O decreto que facilita a posse de armas (e a pretensão de expandir para porte de armas) adota narrativa que combina três fundamentos: direito à legítima defesa; direito à segurança; diminuição da violência. Três objetivos louváveis num país tão inseguro e desigual (e que distribui a insegurança desigualmente). Mas o que dizem os números do mundo real? Que a cada 1% a mais de armas nas mãos da população há 2% a mais de mortes; que 70% das pessoas assaltadas quando estão armadas tomam tiro; que a posse de armas aumenta em 500% a chance de ser morto, além de aumentar o número de homicídios, suicídios, feminicídios e acidentes com crianças; que o policial corre mais perigo; que o mercado ilegal ganha empurrão no armamento do crime. A medida agrada à classe média, mas ignora os mais pobres, sem dinheiro para comprar arma legal.
A violência é fenômeno multicausal. A interação de um conjunto de fatores pode explicar sua ocorrência em cada contexto: corrupção moral, preconceito, ódio, intolerência, pobreza, desigualdade, crime organizado, tráfico de armas, legalização de armas etc. É possível imaginar sociedade em que, apesar da proibição de armas, homicídios aumentem. Ou vice-versa. Resultados que desafiam a intuição se explicam pela combinação de outros fatores causais. Como saber, então, que diferença faz um estoque maior ou menor de armas? A metodologia estatística, diante da profusão de dados já coletados sobre o tema, tornou-se potente o suficiente para isolar o peso específico exercido pelas armas. E chegou às conclusões acima.
Ministros do governo não hesitaram em desfilar erudição a respeito. Para Moro, “essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido”. Se a política de desarmamento fosse exitosa, o Brasil não continuaria a “bater recorde em número de homicídios.” Lorenzoni não só equiparou armas e liquidificadores na análise do risco que crianças correm, como nos ensinou que a Suíça é segura porque autoriza cidadãos a ter armas. Bebbiano não entende “como um ser humano normal pode exercer plenamente seu direito à legítima defesa sem o uso de uma arma de fogo”. Só Mourão admitiu que o decreto não é “medida de combate à violência”, apenas “atendimento a promessas de campanha”.
O direito à segurança está previsto na Constituição e em tratados de direitos humanos. É o direito de estar seguro, não de sentir-se seguro. A sensação de segurança, ao contrário, é um estado de espírito, uma condição subjetiva aberta a formas sutis de manipulação e distorção. Nem sempre é coerente com os dados objetivos da violência. A ênfase seletiva da mídia, por exemplo, pode levar a essas distorções. A política pública não deve ignorar esse indicador de bem-estar nem deixar de promovê-lo. Contudo, não pode ser critério para liberar arma de fogo. A sensação de segurança de Joice, lembremos, não equivale à minha ou à sua. Mas Joice armada, dizem os números, afeta nossa condição objetiva de segurança (e a dela também). Restringir arma é um modo de prover segurança, não o contrário.
Não há como universalizar a sensação de segurança (condição subjetiva de cada um), mas há como universalizar, de modo igualitário, o direito à segurança (entendido como proteção contra violência, mensurável em dados objetivos). Uma política de segurança orientada por informações do mundo real precisa adotar técnicas de inteligência, policiamento, protocolos de engajamento e, entre outras coisas, controle de armas de fogo.
O governo escolheu outro caminho. Como piorar a calamitosa situação da segurança pública brasileira? Consulte o fígado e fuja do conhecimento produzido sobre o assunto. Inocule doses cotidianas de medo e dissemine o mito do herói armado que faz o bem vencer o mal. Aproveite e dê carta branca para políticos financiados pela indústria da arma. Deixe os mercadores de bala de prata praticarem suas melhores ideias. Se o número de mortes aumentar, lembre-se, é sinal de que deu certo. Efeitos colaterais são o preço a pagar por esse fim maior. Importa dormir tranquilo. Qualquer barulho na sala, tem uma arma no cofre.
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