemas de refrigeração mais inteligentes, coleta de água da chuva e infraestruturas mais eficientes.

No curto prazo, Garg admite que os data centers vão gerar "uma enorme pressão". Mas o setor está começando a se voltar para a sustentabilidade.

Isso não serve de consolo, no entanto, para proprietários como Beverly Morris.

Os data centers se tornaram mais do que uma simples tendência do setor — eles agora fazem parte da política nacional. O presidente americano, Donald Trump, prometeu recentemente construir o maior projeto de infraestrutura de inteligência artificial da história, classificando-o como "um futuro impulsionado por dados americanos".

Na Geórgia, o Sol bate forte em meio à densa umidade — um lembrete de por que o Estado é tão atraente para os desenvolvedores de data centers.

Para os moradores locais, o futuro da tecnologia já está aqui. É barulhento, sedento e, às vezes, difícil de conviver com ele.

À medida que a inteligência artificial cresce, o desafio é claro: como impulsionar o mundo digital do amanhã sem esgotar o recurso mais básico de todos — a água.

A taxação dos mais ricos pelo mundo

O Brasil e boa parte do mundo vêm debatendo formas de fazer os super-ricos pagarem mais tributos, já que essa pequena parcela de pessoas está cada vez mais rica, mas paga proporcionalmente muito menos tributos do que o resto da população.

Por exemplo, segundo um estudo divulgado em julho pela Oxfam Brasil, os 10% de brasileiros mais pobres pagam, em proporção da sua renda, três vezes mais tributos do que 0,1% mais rico da população. A pesquisa aponta que os mais pobres comprometem 32% da sua renda com tributos, contra 10% dos mais ricos.

Não é tarefa fácil mudar esse panorama. Os super-ricos são em geral bem conectados com a classe política e os tomadores de decisão. Além disso, junto com a globalização, veio a maior facilidade de mover dinheiro de um país para outro, e o enfraquecimento das instituições multilaterais torna mais difícil a adoção de iniciativas globais.


Os defensores de cobrar mais impostos sobre os super-ricos, entre os quais estão alguns bilionários, afirmam que a medida seria importante para aumentar a justiça tributária e usar os recursos extras para enfrentar problemas como a pobreza e o aquecimento global. Já seus críticos argumentam que a medida poderia reduzir os incentivos ao empreendedorismo e à inovação.

As propostas sobre como cobrar mais tributos dos indivíduos super-ricos se dividem em dois grandes grupos:

Aumentar o imposto sobre a renda

Essa é a forma tradicional que países vêm adotando para cobrar mais impostos dos mais ricos, por meio da progressividade das alíquotas do imposto de renda – quanto maior a renda, maior a alíquota de imposto devido.

A maior faixa do Imposto sobre Renda de Pessoas Físicas no Brasil (IRPF) é hoje de 27,5%. Em outros países, a alíquota máxima atual é a seguinte, segundo um relatório da consultoria PwC:
Alemanha: 45%
Argentina: 35%
Chile: 40%
China: 45%
Colômbia: 39%
França: 45%
India: 39%
Indonésia: 35%
Itália: 43%
Japão: 45%
México: 35%
Noruega: 39,7%

No entanto, apenas cobrar uma alíquota maior de quem ganha mais não funciona perfeitamente, pois muitos super-ricos não recebem salários, e sim lucros e dividendos de empresas que podem estar sujeitos a um regime de tributação distinto.

Eles também costumam ter à disposição consultores que os orientam como organizar seus investimentos de modo a pagar menos impostos – por exemplo, aplicando o dinheiro em fundos específicos ou abrindo empresas em paraísos fiscais.

Uma das formas que os governos têm para tentar corrigir essa distorção é cobrar uma alíquota mínima de imposto de renda dos super-ricos, independentemente da fonte da renda.

Esse mecanismo está em um projeto de lei enviado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva ao Congresso, aprovado nesta quarta-feira pela comissão especial da Câmara encarregada de analisá-lo.

O texto estabelece que as pessoas que recebem mais de R$ 50 mil por mês, incluindo dividendos e juros, terão que pagar uma alíquota mínima de imposto de renda, que será progressiva e de até 10%.

Se uma pessoa na faixa superior, com renda anual superior a R$ 1,2 milhão, já pagou mais do que 10%, não precisa pagar nada mais. Porém, se pagou 8%, terá que pagar mais 2% ao fazer sua declaração à Receita, segundo a proposta.

Outras formas indiretas de aumentar o pagamento de imposto sobre a renda é apertar a cobrança sobre alguns instrumentos usados pelos super-ricos.

Em dezembro de 2023, por exemplo, o Brasil sancionou uma lei para cobrar imposto de renda sobre o rendimento anual de fundos exclusivos e offshores – antes, o tributo era cobrado somente quando e se o recurso fosse resgatado.

Quando a lei foi aprovada, apenas 2,5 mil brasileiros aplicavam em fundos exclusivos, que somavam R$ 756 bilhões em patrimônio e respondiam, sozinhos, por 12,3% da indústria de fundos do Brasil.

Criar um imposto sobre o patrimônio

Além de cobrar imposto sobre a renda, alguns poucos países também cobram um imposto anual sobre o patrimônio dos super-ricos.

Entre os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas quatro cobram imposto sobre o patrimônio:
Colômbia: alíquota progressiva de 0,5% a 1,5% para patrimônio acima de 3,6 bilhões de pesos colombianos (R$ 5 milhões)
Espanha: alíquota progressiva de 0,2% a 3,5% para patrimônio acima de 167 mil euros (R$ 1 milhão)
Noruega: alíquota de 1% para patrimônios superiores a 1,7 milhão de coroas norueguesas (R$ 950 mil).
Suíça: alíquota de 0,02% a 1,02%, dependendo do cantão e do patrimônio

Outros quatro países da OCDE cobram taxas sobre alguns tipos de patrimônio, mas não sobre a fortuna total de uma pessoa: França, Itália, Bélgica e Holanda.

Cobrar um imposto sobre o patrimônio é o cerne de uma proposta do Brasil feita no ano passado no âmbito do G20, quando o país exercia a presidência rotativa do grupo, que reúne tanto potências industrializadas do Ocidente como países do Sul Global, além da União Europeia e da União Africana.

A proposta é cobrar uma taxa anual de 2% sobre o patrimônio das pessoas que têm mais de 1 bilhão de dólares (R$ 5,59 bilhões) em ativos. Esse grupo reúne cerca de 3 mil pessoas em todo o mundo, que pagam hoje tributos equivalentes a 0,3% de seu patrimônio por ano.

Segundo o economista francês Gabriel Zucman, que elaborou a proposta a pedido do governo brasileiro, a medida geraria receitas adicionais de 200 bilhões a 250 bilhões de dólares por ano.

A declaração final da cúpula do G20 em novembro de 2024, no Rio de Janeiro, expressou apoio à ideia de buscar formas para que os super-ricos sejam taxados de forma eficaz, mas não houve acordo sobre uma proposta concreta de como fazer isso.

Cobrar imposto sobre grandes patrimônios é um assunto mais controverso do que aumentar o imposto sobre a renda. Críticos afirmam que essa medida, se adotada por países individualmente, provocaria fuga de capitais para outras nações e, na prática, poderia anular os rendimentos obtidos de investimentos.

A Constituição brasileira prevê a existência de um imposto sobre grandes fortunas, mas ele nunca foi criado, apesar de diversos projetos de lei apresentados nesse sentido.

Uma dessas tentativas ocorreu no ano passado, quando o Congresso discutia a reforma tributária. O PSB e as federações PT-PCdoB-PV e PSOL/Rede propuseram uma emenda para criar um imposto anual sobre fortunas acima de R$ 10 milhões.

A alíquota seria de 0,5% para fortunas de R$ 10 milhões a R$ 40 milhões, de 1% para aquelas de R$ 40 milhões a R$ 80 milhões, e de 1,5% sobre as fortunas acima de R$ 80 milhões – e foi rejeitada pela Câmara, por 262 votos a 136.
Deutsche Welle

A hora dos predadores

Em livrarias em Paris, neste verão, logo na entrada aparece em destaque um pequeno livro que tem a ambição de ajudar a compreender o caos no qual nos encontramos hoje. De autoria do conselheiro político ítalo-suíço Giuliano da Empoli, “A Hora dos Predadores” examina contornos de uma nova ordem mundial, uma realidade que o autor considera “fruto apodrecido” de aliança de gigantes da tecnologia e dirigentes populistas, onde o uso da força bruta se torna o modo de funcionamento.

Antigo assessor do ex-primeiro-ministro italiano Matteo Renzi (centro-esquerda) e acompanhante frequente do presidente francês Emmanuel Macron em viagens ao exterior, esse professor da Science Po, famosa universidade parisiense, faz curtos e inquietantes perfis de membros da chamada “internacional reacionária”, indo de Donald Trump a Nayib Bukele, presidente de El Salvador, e o príncipe saudita Mohammed bin Salman, além de patrões de grandes companhias tecnológicas como Elon Musk e Sam Altman (da OpenAI).

A constatação é de que o mundo muda velozmente marcado por avanços da inteligência artificial, ataques reiterados contra a democracia, multiplicação de conflitos militares. Como ele nota em diferentes entrevistas, há momentos em que a realidade tem mais imaginação que a ficção.


Donaldo Trump recebe destaque nessa análise. Para Da Empoli, o atual presidente americano lidera um cortejo colorido de autocratas descomplexados, de conquistadores da tecnologia, de reacionários e de conspiradores impacientes por confrontos. Considera que uma era de violência sem limites está se abrindo diante de nós e, como na época de Leonardo da Vinci, os defensores da liberdade parecem singularmente mal preparados para reagir.

Se em meados da década de 2010 os brexiters (defensores da saída do Reino Unido da União Europeia), Trump e Bolsonaro pareciam ser um grupo de outsiders, desafiando a ordem estabelecida e adotando uma estratégia de caos, como fazem insurgentes em guerra com uma potência superior, hoje a situação é oposta: o caos digital, por exemplo, não é mais a arma dos rebeldes, mas a marca registrada dos poderes dominantes.

Observa o autor que, se o velho mundo pressupunha salvaguardas - respeito à independência de certas instituições, direitos humanos e direitos das minorias, atenção às repercussões internacionais - elas não têm mais o menor valor na era dos predadores.

No novo mundo, todos os processos atuais serão levados às suas consequências extremas, nenhum deles contido ou governado de alguma forma. Os predadores têm uma vantagem decisiva, porque estão acostumados a evoluir em um mundo sem limites.

Para o autor, Trump é assim uma forma de vida extraordinariamente bem adaptada aos dias atuais. Uma de suas características, da qual seus assessores reclamam em voz baixa quando ele acha que deveriam estar alertando em alto e bom som, é que o presidente da maior potência do mundo nunca lê. Isso representa um desafio considerável para qualquer pessoa que deseje transmitir a Trump o mínimo de conhecimento estruturado.

Para Giuliano da Empoli, na verdade isso não tem importância, porque na hora dos predadores o conhecimento é um dos piores inimigos. O que conta acima de tudo é a ação em ambiente caótico que exige decisões ousadas, que cativem a atenção do público e, ao mesmo tempo, influenciem os oponentes.

Nessa era de predadores, constata que não são mais os líderes da antiga periferia que estão tentando se assemelhar aos líderes ocidentais, mas sim estes que estão adotando traços alógenos. Se o fato de Trump governar os EUA com um círculo de familiares e associados desconcerta os políticos europeus, o mesmo não acontece com os autocratas, que acham perfeitamente natural recorrer a um parente ou parceiro de negócios do presidente para obter tratamento preferencial.

A única coisa que conta é o resultado. E lembra uma frase do presidente argentino Javier Milei, à vontade no novo cenário global, segundo a qual a diferença entre um louco e um gênio é o sucesso.

Os predadores, escreve ele, se concentram na forma, não na substância. Prometem resolver os problemas reais das pessoas, como crime, custo de vida, imigração. E o que dizem seus oponentes, os liberais, os progressistas, os bons democratas? Regras, democracia em risco, proteção de minorias...

Na era dos predadores, o equilíbrio explodiu. As novas elites tecnológicas, os Musks e os Zuckerbergs, não têm nada em comum com os tecnocratas de Davos. Seu modo de vida não se baseia no gerenciamento competente do que existe, mas sim no desejo de “foutre le bordel”, fazer bagunça. A ordem, a prudência e o respeito às regras são anátemas para aqueles que fizeram sua fama agindo rapidamente e destruindo as coisas, conforme o lema do Facebook.

Para Giuliano da Empoli, essa situação era evitável. Acha que, se chegamos a esse ponto, é também por uma forma de submissão cultural de velhas elites políticas face à máquina da tecnologia. E o que temos é o caos digital, ou “ritual de degradação”, ausência de regras que está se tornando hegemônica.

A obstinação com a qual predadores políticos à la Trump e predadores da tecnologia como Musk e Zeckerberg avançam sobre a Europa e outros países, sua regulação e instituições, deixa claro como eles percebem tudo isso como um obstáculo.

A sanção anunciada por Trump contra o Brasil, na semana passada, é uma pequena ilustração do que procura mostrar Da Empoli.

Por que a vida gira em torno do dinheiro?

O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas – [de] seu possuidor – qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, porque o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro. Eu sou – segundo minha individualidade – coxo, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; não sou, portanto, coxo; sou um ser humano mau, sem honra, sem escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, logo, é bom também o seu possuidor, o dinheiro me isenta do trabalho de ser desonesto, sou, portanto, presumido honesto; sou tedioso, mas o dinheiro é o espírito real de todas as coisas, como poderia seu possuidor ser tedioso? Além disso, ele pode comprar para si as pessoas ricas de espírito, e quem tem o poder sobre os ricos de espírito não é ele mesmo mais rico de espírito do que o rico de espírito? Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo o que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades no seu contrário?
Karl Marx

Em várias sociedades e épocas distintas, as mercadorias são qualquer coisa que satisfaça às necessidades e os desejos humanos. Quanto mais mercadorias (cada sociedade dará um valor específico para os objetos), o indivíduo terá um status social determinado, de modo que a riqueza de um homem é medida pela quantidade de mercadoria que possui. Mas foi no capitalismo que o dinheiro se tornou a chave e a finalidade para se viver em sociedade.

“Os nativos de regiões da Índia usavam amêndoas. Os guatemaltecos usavam milho, os antigos babilônios e assírios usavam cevada. Nativos das Ilhas Nicobar usavam cocos, e os mongóis computavam tijolos”. Porém, de acordo com Jack Weatherford, “provavelmente seria […] difícil para eles compreender o nosso mundo, organizado como é, em torno dessa curiosa abstração chamada dinheiro”. Porque os objetos usados para troca nessas sociedades tradicionais possuíam um valor de uso, já o dinheiro tem como finalidade apenas o valor de troca.

Antes se trocava mercadoria por dinheiro para se comprar os objetos necessários para a satisfação do indivíduo. Uma pessoa ia até a feira levando o produto da sua horta, por exemplo, e trocava por dinheiro. Com a ascensão dos comerciantes nos centros urbanos esse processo se transforma. O objetivo não é mais a mercadoria. O comerciante compra do produtor e repassa com a finalidade de adquirir mais dinheiro. Aqui já se encontra o germe de uma lógica eterna e gananciosa de acumulação já que o comerciante retira de circulação mais dinheiro que colocou no início do processo.

Karl Marx explica que o dinheiro de papel ganhou predominância na lógica de crédito, substituindo, de forma irreversível, os metais preciosos. “À medida que se amplia o sistema de crédito, desenvolve-se a função de meio de pagamento exercida pelo dinheiro. Através dessa função, ele adquire formas próprias de existência no domínio das grandes transações, ficando as moedas de ouro e prata geralmente delegadas para o comércio a retalho”.

Ao longo dos séculos XVI até os finais do século XVIII, essa lógica foi alimentada pela burguesia que tomaria o poder e, consequentemente, tornaria o que tem em abundância (o dinheiro) como elemento central de toda a vida em sociedade. Uma classe, quando assume o poder, tende a levar o resto da sociedade a circular em torno do que ela tem o domínio. Assim como a sociedade medieval girava em torno da terra, já que a nobreza era a detentora das terras, a sociedade capitalista vai girar em torno do dinheiro, já que a classe dominante, isto é, a burguesia, é a grande detentora do capital. As ideias dominantes são sempre as ideias da classe dominante.

A burguesia, como classe revolucionária, “dilacerou os variados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais, e não deixou subsistir de homem para homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível ‘pagamento em dinheiro’”.

“É sabido que o dinheiro existe desde as civilizações primevas, como a Mesopotâmia, mas somente nas economias de mercado capitalistas a sociabilidade é construída e articulada pelos nexos monetários”. Para a burguesia manter o poder, ela precisou construir um mundo que girasse em torno do dinheiro. Um processo que não foi imposto imediatamente, já que a mutação da mentalidade demanda uma longa duração. A nobreza ainda impregnava a alta esfera da sociedade com seu espírito feudal e, de acordo com Arno Mayer, “a terra continuou a ser a principal forma de riqueza e renda das classes dirigentes e governantes até 1914”. Portanto, o projeto burguês de submeter tudo e todos ao totalitarismo do dinheiro se dará por concluído nos anos 1970. 

Após a Segunda Guerra Mundial, o capitalismo sofreu restrições, o que provocou o nascimento do Estado de bem-estar social. O contexto da época levou o Ocidente a uma espécie de capitalismo tardio em que os mercados não desfrutavam da liberdade do período do entreguerras. E com os avanços da economia e das conquistas tecnológicas da URSS, muitos acreditavam que os dias do capitalismo estavam contados.

Todavia, os detentores do capital resistiram a essas restrições com o objetivo de revitalizar a fé no modo de produção que lhes dava sustentação. De acordo com Wolfgang Streeck, isso ocorreu através de “uma política estatal que comprou com dinheiro tempo ao sistema capitalista, garantindo uma espécie de lealdade das massas ao projeto neoliberal de sociedade enquanto sociedade de consumo de uma forma que a teoria do capitalismo tardio não podia, pura e simplesmente, imaginar”.

A Escola de Chicago desenvolve o paradigma da escolha racional, ponto central na argumentação de Milton Friedman, Theodore Schultz e Gary Becker. De acordo com Joel Spring, “a premissa do paradigma da escolha racional é que o homem age por meio do cálculo entre custo e benefício”. Foi somente nesse momento que o propósito subjetivo da burguesia, detectado por Marx e Engels em 1848, se concretizou. Foi nesse instante que a antiga classe revolucionária (que se tornou conservadora) “afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalhereisco, do sentimentalismo pequeno-burguês”. A. Hayek é um dos grandes pilares da mentalidade que dará sentido a uma vida que gira em torno do dinheiro. Em seu clássico O caminho da servidão, o austríaco associa liberdade ao dinheiro na sua crítica à economia planificada. “Se lutamos pelo dinheiro, é porque ele nos permite escolher da forma mais ampla como melhor desfrutar os resultados de nossos esforços”. Se houvesse outra recompensa, como as oferecidas pelas políticas públicas, como educação, moradia ou alimentação, “significaria apenas que o beneficiário já não teria liberdade de escolha e que o dispensador das recompensas determinaria não somente o seu valor mas também a forma específica em que elas seriam desfrutadas”. Ou seja, o dinheiro é a única recompensa que nos torna livres para termos o que quisermos. Com a posse do dinheiro, ninguém poderá decidir a maneira como devo viver, o que compro, a educação que devo escolher, a moradia e a comida que eu desejo para mim.

Após essa teoria neoliberal, tudo passou a estar submetido à lógica do investimento e da recompensa. Ser inteligente é pensar se vale a pena investir em determinada ação para colher vantagens econômicas pessoais. Isso se transformou em uma mentalidade adentrando o “plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperança, medos, angústias e desejos assimilado e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação”. É algo que atinge todas as classes sociais, como Jacques Le Goff afirmava: “a mentalidade de um indivíduo histórico, sendo esse um grande homem, é justamente o que ele tem de comum com outros homens de seu tempo”. Assim, a religião, a educação, as relações amorosas, tudo foi colonizado por uma lógica matemática relacionada às vantagens que o indivíduo terá ao adotar uma determinada ação (toda ação passa a ser investimento, como na Bolsa de Valores). Esse fenômeno se tornou parte da mentalidade, e muitos passam a acreditar que a fortuna de um indivíduo está relacionada a sua competência em saber escolher racionalmente as suas ações.

Foi assim que os matemáticos de Chicago reduziram a economia a números levando à financeirização da economia. A matemática se torna a ciência mais importante porque a política econômica que visa apenas o lucro, a eficácia do cálculo do investimento, tornou-se predominante.

Thierry Guilbert mostra que esse pensamento se espalhou pela sociedade principalmente porque foi incorporado pelos meios de comunicação. “Esse pensamento econômico hoje globalizado, mas também ‘desistoricizado’ e ‘constituído em modelo e medida de todas as coisas’, propagou-se dos domínios econômicos aos sociais, políticos, esportivos, midiáticos, educativos, ecológicos… Os economistas na origem do discurso neoliberal escolheram, no início dos anos 1980, um duplo modo de difusão: ao mesmo tempo (pseudo) científico, entre pares de uma mesma disciplina e de um mesmo meio social, e midiático (rádio, televisão, cinema, revista, jornais…), permitindo assim ter acesso ao conjunto da sociedade”. 

O neoliberalismo, o programa de pensamento que faz a vida girar em torno do dinheiro, conquistou a mídia por ser “uma doutrina fácil de compreender”. Tudo se resume ao 2 + 2 = 4. Essa mentalidade neoliberal faz brotar dos confins mais obscuros da internet os “intelectuais orgânicos da ignorância”, como Olavo de Carvalho, Leandro Narloch etc.. e os indivíduos idiossubjetivados, “incapazes de reflexão, acríticos e subordinados às informações seletivas produzidas pelos meios de comunicação de massa dominados por grupos econômicos que exercem pressão com o objetivo de manipular a opinião pública”. 

Se a vida gira em torno do dinheiro porque este é o objeto que a burguesia tem em abundância, a única forma de transformar essa lógica será quando a classe trabalhadora tornar-se classe dominante. A partir desse momento, seguindo a lógica histórica que expomos anteriormente, a vida giraria em torno do trabalho, já que aos que foram excluídos os meios (o dinheiro, na sociedade capitalista) para se adquirir mercadorias, passaram a ter apenas o trabalho (que, na sociedade capitalista, está submetido ao dinheiro, sendo uma mercadoria como outra qualquer). O trabalho, portanto, seria o ponto gravitacional de uma sociedade dominada pelos trabalhadores.

Pensar em um mundo onde as pessoas trabalham sem remuneração monetária parece utopia, mas um mundo em que a terra fosse um objeto submetido ao dinheiro era uma utopia que se realizou quando a burguesia se tornou a classe dominante. Sendo assim, seria lógico imaginar que o trabalho seria o elemento central dessa sociedade pós-capitalista.

Escusado dizer que o dinheiro não seria abolido imediatamente, mas deixaria paulatinamente de ser o centro das relações sociais, assim como a terra foi se submetendo ao valor supremo do dinheiro.

Todos seriam trabalhadores, desde o campo até a construção de instrumentos virtuais e espaciais. Bastaria trabalhar para se ter acesso aos bens produzidos pelo trabalho de todos. O indivíduo não teria (parafraseando Marx e Engels) uma única atividade, mas poderia aprimorar-se no ramo que o satisfaça, a produção geral seria regulada pela que me daria a possibilidade de hoje fazer determinada coisa, amanhã outra, pintar pela manhã, desenvolver sites e aplicações online à tarde, analisar dados ao anoitecer, tocar algum instrumento depois do jantar, segundo meu desejo, sem que jamais me tornasse pintor, programador, analista de dados ou músico.

O indivíduo poderia trabalhar no que quisesse, não para ganhar dinheiro, mas para aprimorar seus dons. Não haveria para quem vender a força de trabalho, já que o dinheiro seria menos importante social e culturalmente. Outras formas de reconhecimento fagocitariam a recompensa em dinheiro. Talvez o mérito fosse de fato reconhecido. O trabalho estaria livre do capital, a criação humana estaria livre das imposições do lucro. Os remédios, a tecnologia, a educação, o meio ambiente, tudo estaria submetido à criatividade humana emancipada do capital.

Hoje vivemos, nas palavras de Frederic Jameson, em “uma sociedade em que o valor de troca se generalizou de tal ponto que mesmo a lembrança do valor de uso se apagou”. Na sociedade em que a vida giraria em torno do trabalho, o valor de uso seria mais importante que o valor de troca, este, tenderia, com o tempo, a se apagar.

Enfim, não adianta especular o que seria essa sociedade. Não queremos nos confundir com uma ficção científica soft. O certo é que uma outra sociedade nasceria das entranhas de um mundo dominado pelo dinheiro, com outros valores e propósitos de vida.
Raphael Fagundes