quarta-feira, 31 de julho de 2024

Filhos de Chávez

A esquerda na região está dividida, não sabe o que fazer com esta criatura indecifrável que é o chavismo.

Existe uma esquerda nostálgica que acredita que a Venezuela dá continuidade à etapa de Hugo Chávez e que age como isso fosse acertado. Essa é uma esquerda mais emocional, que poderia ser descrita como irreflexiva 
José Natanson, cientista político argentino, autor de "Venezuela. Ensayo sobre la descomposición"

Para Maduro, Lula relativiza defesa da democracia

Parecia que Lula adotaria uma postura ligeiramente mais prudente em relação às eleições eivadas de evidências de fraude na Venezuela, mas o temor de que, uma vez encorajado a falar, o presidente brasileiro não conseguiria esconder o viés pró-Maduro se confirmou com as declarações dadas por ele em entrevista ontem.

Seria cômico, se não fosse lamentável e gravíssimo, que Lula decida culpar a imprensa brasileira (!) por, segundo ele, transformar na “Segunda Guerra Mundial” o que seria um processo “normal”.

Fica explícito que, quando não está em ambiente controlado, o presidente não tem nenhuma divergência em relação a seu partido, o PT, que prontamente reconheceu a vitória autoproclamada de Maduro, sem a apresentação dos boletins de urna ou de qualquer comprovação de que os números anunciados pelo cooptado Conselho Nacional Eleitoral (CNE) correspondem à realidade da população que compareceu em massa para votar.


Depois de sua vitória suada contra Jair Bolsonaro, e de denunciar, acertadamente, o 8 de Janeiro como uma tentativa de golpe no Brasil, Lula volta todas as casas no tabuleiro ao demonstrar absoluta falta de compromisso real com a defesa da democracia. Em outras palavras, essa pregação só vale quando o autoritário da vez é identificado pelo presidente e por seu partido com a direita ou a extrema direita, como é o caso de Bolsonaro ou de Donald Trump.

Ao derrapar feio mesmo no script de cautela ensaiada e tardia que o governo montou diante da pantomima chavista, Lula atrela seu mandato e, pior, o Brasil a uma ditadura sanguinária que deixa um rastro de mortes, violações de direitos e miséria na sua luta desesperada por manter o poder pelo poder, sem nenhum projeto visível para resgatar a Venezuela da crise em que ele próprio a mergulhou na sua escalada de terror.

O alinhamento incondicional a um regime que deixou de ter sequer uma plataforma social típica de governos socialistas, como Hugo Chávez e Maduro definem seu bolivarianismo militaresco, mostra quanto a ideologia turva a capacidade de discernimento de Lula e do PT, que preferem colher imenso desgaste doméstico e no front internacional a se dissociar de um tirano.

Assim, por obra e graça apenas do presidente e de sua sigla, sem que a oposição bolsonarista tenha precisado mover uma palha, Lula internaliza uma crise que de forma alguma deveria ser sua, menos ainda do Brasil diante de suas muitas carências urgentes nos campos social, econômico e ambiental.

Faz isso no momento em que sua popularidade vinha melhorando, o que mostra que mesmo o louvado tirocínio político de Lula, que o fez sobreviver a crises políticas e econômicas nos seus mandatos anteriores e, inclusive, renascer nas urnas depois de preso em 2018, está comprometido por uma certa teimosia em reafirmar posições antigas que não encontram mais qualquer respaldo na realidade.

Lula deu a declaração de que está tudo ormal na Venezuela mesmo depois da notícia de que há pelo menos 11 mortos em protestos no país, além da denúncia de perseguição a opositores e a ameaça explícita de Maduro de aprovar novas leis de exceções para se juntar ao seu extenso corolário de medidas ditatoriais.

Foi de improviso? Estava desinformado? Mas não enviou Celso Amorim ao cenário já conflagrado, mesmo com insistentes alertas de que isso seria uma fria? São perguntas simples, que deveriam ser triviais para fazer a um chefe de Estado diante de um cenário tão crítico.

Mas o Itamaraty virou um mero reprodutor de notas burocráticas, o chanceler Mauro Vieira é uma testemunha silente do que Amorim diz a um Lula bastante disposto a ouvir só que foi tudo bem, e o companheiro Maduro está reeleito. Com essa arquitetura, qualquer discurso empolado do brasileiro daqui para a frente louvando a democracia e cobrando déspotas já nasce sem credibilidade.

Lula, o da democracia relativa, passa a mão na cabeça de Maduro

Há pouco mais de um ano, em entrevista à Rádio Gaúcha, ao ser perguntado sobre o motivo de setores da esquerda defenderem o regime de Nicolás Maduro, Lula respondeu que o conceito de democracia “é relativo”. E se explicou:

“A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Eu gosto de democracia, porque foi a democracia que me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez”.

Ontem, em entrevista à TV Centro América, afiliada da TV Globo no Mato Grosso, Lula comentou pela primeira vez a eleição presidencial da Venezuela realizada no último domingo:

“É normal que tenha uma briga. Como resolvê-la? Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a situação, a oposição entra com um recurso e vai esperar na Justiça o processo. E vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar. Eu estou convencido que é um processo normal, tranquilo”.



Atas são boletins que registram os votos depositados em cada urna. O governo da Venezuela ainda não as apresentou, alegando ter havido uma falha no sistema. A oposição diz que as atas que acessou provam que Maduro foi derrotado.


Com 80% das urnas apuradas, o Comitê Nacional Eleitoral da Venezuela, sob o comando de um aliado de Maduro, anunciou que ele venceu com 51,2% dos votos contra 44% do candidato da oposição, o diplomata Edmundo Gonzalez.

“Na hora que tiver apresentado as atas, e for consagrado que a ata é verdadeira, todos nós temos a obrigação de reconhecer o resultado eleitoral da Venezuela”, acrescentou Lula. Em nota, o PT adiantou-se e já reconheceu a suposta vitória de Maduro.

Lula ainda não o fez, mas defendeu a nota do PT. De domingo para cá, a polícia de Maduro matou 11 pessoas e prendeu mais de 700 que saíram às ruas de Caracas para denunciar fraudes na eleição. Um líder da oposição foi preso na sua casa.

Em uma democracia, a última palavra é da Justiça. Acontece que na Venezuela a Justiça, as Forças Armadas, a mídia e o Congresso, que por lá atende pelo nome de Assembleia Nacional, obedecem às ordens de Maduro. Lula sabe disso.

Então, como sugerir à oposição venezuelana que entre com um recurso na Justiça para anular a decisão do Comitê Nacional Eleitoral que deu a vitória a Maduro? Talvez porque, para Lula, democracia é de fato uma coisa relativa.

Se é, o Estado de Direito também seria. E com base em tal raciocínio, os golpistas do 8 de janeiro de 2023 no Brasil poderiam justificar o que fizeram para derrubar o governo recém-instalado de Lula. Democracia não é uma coisa relativa.

A Venezuela não é uma democracia porque promove “mais eleições do que o Brasil”. Fatos e conceitos não são meras opiniões. Numa democracia, os Poderes são autônomos, as eleições são livres e fiscalizadas e há liberdade de expressão.

Na ausência de tais condições e de outras mais, o que há é um regime autoritário como o de Maduro, e como foi aqui, durante 21 anos, a Revolução de 1964, uma reles ditadura igual a tantas que existiram e ainda existem.