quarta-feira, 31 de maio de 2017


O Brasil em seu labirinto

Em julho de 2015, escrevi que, na mais grave crise de sua história, o Brasil caminhava para o labirinto; o Blog ainda estava no Estadão. O labirinto se faz aos poucos, no errante ziguezaguear dos passos e dos dias; quando se vê, está posto, com seus caminhos intrincados e redundantes. Numa dinâmica de tentativa e erro, os atores não se entendem; cometem equívocos, sem correção. Entram por uma porta, atravessam uma outra e mais outra, retornam ao mesmo ponto; não se vê saída.

Passados quase dois anos, o país permanece no labirinto: ao preservar o sistema político que se esgotou, persevera nos mesmos métodos, quase sempre fisiológicos; repete o desgastado padrão mental de cooptação parlamentar; bate cabeça. No final dos anos 1990, FHC já reclamava desse tipo de prática, no funcionamento do Congresso; a primeira vez em que ouvi o termo “voracidade fisiológica” foi pela boca de Pedro Malan, que havia pouco deixara o governo. O processo não seria sustentável.

Lula, por meio do Mensalão, depois pela adesão do PMDB, não alterou a lógica e embrenhou-se ainda mais nesse charco redundante. Dilma, em sua concepção burocrática da política, chegou a crer o Congresso como dispensável; comprou a tese do marqueteiro, seria “gerente”. Miserável tese, pobre Dilma, tomada pela ilusão de si mesma: 39 ministérios, um país quebrado e a convicção de que a distribuição de cargos e a liberação de esquemas bastaria. Não bastou.

Veio o impeachment e a pretensão de que Michel Temer — por vir do ventre dessa baleia —controlasse o processo. Mas, quem, estando dentro do labirinto, pode de fato contorná-lo? Assumido filho do sistema, a presidência da República era questão de manutenção do status quo: mudar tudo, para mudar nada. As necessárias reformas econômicas — Previdência e Trabalhista — como os anéis que o sistema custava a entregar.


O presidente agora se agarra ao que pode, nega indícios e evidências, desqualifica o tumor que corrói o sistema; manobra por dentro, não sai do lugar. Faz sentido: para Temer, renunciar não é simples questão de voltar para casa; ficar significa a sobrevivência política e a liberdade — sua e de seu grupo. Trata-se, então, da permanência de uma lógica agonizante que grita por socorro, que não quer morrer. Mas, que morre aos poucos, perdida no labirinto de cada dia.

Lamentar o leite derramado do desenvolvimento perdido é improdutivo: entrando pelas mesmas portas, o labirinto vai dar no mesmo descaminho da ingovernabilidade. O que se esperava era a mágica das reformas econômicas sem o desembaraço do nó político; alçar um voo de galinha, sufocar os jacobinos do Ministério Público com a reversão de expectativas. Nova falha de diagnóstico: não será a economia que salvará a política, mas o contrário. Insistir nos erros é mais que teimosia.

Quando se insiste na solução interna comprometida com o jogo viciado, os erros se repetem. A Câmara, aflita para afastar o pavor da Lava Jato e o pesadelo da perda de mandatos, quer um dos seus. Mas, o Minotauro do fisiologismo não perdoa: mais parecido com Saturno, devora os próprios filhos; Rodrigo Maia será a próxima iguaria servida no banquete da voracidade? No que seu nome alteraria o traçado repetitivo do desencontro com a saída?

Mais inteligente será mudar a lógica: enfrentar o Minotauro, descartar o fisiologismo, punir a cada um de acordo com a gravidade de cada crime; comunicar-se com a população, estabelecer outro diálogo com o Congresso, num governo de União Nacional; reformar estruturas. Resgatar a Política que significa História, buscando alguém comprometido com a mudança e, assim, realizar a transição. Com os olhos postos no futuro, conquistar a libertação do labirinto.

Carlos Melo 

A glamorização da barbárie

Por quase quatro horas Brasília esteve em chamas.

A batalha campal da última quarta-feira foi protagonizada por manifestantes, muitos deles mascarados, durante o protesto organizado por centrais sindicais e movimentos de esquerda contra as reformas que tramitam no Congresso Nacional, pela saída do presidente Michel Temer e por eleições diretas. Oito Ministérios foram depredados, dois incendiados e 49 pessoas feridas.

Mascarado,black blocs (Foto: Pixabay)

Diante da violência o presidente da República decidiu convocar o Exército em defesa da ordem pública.

Desde as grandes, heroicas e predominantemente pacíficas passeatas de 2013, o país assiste a esse tipo de barbárie. E com defensores enérgicos.

Como entender a enorme dificuldade de parte da nossa intelectualidade e da maioria dos partidos de esquerda em condenar atos de vandalismo cometidos por mascarados, black blocs e similares?

Membros da comunidade acadêmica fazem esforços teóricos gigantescos para justificar o quebra-quebra promovido por uma minoria violenta e antidemocrática. Alguns chegam a considerar a depredação de bancos na Avenida Paulista e de outras instituições privadas ou públicas como uma ação anticapitalista.

Dentro desta ótica, o vandalismo seria uma resposta à “violência do Estado” cometida contra jovens da periferia. Haveria, assim, um conteúdo revolucionário e contestador em um movimento que, na verdade, padece de conteúdo substantivo.

Não há ineditismo nesta interpretação. A violência e o banditismo já foram romantizados e traduzidos como um produto direto da pobreza. O que é absurdo.

A esmagadora maioria dos pobres não é composta de bandidos, assim como a maioria da juventude da periferia quer distância da selvageria dos mascarados.

No final dos anos 70, a “sociologia da miséria” conferiu glamour ao Comando Vermelho, como se ele promovesse a justiça social nas favelas cariocas. Criou-se o mito que o CV aprendeu com os grupos da esquerda armada, de quem teria absorvido tanto a tática dos grupos militaristas, como alguma “consciência política”.

À época, foi sucesso de bilheteria o filme “Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia” - um assaltante de banco, que aderiu ao banditismo em resposta “às injustiças sociais” e à corrupção da polícia.

A ideologia do ressentimento, inerente aos segmentos que adotam a barbárie como forma de luta, tampouco leva à transformação da sociedade. Nada constrói. Ao contrário, destrói.

A bandeira do anticapitalismo, por si só, não quer dizer grande coisa. Na história, ela foi argamassa de regimes racistas e genocidas. O nazismo que o diga.

Como caracterizar a agressão de vândalos a lojistas (às vezes pequenos comerciantes), a profissionais de mídia, como os ataques às TVs Globo e Record? E o que há de revolucionário no ato de quebrar lixeira, placas de ruas e outros bens públicos?

Estas violências se assemelham aos métodos dos camisas negras na Itália fascista de Benito Mussolini. E são totalmente incompatíveis com o Estado de Direito Democrático.

A auto definição dos black blocs como anarquistas é uma injustiça para Bakunin, uma das grandes referências de uma ideologia cujo eixo é a pregação da autonomia e do fim do Estado.

Nossos vândalos não têm esta sofisticação intelectual. Não têm objetivos estratégicos claros. Eles promovem apenas a baderna. Uma espécie de banditismo que deveria ser condenado claramente por toda a intelectualidade, movimentos sociais e forças políticas.

Do início do século vinte até os dias de hoje, tivemos diversos embates: a revolução russa, o surgimento do fascismo e do nazismo, o stalinismo, duas guerras mundiais, Hiroshima, a guerra fria, a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria. O único valor que sobreviveu a tantos confrontos, e se fortaleceu, foi a democracia.

É ela que vem sendo atacada pelos mascarados de agora, daí seu caráter deletério.

A juventude de 1968 encarou a ditadura sem cobrir o rosto. Aliás, nos anos de chumbo os torturadores usavam capuz para que ninguém soubesse quem eram eles. O mesmo sempre fizeram os carrascos. Desde a idade média.

Como glamorizar movimentos que escondem a face? Na cultura brasileira, isso é prática de traficante, assaltante de banco, membro de milícia paramilitar.

Democrata que se preza vai às ruas de peito aberto e rosto à mostra.

Paisagem brasileira

Edgar Walter (1969)

Temer assume o satanismo e pretende se transformar num 'presidente zumbi'

Um dos aspectos mais curiosos da Lava Jato foi o relato do marqueteiro João Santana sobre o presidente Michel Temer. O publicitário revelou que em 2010 o PT fez pesquisas que revelaram queda nas intenções de voto para Dilma Rousseff quando o então candidato a vice participava das propagandas. O motivo seria uma suposta vinculação da imagem de Temer ao satanismo. Dando risadas, Santana disse ter feito um estudo sobre ocultismo e encontrou um personagem do século 17 que tinha o mesmo nome do atual presidente e era adepto do satanismo.

É claro que uma coisa nada tem a ver com a outra, porque no caso de Temer quem inventou essa estória foi o então senador Antonio Carlos Magalhães, do antigo PFL, quando presidia o Senado. Em 1999, ACM comprou uma briga com Temer, que presidia a Câmara, e o apelidou de “Mordomo de Filme de Terror”. De lá para cá, a piada vem sendo repetida.

Em dezembro de 2015, Renan Calheiros era presidente do Senado e também se desentendeu com Temer. Disse no plenário que iria sugerir ao vice-presidente que, se perdesse o cargo no julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, poderia pensar em outros empregos, como “mordomo de filme de terror ou carteiro”, referindo-se à carta que Temer acabara de mandar a Dilma Rousseff, dizendo-se desprestigiado no governo do PT.

No final de março de 2016, em pleno processo do impeachment, o deputado Davidson Magalhães (PCdoB-BA) fez um discurso na tribuna da Câmara, para acusar Temer de conspirador, e seguiu na mesma balada: “Se ACM o taxava de ‘Mordomo de Filme de Terror’, eu acrescento que hoje ele é o Drácula da Democracia”.

Resultado de imagem para temer zumbi charge
Pouco mais de um ano depois, agora Michel Temer parece ter incorporado o personagem vislumbrado por ACM e ameaça se transformar num presidente-zumbi, para assombrar o Planalto na convivência com os fantasmas que declarou vislumbrar no Palácio Alvorada quando se mudou para lá, cujas aparições fizeram com que voltasse a residir no Jaburu.

Sua rejeição bate todos os recordes, sua imagem pública está destroçada, mas Temer finge governar, convoca reuniões e dá ordens à base aliada, que finge obedecer. Ele continua nessa encenação e no domingo resolver nomear um novo ministro que aceita fazer sua defesa sem cobrar nada, contentando-se apenas com aqueles 15 minutos de fama celebrizados pela genialidade de Andy Warhol.

Mas não há como segurar Temer, porque o deputado que recebeu a mala dos R$ 500 mil vai fazer delação, para destruir o que ainda resta do presidente. Mesmo assim, ele não renuncia. Pelo contrário, conta com a amizade e cumplicidade de ministros do TSE para retardar o julgamento e manter mais algum tempo esse governo morto-vivo.
 A inexistência de governo traz consequências, é claro. Ao invés de estarem preocupados em reduzir direitos sociais, os três Poderes deveriam se dedicar a outras missões mais necessárias, como desativar a boma-relógio da dívida pública ou reduzir a criminalidade, adotando leis mais duras e tolerância zero. Mas como fazê-lo, se o crime se instalou lá na Praça dos Três Poderes, subvencionado com recursos públicos e protegido pelo foro privilegiado.

Se a Justiça funcionasse, a impunidade diminuiria, haveria um maior respeito às leis. Mas os ministros do Supremo são os primeiros a dar o exemplo, ao libertar perigosos meliantes devido a meras tecnicalidades processuais, e ainda chamam isso de Justiça.

Sangria desatada

As meias solas em consideração pelo Congresso não mobilizam ninguém. E a continuação dos apunhalamentos entre “podres” e “santos” nos sangrará a todos até à última gota. Se houvesse uma alternativa séria de compromisso com o futuro este país cansado de guerra certamente a agarraria

O mecanismo

Eu era jovem quando, em Minas Gerais, ouvi a palavra “mecanismo” ser usada fora dos quadros da mecânica dos relógios, para designar um misterioso e inexorável impulso humano relativo a desordem ética, a dualidade entre norma e desejo, e a autodestruição.

Um membro de nossa “turma” de esporte e “brincadeiras” - reuniões dançantes nas quais podíamos chegar perto das moças pegando suas mãos, sopesando seus corpos e sentindo o seu hálito - fugira de casa!

Sabíamos de sua revolta aberta contra o “Pai” radical na obediência às convenções. Afinal, quem é que ia de bom grado à missa das naqueles domingos frios por puro catolicismo e não para pecaminosamente vislumbrar a namorada - então o grande e infinito amor de sua vida?

Resultado de imagem para o mecanismo
Talvez o Gabriel, cuja vocação sacerdotal era inegável. Mas a maioria fugia da igreja como o diabo da cruz e eis que, um belo dia, fomos obrigados a viver não na tela do cinema Palácio mas, na vida real, o sumiço do Carlos Alberto.

Era claro que o Carlinhos tentava sair do seu aprisionamento familiar. Fugiu para o Rio levando com ele os pagamentos em dinheiro da empresa na qual seu pai, um homem de prestígio esmagador, o havia empregado.

“Cometeu um enorme pecado”, disse o padre Geraldo na reunião para a qual nos convocou na sala de visita da igreja Senhor do Passos.

“Não, padre, desculpe...Ele usou um mecanismo bem conhecido”, disse o Dr. Freitas, psiquiatra amigo da família que, para escândalo dos círculos mais cultivados e ardorosamente católicos da cidade, falava muito num perigoso Dr. Freud.

“Ele rompeu”, prosseguiu o Dr. Freitas, “com os recalques. Ousou escapar da roda implacável do mecanismo que junta, nas suas correias, as regras de controle que devem valer para todos, com seus fabricantes e controladores - essas pessoas que, por isso mesmo, ficam maiores do que as leis. No processo, há uma luta entre normas institucionais e super-indivíduos ou pessoas. A mentira aparece como um valor e a desonestidade vira virtude. Corre-se o risco do suicídio - esse exagero de egoísmos rasos com altruísmos confusos. Esses crimes para dentro, como o assalto a coletividade. Disto resulta uma culpa que vaga pedindo punição, mas punir é também algo complexo pois exige admissão do erro. Algo complicado na nossa cidade.”

*

Leis e desejos, regras gerais e interesses particulares. A fuga do companheiro colocava o absurdo: todos temos apenas um destino, mas o nosso coração encerra muitas vidas e possibilidades. Inúmeras fugas, a maioria fugaz e fantasiosa. Como conciliar egoísmo e altruísmo; a parte que nos individualiza, com o todo que nos persegue até o fim do mundo.

*

Quando o fujão voltou, nós o cercamos com perguntas. Viajou para o Rio de noite, hospedou-se no Hotel Serrado, comeu nos melhores restaurantes e “pegou algumas mulheres”, pois, naqueles tempos, “pegavam-se (imagine só...) mulheres”. Mas logo entrou num regime de angustia.

Disse sem rodeios: “Quanto mais meu pai c... regras, mais ele as descumpria. Chegamos num ponto onde não se distinguia mais o legal do ilegal, pois todos agiam de acordo com as lei, mas seguindo seus interesses. Lá em casa fazíamos interpretações de interpretações de interpretações. Elas ficaram maiores que os fatos e então eu criei um arremedo de morte - fugi de casa.

“Entendi”, continuou o fugitivo, “que o ético não é apenas o certo, é o que está dentro dos nossos corações. Podemos descumprir e dispensar as regras, mas não podemos arrancar do nosso peito o nosso coração”. “Agora eu entendo”, disse o menino perdido e jamais achado, “o problema do Pai é que ele imagina que o mundo pode ser resolvido por leis quando, de fato, as leis são aplicadas, interpretadas e limitadas por pessoas. Dentro de uma fatal e abençoada liberdade que engendra o mecanismo. Pois, quanto mais leis, mais se reforçam e se instrumentam as amizades. E quanto mais arranjos pessoais, mais leis e mais hipocrisia e má-fé”.

*

P.S.: Sei que, exceto pela mera coincidência, isso nada tem a ver com a chamada crise brasileira que, por ignorar o mecanismo, repete-se e reitera-se como uma indecorosa rotina.

Gente fora do mapa

A república dos compadres

Em nossa capital dos convescotes, onde os três Poderes da República se confraternizam nos fins de semana e passam os dias úteis conspirando para salvar as próprias peles e esfolar a Nação, a máfia dos compadritos, malfeitores portenhos da ficção genial de Jorge Luis Borges, se esfalfa para não ser extinta.

No Poder Legislativo, bocas malditas dão conta à boca pequena que se conspira para dar de mão beijada aos ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (por que não Fernando Collor?) indulgência perpétua para manter Michel Temer solto, caso seja defenestrado, como o major boliviano Gualberto Villarroel. Este foi atirado pela janela do palácio de Quemados e linchado pela malta enfurecida em 21 de julho de 1946. Ninguém espera que Temer seja atirado vidraça afora do Palácio do Planalto, tendo a palavra defenestrado sido usada apenas como um reforço de linguagem, uma metáfora do desejo da quase totalidade da população brasileira que o prefere sem poder. Mas que saia inteiro, como a rainha da sofrência Roberta Miranda, se dirige ao ex-amor no sucesso Vá com Deus. Embora seja mais difícil querer que ele saia íntegro desde a explosão sobre a faixa presidencial da Bomba H da delação de Joesley Batista, o marchante de Anápolis que virou tranchã do próspero negócio da proteína animal no mundo.

Resultado de imagem para temer e gilmar charge

Passadas duas semanas das revelações do delator premiado, Temer não contestou nenhuma das acusações que lhe faz, com base na delação, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no pedido de abertura de inquérito, encaminhado ao relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Edson Fachin: corrupção passiva, organização criminosa e obstrução à investigação. Em vez disso, contratou o perito Ricardo Molina para acusar a gravação da conversa nada republicana de delator com delatado de má qualidade e de prova de incompetência e ingenuidade dos procuradores que a negociaram. OK. E daí?

O Palácio do Planalto já desmentiu o procurador-geral. Mas, junto com o desmentido, foi dada a prova mais evidente de culpa do chefe do governo, ao introduzir o roque do xadrez na gestão pública para qualquer cidadão com quociente de inteligência superior a 50. Insatisfeito com a “timidez” de seu ministro da Justiça na direção da Polícia Federal (PF), ele demitiu o deputado Osmar Serraglio (PMDB) e o substituiu pelo jurista Torquato Jardim, cuja opinião depende tanto do interesse do patrão quanto a do atrapalhado legista. Renan Truffi revelou neste jornal que, em texto escrito em julho de 2015, ele escreveu que, “desconstituído o diploma da presidente Dilma, cassado estará o do vice Michel”.

Como se sabe, em maio de 2016, dez meses depois, o vice Michel era presidente e, no mês seguinte, o renomado causídico assumiu a pasta da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Desde então, tornou-se um devoto discípulo do “Velho Capitão” Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, cujo engenho, mesclado à flexibilidade ética que praticava, produziu a pérola que pode servir de lema para o brasão do mais ilustre membro do clã Jardim: “A coerência é a virtude dos imbecis”. É ou não é?

Segundo Felipe Luchete, do site de notícias jurídicas Conjurs, em 21 de fevereiro passado, o ministro criticou procedimentos da operação Lava Jato: ele “listou problemas como as longas prisões provisórias, com duração de até 30 meses, e condenações sem provas, já reconhecidas pela Justiça. Ao comentar a operação, ele afirmou ainda que vazamentos seletivos geram ‘nulidade absoluta’ de processos”, segundo o relato. ODiário do Povo do Piauí publicou no dia de sua posse no ministério de Temer, sua profecia de que a Lava Jato teria igual destino ao das operações anteriores da Polícia Federal, caso da Castelo de Areia, sepultada no STF. Bidu!

Fiel ao brocado de Chatô professado pelo chefe, sua assessoria desmentiu os fatos acima revelados, contrários à opinião da maioria da população, em nota ao Fantástico, que os noticiara. Mas isso não quer dizer que sua troca por Osmar Serraglio difira da substituição por Dilma Rousseff do advogado José Eduardo Martins Cardozo pelo procurador Eugênio Aragão, alcunhado por seu chefe, ex-amigo e agora desafeto, Janot, de “Arengão”.

Mais pernóstica do que a missão que ele nega, contudo, é a transferência de seu antecessor para a pasta que antes o incoerente ocupava. O boquirroto Serraglio se jactava a quem se dispusesse a lhe dar um minuto de atenção de que não era “pato manco” no governo Temer. E todos sabemos que isso se devia a que sua permanência na pasta garantia o salvo-conduto para o suplente Rodrigo da Rocha Loures continuar no lado bom do dilema “ou foro ou Moro”, mantendo o foro privilegiado na cadeira para a qual o novo ministro da Transparência fora eleito.

O episódio cancela todos os significados que os dicionários reservam para definir as palavras transparência, fiscalização, controle, justiça e outras, já jogadas no lixo da prática administrativa e política do Brasil, tais como ética, decoro e vergonha. Mas essa consequência é menor do que o motivo real do “movimento combinado do rei e de uma das torres, que se desloca para uma posição mais atuante para dar mais segurança ao rei”, como o Dicionário Houaissdefine o roque, jogada de xadrez citada no início deste texto.

Assim como a tentativa de desqualificar o depoimento do marchante delinquente por causa de seus crimes pregressos ou da má qualidade da gravação que fez nos porões do palácio, a matéria orgânica, à tona de 17 de maio para cá, já ficou insuportável. E exige mais atenção às manobras com que os compadritos da política tentam manter o status quo. Desfaçatez, chicanas e negaças não perfumam o ar apodrecido das catacumbas da máfia multipartidária que nos governa.

Originalidade

Resultado de imagem para reading newspapers
Originalidade marcada, só nos homens da roça que não leem jornais. Ideias proprias, pontos de visa unicos, personalíssimos, e a sublime coragem do pitoresco mental.

Nas cidades grandes, o jornal ingerido pela manhã desoriginaliza, bota-nos a todos bitolados pela mesma regra de pensar.

A opinião publica só existe nos lugarejos. Nas capitais desaparece substituida pela opinião que se publica.

Monteiro Lobato

Temer transformou país em república de bananas

Pela manhã, Michel Temer discursou para investidores estrangeiros em São Paulo. “A responsabilidade rende frutos”, declarou. À tarde, de volta a Brasília, Temer assumiu o comando de uma articulação irresponsável para assegurar que o suplente de deputado Rodrigo Rocha Loures, o homem da mala, não perca o escudo do foro privilegiado. Como um centauro metafórico, o governo Temer mantém a cabeça nas alturas do mercado globalizado e o corpo aqui embaixo, na politicagem enlameada, nos arranjos de um presidente investigado que tenta evitar a aparição de outro delator.


Para demonstrar que ainda dispõe de apoio congressual, Temer levou ao seminário com investidores os presidentes da Câmara e do Senado: Rodrigo Maia, o ‘Botafogo’ das planilhas da Odebrecht; e Eunício Oliveira, o ‘Índio’ da escrituração do departamento de propinas da construtora. A dupla soltou a língua em discursos sobre reformas modernizadoras. Também derramaram saliva pelas reformas e por Temer os investigados tucanos Geraldo Alckmin e Aloysio Nunes, além do neotucano João Doria.

Em Brasília, para segurar a língua do potencial delator Rocha Loures, Temer corre atrás de um deputado paranaense que se disponha a assumir uma vaga no ministério, pois Osmar Serraglio (PMDB-PR), que cedera a poltrona ao suplente da mala, não topou ser rebaixado da pasta da Justiça para o Ministério da Transparência. Conselheiros do presidente avisam que a utilização tão escancarada do organograma do Estado pode pegar mal. Aconselham moderação. Mas a simples cogitação de plantar um deputado qualquer na sacrossanta pasta da Transparência apenas para adular um potencial delator é reveladora do ponto a que chegou a gestão Temer.

A cabeça do centauro assegura que o governo vive situação de franca normalidade. Mas o Supremo Tribunal Federal autorizou a Polícia Federal a interrogar o investigado Temer sobre a movimentação anormal do corpo do centauro, dado a travar diálogos desqualificados com empresários suspeitos no escurinho do Palácio do Jaburu.

Aos pouquinhos, Temer vai consolidando o projeto iniciado nos 13 anos de administrações petistas. Consiste em transformar o Brasil numa república de bananas. Assim eram chamadas as nações da América Central governadas por oligarquias corruptas e subservientes ao capital estrangeiro. Uma Banana Republic era, normalmente, pequena. Mas o Brasilzão, com suas peculiaridades, entra no clube como um bananão onde a corrupção generalizou-se de tal forma que tudo tende a acabar em palavras com a desinência ‘ão’ —como acordão, por exemplo.

Imagem do Dia

illa Roja. Costa Brava, Spain. - Whether you're looking for sandy beaches, rocky coves, tranquil villages or mountain scenery, Spain's Costa Brava has something to offer you. Situated in the north-east of the country overlooking the Mediterranean Sea, the Costa Brava region enjoys hot summers and mild winters, making it an all-year-round holiday destination.:
Illa Roja (Espanha)

Cotidiano de exceção

Cartaz da edição brasileira do livro 'Sobre a tirania' 
O sobressalto encarnou-se nos dias. Não é mais inerente ao cotidiano, mas o próprio cotidiano. Temos vivido no Brasil (e acredito que em boa parte do mundo), aos espasmos. Um espasmo, outro espasmo, mais um espasmo. A cada noite, dormimos (ou tentamos dormir) sem saber o que acontecerá no país. Ou mesmo com qual presidente o dia terminará. Não há mais como imaginar o dia de amanhã. Às vezes, não dá para imaginar a hora seguinte. O sobressalto tece a experiência – tanto a coletiva, a maneira como estamos com os outros, como a individual, nosso modo de estar consigo mesmos. Acusamos o impacto nas nossas vísceras, o sentimos na ansiedade misturada aos goles de café, mas não somos capazes de dimensionar. É assim que a exceção vai se infiltrando nas horas – e também nas almas. E é assim também que ela mina a nossa resistência. Como persistir, então?

O controle é, desde sempre, uma ilusão. Mas em momentos como este, estamos além da possibilidade de ilusão. Se isso não é novo na história da humanidade, e obviamente não é, há algo que acentua e amplia essa percepção da realidade, que é a vida conectada pela internet, em que segundo a segundo algo salta na tela para contar de um sobressalto, sobressaltando. E, sobressaltados, replicamos o que nos sobressalta, sobressaltando outros. E, assim, criamos um mundo de gente que suspende a respiração – e às vezes também o pensamento.

Em épocas como esta, as armadilhas são várias. E talvez a maior delas esteja na reação. Há uma diferença entre reagir por reflexão – e reagir por reflexo. A reação por reflexo obedece à mesma lógica de alguém que se coça ao sentir a picada de um pernilongo. Assemelha-se a uma resposta sem pensamento, rápida como um “curtir” das redes sociais. É difícil alcançar qual é o efeito de uma reação generalizada por reflexo. Mas é importante perceber que, neste momento, há parcelas da sociedade que disputam o poder – ou lutam para mantê-lo – que reagem com pensamento e reagem com planejamento. E parte do seu pensamento e do seu planejamento é contar com o fato de que a maioria seguirá reagindo por reflexo.
Resistir ao autoritarismo é deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir por reflexão
No tempo da aceleração, o que se infiltra nas horas é esta sensação de anormalidade que não passa. Convertida num presente contínuo, é como se o dia seguinte nunca chegasse. O risco é que, para recuperar a “normalidade”, qualquer normalidade, se aceite o inaceitável. Quanto maior for o anseio por “normalidade”, mesmo que ilusória, mais as pessoas e grupos tornam-se dispostos a conceder e a perder direitos. E é aí que mora o perigo.

Resistir neste momento é também deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir a partir da reflexão. Quando tudo parece caótico, quando tudo fica meio misturado e parecido, é preciso olhar para os fatos. Olhar para os fatos com toda a atenção. São eles que nos apontam onde estão as verdades e nos ajudam a enxergar onde está a manipulação, assim como a falsificação. O pensamento é ainda a melhor forma de resistência.

Há um livro que pode nos ajudar a pensar sobre este momento. Sobre a tirania – Vinte lições do século XX para o presente será lançado pela Companhia das Letras no início de junho. Perturbado pela chocante eleição de Donald Trump, Timothy Snyder, professor de história da universidade de Yale, postou um texto no Facebook que se tornou viral. Ele começava assim: “Os americanos não são mais sábios que os europeus, que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo. Nossa única vantagem é ser capaz de aprender com a experiência deles”. O texto foi ampliado e se tornou um livro best-seller nos Estados Unidos, já convertido para várias línguas. Agora chega ao Brasil, traduzido por Donaldson M. Garschagen.

Escrito para os americanos, o livro diz muito também para os brasileiros, já que as novas máscaras do velho autoritarismo são tão globalizadas como o mundo que as gesta. A seguir, faço uma conversa minha com este livro, a partir da experiência de viver no Brasil o que chamo de “cotidiano de exceção”.
Leia mais o artigo de Eliane Brum

Classe de desclassificados

 
Você tem uma classe que ganhou autonomia em relação à sociedade. Ela é intocável, é uma classe que está aí desde a ditadura militar. Vivemos num país que não conseguiu aprofundar a participação popular dentro do processo de política institucional. Conseguimos criar uma situação em que a estrutura política é completamente autista em relação à pressão popular
Vladimir Safatle

Governabilidade de escárnio

Quando a cadeira presidencial balança, o ocupante não vacila em subir nas tamancas. Alguns vão mais além: tiram do armário a fantasia, limpam a poeira e a naftalina, para mais se exibir com o garbo de quem sonhou com uma coroa de pedrarias de poder.

Com Michel Temer, bastou cair a máscara de beato político, senhor de leis, que as cumpre assim e assado, para se autocoroar. Nada de se estranhar no país do ministro Gilmar Mendes que "está se tornando uma grande organização Tabajara".

Infelizmente não é programa humorístico, mas uma grande patuscada da casta político-governamental, que se deixa corromper em nome de uma governabilidade de escárnio. 


Desde que pego pela língua tentando justificar-se e passando por cima dos crimes na calada da noite, jogou no lixo a toga de tribuno. Está nu e fede como qualquer parlamentar brasileiro investigado.

Quem iria levar o país à estabilidade e entrar na História não passa de outro, mais um da infindável série, mascarado. Faz no privado o que condena no público.

Para recuperar o já irrecuperável, troca seis por meia dúzia em plena crise política. Acuado pelo flagra da não explicação, confessa-se mais uma vez como reles político. A troca ministerial na Justiça, renda ou não frutos para seu carreirismo, desesteabiliza ainda mais a instável sociedade. Dar cartadas em prol da garantia no cargo, quando deveria governar, e não imperar, é mostra de que quer salvar uma biogrfia já enlameada.

Mais uma vezo país assiste às lideranças jogarem um Estado no fogo para livrar a pele entre a fumaça. É o espírito público da canalha.
Luiz Gadelha

O golpismo das celebridade em Copacabana

Quando se trata de juntar gente para dizer que o povo comparece a seus eventos, a esquerda reúne companheiros de viagem, pilotos de vôo pelos ares da utopia, figurinhas carimbadas, cantores, atores, músicos e promovem grande espetáculo. Alguma conta no exterior paga os cachês ou o crédito fica gerado e certificado para futuros resgates.

Então, pequenas multidões são atraídas pela oportunidade de um show que seria totalmente grátis não fora o dever de escutar discursos políticos proferidos por pessoas cujo pouco conhecimento enche a paciência antes de encher uma xícara de cafezinho. Sem artistas e celebridades, vai-se o público. Cria-se, então, um insolúvel mistério: quem é que estava ali, mesmo? A permanência dessa dúvida nos eventos da esquerda é uma clamorosa denúncia do esvaziamento de suas pautas e de sua credibilidade.


A concentração ocorrida em Copacabana neste último domingo reuniu numa dessas aglomerações algo entre 10 mil e 30 mil pessoas. A turma do palanque queria diretas já. Ali estavam, pelo que li, Caetano Veloso, Criolo, Mano Brown, Maria Gadu, Milton Nascimento, Gregório Duvivier, Sophie Charlotte, Daniel Oliveira, Maria Casadeval, Antônio Pitanga, Bete Mendes e Zezé Motta. Não sei se alguém se deixa conduzir pelas posições políticas desse pessoal, mas o evento em si, misturando música, dança de rua e diretas já, como afirmei antes, tem o peso político de uma rolha.

Por outro lado, os oradores, ao apelarem para a ruptura com a ordem constitucional, alegam uma suposta ilegitimidade do Congresso para cumprir o preceito que determina eleição indireta se a vacância ocorrer depois da primeira metade do mandato presidencial. Ora, a legitimidade do Congresso só foi contestada pelo PT após o impeachment da presidente Dilma; e se ele é ilegítimo para cumprir o preceito constitucional e promover a eleição indireta, onde irá buscar legitimidade para alterar a Constituição e romper a periodicidade das eleições presidenciais?

Sublinhe-se: foi para evitar casuísmos golpistas, voltados a atender interesses de oportunistas como os que recheavam o palanque de Copacabana, que os constituintes de 1988 definiram a periodicidade das eleições como cláusula pétrea da Carta maior da República.

Mas não podemos querer que a turma daquele palanque entenda e se conforme com isso, não é mesmo?

Percival Puggina