quarta-feira, 30 de janeiro de 2019
Direito à segurança e a sensação de segurança
O decreto que facilita a posse de armas (e a pretensão de expandir para porte de armas) adota narrativa que combina três fundamentos: direito à legítima defesa; direito à segurança; diminuição da violência. Três objetivos louváveis num país tão inseguro e desigual (e que distribui a insegurança desigualmente). Mas o que dizem os números do mundo real? Que a cada 1% a mais de armas nas mãos da população há 2% a mais de mortes; que 70% das pessoas assaltadas quando estão armadas tomam tiro; que a posse de armas aumenta em 500% a chance de ser morto, além de aumentar o número de homicídios, suicídios, feminicídios e acidentes com crianças; que o policial corre mais perigo; que o mercado ilegal ganha empurrão no armamento do crime. A medida agrada à classe média, mas ignora os mais pobres, sem dinheiro para comprar arma legal.
A violência é fenômeno multicausal. A interação de um conjunto de fatores pode explicar sua ocorrência em cada contexto: corrupção moral, preconceito, ódio, intolerência, pobreza, desigualdade, crime organizado, tráfico de armas, legalização de armas etc. É possível imaginar sociedade em que, apesar da proibição de armas, homicídios aumentem. Ou vice-versa. Resultados que desafiam a intuição se explicam pela combinação de outros fatores causais. Como saber, então, que diferença faz um estoque maior ou menor de armas? A metodologia estatística, diante da profusão de dados já coletados sobre o tema, tornou-se potente o suficiente para isolar o peso específico exercido pelas armas. E chegou às conclusões acima.
Ministros do governo não hesitaram em desfilar erudição a respeito. Para Moro, “essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido”. Se a política de desarmamento fosse exitosa, o Brasil não continuaria a “bater recorde em número de homicídios.” Lorenzoni não só equiparou armas e liquidificadores na análise do risco que crianças correm, como nos ensinou que a Suíça é segura porque autoriza cidadãos a ter armas. Bebbiano não entende “como um ser humano normal pode exercer plenamente seu direito à legítima defesa sem o uso de uma arma de fogo”. Só Mourão admitiu que o decreto não é “medida de combate à violência”, apenas “atendimento a promessas de campanha”.
O direito à segurança está previsto na Constituição e em tratados de direitos humanos. É o direito de estar seguro, não de sentir-se seguro. A sensação de segurança, ao contrário, é um estado de espírito, uma condição subjetiva aberta a formas sutis de manipulação e distorção. Nem sempre é coerente com os dados objetivos da violência. A ênfase seletiva da mídia, por exemplo, pode levar a essas distorções. A política pública não deve ignorar esse indicador de bem-estar nem deixar de promovê-lo. Contudo, não pode ser critério para liberar arma de fogo. A sensação de segurança de Joice, lembremos, não equivale à minha ou à sua. Mas Joice armada, dizem os números, afeta nossa condição objetiva de segurança (e a dela também). Restringir arma é um modo de prover segurança, não o contrário.
Não há como universalizar a sensação de segurança (condição subjetiva de cada um), mas há como universalizar, de modo igualitário, o direito à segurança (entendido como proteção contra violência, mensurável em dados objetivos). Uma política de segurança orientada por informações do mundo real precisa adotar técnicas de inteligência, policiamento, protocolos de engajamento e, entre outras coisas, controle de armas de fogo.
O governo escolheu outro caminho. Como piorar a calamitosa situação da segurança pública brasileira? Consulte o fígado e fuja do conhecimento produzido sobre o assunto. Inocule doses cotidianas de medo e dissemine o mito do herói armado que faz o bem vencer o mal. Aproveite e dê carta branca para políticos financiados pela indústria da arma. Deixe os mercadores de bala de prata praticarem suas melhores ideias. Se o número de mortes aumentar, lembre-se, é sinal de que deu certo. Efeitos colaterais são o preço a pagar por esse fim maior. Importa dormir tranquilo. Qualquer barulho na sala, tem uma arma no cofre.
Fantasma da impunidade ronda o Brasil após nova tragédia
A repetição do mesmo tipo de calamidade em tão pouco tempo coloca o país num lugar de destaque na impunidade de crimes ambientais, aponta Antonio Nobre, cientista do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). “Em 2015 tivemos no Brasil o maior acidente da história da mineração, que destruiu um rio inteiro, matou pessoas, afetou o oceano. Nenhuma multa ambiental foi paga. Ninguém foi preso", exemplifica Nobre.
Três anos após rompimento da barragem em Mariana, a mineradora Samarco , que tem a Vale como uma de suas acionistas, ainda não pagou a multa ambiental imposta pelo Ibama. A quantia supera 350,7 milhões de reais. O processo envolvendo executivos da Samarco, Vale e BHP Billiton ainda não tem data para julgamento.
Até agora, três funcionários da Vale e dois engenheiros terceirizados foram presos para apurar a responsabilidade pelo rompimento da barragem em Brumadinho.
Desastres envolvendo mineração fazem parte da história do Brasil, pontua o pesquisador Nobre. Um dos mais antigos vem do Amapá: a exploração de manganês na Serra do Navio, iniciada em parceria com americanos nos anos 1940, foi interrompida deixando crateras de rejeitos que impactam a população até hoje.
"Ficamos com toda a poluição, e o estado do Amapá não se desenvolveu", diz Nobre. “Não somos o país que mais se preocupa em proteger o meio ambiente."
Pouco dias antes da tragédia em Brumadinho, o presidente Jair Bolsonaro, em sua primeira aparição internacional, disse o contrário no Fórum Econômico Mundial: "O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente".
Para o Observatório do Clima, o discurso não combina com a realidade. "Mesmo diante de uma tragédia dessa em Brumadinho, a gente ainda vê o ministro de Meio Ambiente discutindo a flexibilização do licenciamento ambiental, a facilitação do acesso às licenças", critica Carlos Rittl o posicionamento de Ricardo Salles. "Não foi a própria Vale que afirmou, há poucos meses, que a barragem estava segura? E veja o que aconteceu. Esse é um exemplo claro de que a autorregulação não funciona."
Longe das primeiras colocações, o Brasil aparece em 69° lugar entre os 180 países analisados no Índice de Desempenho Ambiental (EPI, na sigla em inglês). Publicado anualmente há 20 anos por pesquisadores das universidades de Yale e Columbia, dos Estados Unidos, em colaboração com o Fórum Econômico Mundial, o ranking internacional analisa indicadores em 24 áreas diferentes.
“Eu soube o que o presidente Bolsonaro disse sobre o Brasil ser o país que mais preserva. Mas o que isso não é exatamente preciso", rebate Zachary Wendling, coordenador do EPI. "Nós também temos um presidente que costuma contar vantagem e costumamos checar com fatos e evidências tudo o que ele fala", comenta, sobre as similaridades com Donald Trump.
Na categoria "florestas" do EPI, o Brasil tem uma das notas mais baixas: 12,43. "A posição do Brasil no ranking da categoria ‘proteção de florestas’ é a de número 96. Na verdade, o Brasil está bem atrás neste quesito, muito abaixo da média", pontua Wendling.
Na avaliação feita em 2018, Suíça, França e Dinamarca aparecem como os países que mais protegem o meio ambiente. Na América Latina, os primeiros colocados são Costa Rica, Colômbia e Uruguai - o Brasil aparece em sétimo no ranking regional.
Um estudo da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) mostra que o Brasil é campeão em perda florestal, segundo dados coletados entre 2010 e 2015. China, Austrália e Chile, por outro lado, são os que mais ganham em cobertura de mata.
Anssi Pekkarinen, um dos responsáveis pelo tema na FAO, informou à DW Brasil que as análises são feitas com base em informações disponibilizadas pelos países e que um novo estudo deve ser publicado em 2020.
Para José Eli da Veiga, agrônomo de formação e professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP (Universidade de São Paulo), a reformulação do Código Florestal está entre as evidências mais recentes de impunidade.
Votado em 2012 durante o governo Dilma Rousseff, a lei, entre outros, diz o que deve ser preservado de mata nativa dentro de propriedades privadas.
“A legislação perdoou toda a devastação feita no Cerrado e na Amazônia. Os desmatadores ficaram impunes”, menciona Veiga a anistia que a nova versão da lei garantiu a donos de terra que desmataram além do permitido até 22 de julho de 2008.
Veiga aponta ainda outras falhas brasileiras na preservação: descaso com gerenciamento hídrico, com saneamento básico e energias renováveis. “É um crime não estimular a expansão das fontes eólicas e solar para privilegiar a exploração do pré-sal”, comenta sobre o incentivo fiscal dado ao petróleo.
Dos cerca de R$ 3 bilhões em multas anuais aplicadas pelo Ibama por crimes ambientais, apenas cerca de 5% do valor é pago. A multa de R$ 10 mil dada a Bolsonaro em 2012 por pesca ilegal em área protegida foi anulada depois das eleições presidenciais. Segundo levantamento do Observatório do Clima, o órgão tem cerca de 100 mil processos de autos de infração acumulados.
Para Antonio Nobre, a preocupação ambiental de um país se mostra também no rigor com que os que causam destruição são punidos. “Se em Mariana o presidente da Samarco tivesse sido preso e a empresa tivesse quitado as multas milionárias, hoje seria diferente”, avalia.
“Em vez de assumir uma responsabilidade ambiental, parece ser mais barato para empresas corromperem o sistema. E quem assume o custo da tragédia é a sociedade brasileira: com as mortes, destruição permanente de rios, com uma perda incalculável”, finaliza.
Deutsche Welle
É hora de redescobrir... os mortos
Em outubro do ano passado, o Brasil fez uma opção política explícita (em governos anteriores, velada) por se inserir na cadeia produtiva mundial como economia periférica, lastreada na mineração predatória e na agropecuária robustecida por agrotóxicos nocivos ao homem e à natureza. Por isso os que, na prática, mais se opõem a isso, os povos indígenas, precisam ser aculturados, como quer Jair Bolsonaro. Por isso o Ibama, essa “indústria de multas”, precisa ser aniquilado. Por isso é preciso aceitar o “autolicenciamento ambiental”. Esse é o Brasil que o presidente da República foi vender em Davos, com o vibrante apoio do CEO da Vale na plateia. Insisto: não nos queixemos. Democraticamente, optamos pela barbárie.
Há pouco óleo de peroba no mercado para tanta cara de pau. Como assim? Dizer que um governo de menos de um mês não pode ser responsabilizado pelo que aconteceu? Mas, em menos de um mês, esse mesmo governo foi ágil o bastante para nomear o maior parceiro das mineradoras junto ao Congresso Nacional como coordenador político da Presidência da República no Senado Federal! O que poderia justificar um ex-deputado ser articulador político de senadores? Só vejo uma explicação plausível: suas parcerias. E o governo do Estado segue na mesma toada. Quem não se recorda do mantra do governador, durante as eleições, acerca da necessidade de simplificar o licenciamento ambiental?
Meu marido, cujo pai, engenheiro, no final dos anos 60 do século passado, levava para casa, toda semana, surubins apanhados no Paraopeba, enquanto construía os pilares de uma ponte sobre o rio, na BR–262, na divisa de Betim com Juatuba, anda a cantarolar, desolado: “Pra lá deste quintal, era uma noite que não tem mais fim”. Infelizmente, começamos a ter a sensação de que este governo, com menos de um mês, é uma “noite que não tem mais fim...”.
Isso só poderá ser revertido se nós formos para as ruas externar indignação e dizer que queremos um desenvolvimento econômico saudável, compatível com a preservação da natureza e da vida humana, com dignidade. Vimos há poucos dias populações de municípios da região do Rio Doce (que emprestou seu nome, originalmente, a essa indigitada empresa) interromperem a circulação do trem de passageiros da Vitória-Minas para protestar contra a inércia da Vale e da Fundação Renova na reparação dos danos causados pelo desastre de Mariana. É o caminho: protestar. Só assim esse governo de tendências autocráticas com verniz democrático poderá recuar de tanta insensatez.
Não sei se a origem é procedente. Atribuídos ao padre Fábio de Melo recebi, por uma rede social, os seguintes dizeres: “Vale, o teu vale é de lucros. O do povo é de lágrimas”. De toda maneira, faz sentido. Dias a fio, centenas de famílias brasileiras velarão seus mortos.Sandra Starling
Plano para fiscalizar barragens é uma enganação
O Brasileiro é um crédulo. Costuma conceder voto de confiança aos governos em início de mandato. Mas o ministro Gustavo Canuto, do Desenvolvimento Regional, abusou da credulidade alheia ao expor o plano da gestão de Jair Bolsonaro para fiscalizar as barragens brasileiras. Quem ouviu a entrevista saiu da experiência com uma pulga saltitando no dorso da orelha.
Primeiro, o ministro mastigou os números. Há no Brasil mais de 20 mil barragens, ele informou. Desse total, 3.386 são consideradas de alto risco. Todas receberão a visita de fiscais, declarou o ministro. Entre as barragens que ameaçam a sociedade, 205 guardam rejeitos de mineração. Irão para o início da fila das fiscalizações.
Na sequência, o ministro passou a impressão de que o governo fiscalizará as barragens como quem brinca de cabra-cega, com os olhos vendados. Canuto não soube dizer quantos fiscais serão mobilizados. Não deu a menor pista de quanto dinheiro será necessário. Não estipulou nenhum prazo para a conclusão do serviço. "Não é da noite pro dia", avisou.
O governo federal pintou-se para a guerra depois do estouro da barragem da Vale em Brumadinho. Poderia ter reconhecido que o setor de fiscalização de barragens é uma ficção. Mas preferiu dançar uma coreografia da enganação, no pressuposto de que a plateia é feita de bobos. Conseguiu a proeza de transformar a inépcia de gestões anteriores num processo de desmoralização, de envelhecimento precoce da nova administração. O novo governo tornou-se sócio de um velho descalabro.
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