domingo, 24 de dezembro de 2023

Pensamento do Dia

 


'Feliz Natal'

O filme “Feliz Natal” (Joyeux Noel), de Christian Carion, baseado em fatos reais, traz-nos a história do Natal no front de 1914 da Primeira Guerra Mundial, onde soldados da Alemanha, Escócia e França se confraternizaram, espontaneamente, em histórico episódio inédito.

A Primeira Guerra Mundial, a guerra das trincheiras, foi um dos mais terríveis episódios da história humana, em guerra onde morreram mais de 10 milhões de soldados, mais 30 milhões de Gripe Espanhola, no desolamento que se seguiu. Ao longo da guerra, foram construídas mais de 50 mil km de trincheiras. Em Verdun, onde se visitar leva à lágrimas de sangue sobre o sangue derramado na terra do sangue, morreram mais de 1 milhão soldados ao longo de um ano, em uma das piores batalhas já vistas pela humanidade. Padecemos, pobres de carne de que fomos feitos. Mortos sobre mortos, farpas sobre farpas, no devaneio da ilucidez.


No filme, um tenor da Ópera de Berlim vai ao front para entoar para os seus soldados, no que se contrapõe musicalmente a um Padre também tenor, escocês, no que se levantam, seguidos por outros soldados. Na fronteira do combate triplo da ignomínia, alemães, franceses e escoceses, se confraternizando, dialogando, experimentando comidas típicas, e disputando um improvisado campeonato de futebol. Como disse Eric Hartmann, piloto de guerra mais condecorado na Segunda Guerra pela Alemanha, pacifista na sequência do ocorrido, “a guerra é o lugar onde os jovens, sem se conhecer e sem se odiar, se matam, pela decisão dos mais velhos, que se conhecem e se odeiam, sem se matar”. No final, as tropas foram punidas, pelo exemplo que deram de bondade, em prol de suas “nacionalidades”.

Que o Natal reluza sobre nós e nossos lares, na bondade extrema que acometeu a esses soldados, destinados à luta, mas humanos em sua humanidade, como no espírito possível de todos nós.

A fome em Gaza: um forno de barro, meio pão por dia, comida fora do prazo

A crise de fome na Faixa de Gaza tornou-se visível nas imagens de crianças com tachos ou recipientes em filas esperando conseguir uma refeição quente de um centro de ajuda – é uma crise sem precedentes em qualquer outra guerra entre Israel e o Hamas, sublinha o diário israelita Haaretz.

“Consigo um pão [árabe] ou meio durante o dia”, dizia num vídeo Muhammad al-Khaldi, uma criança que está com a família no Sul, depois da ordem de evacuação do Norte dada pelas forças israelitas. “Digo à minha mãe que tenho fome e ela diz-me que não há comida”, cita o Haaretz. “É assim que lidamos com isto, dia após dia.”

Uma mulher que vivia na Cidade de Gaza e agora está em Rafah contou ao Haaretz que tem dado aos filhos comida fora do prazo. “Podem ficar com diarreia, mas ao menos têm qualquer coisa para comer.”


O Programa Alimentar Mundial diz que entraram no território apenas 10% dos bens alimentares necessários para os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza; a Human Rights Watch acusou Israel de estar a usar a fome como arma de guerra, “bloqueando deliberadamente a entrega de água, comida e combustível, impedindo intencionalmente a assistência humanitária, arrasando aparentemente zonas de agricultura, e privando a população civis de objectos indispensáveis à sua sobrevivência”.

Muitas pessoas têm cozinhado sopas com o que quer que consigam encontrar: há um fenómeno crescente de recolher quaisquer ervas ou plantas que encontrem em zonas que não tenham sido bombardeadas.

Há alguns produtos alimentares à venda mas a maioria das pessoas não conseguem pagar os preços que aumentaram cerca de dez vezes.

Um jornalista palestiniano, Motaz Azaiza, comentava já há semanas na rede social X (antigo Twitter) que em Gaza era mais fácil morrer num ataque do que comprar um quilo de sal. A videógrafa e jornalista Bisan Owda mostrava no Instagram uma imagem de uma laranja com bolor. “Foi o meu pequeno-almoço. Sei que não é bom para a saúde, mas qual é o valor da saúde face a tudo o que enfrentamos?”

“Recuámos várias décadas, fizemos um forno de barro, acendemos o fogo e cozemos o que tínhamos”, contou ao Haaretz Ahmad, que saiu da sua casa na Cidade de Gaza e está actualmente em Khan Younis.

Uma minoria com sorte consegue feijão ou lentilhas, com mais sorte ainda algumas malaguetas (em Gaza o picante tem um lugar especial, o que não acontece na Cisjordânia).

Segundo um relatório sobre o grau de fome em Gaza da iniciativa IPC, 90% das pessoas em Gaza estão a enfrentar fome em “níveis de crise”, passando com frequência um dia sem comer. E 40% destas pessoas estão mesmo em situação de emergência – um grau em que há subnutrição aguda e mortalidade em excesso – e mais de 15% em situação de catástrofe – um grau em que há níveis extremos de subnutrição e mortalidade em excesso. Isto quer dizer que é necessário um aumento urgente da ajuda alimentar a chegar ao território, sob pena de os números aumentarem ainda.

“Nunca vi nada na escala do que está a acontecer em Gaza”, disse Arif Husain, do Programa Alimentar Mundial., citado pela Associated Press. “As pessoas estão muito, muito perto de grandes vagas de doenças porque os seus sistemas imunitários estão muito enfraquecidos por não terem alimento suficiente”, disse.

Se os alimentos são um problema, a água também. Muita da água consumida não está a ser dessalinizada nem tratada, o que traz um risco especial para as crianças, alerta a Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. A falta de água já era uma realidade antes do ataque do Hamas de 7 de Outubro, mas agudizou-se com as restrições às entradas impostas por Israel após o ataque, tal como o fornecimento de energia eléctrica, que passou de pouco a inexistente, e outras restrições existentes já desde que o Hamas tomou o poder no território em 2007.

“O acesso a água é uma questão de vida ou de morte”, disse a directora executiva da Unicef, Catherine Russell, e em Gaza as pessoas estão a ter de beber água com alto teor de sal ou poluída – um factor “dramático” para as crianças, que são mais vulneráveis a doenças devidas à água imprópria para consumo.

Alguma água potável estava a chegar ao território desde terça-feira, quando três centrais de dessalinização construídas pelos Emirados Árabes Unidos do lado egípcio da fronteira em Rafah começaram a funcionar.

A água chega para as necessidades diárias de 300 mil pessoas, longe de suficiente para o mais de um milhão de pessoas deslocadas no Sul, e continua a ter o problema do transporte, mas já permitia a algumas pessoas ter água potável. “Costumávamos trazer água do mar”, contou à Reuters Abu Sleyman, que ao beber a água comentou que esta “sabe a açúcar”, por não ter sal.

O que fizeram com o Natal?

O sino longe toca fino,
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.

As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.

Carlos Drummond de Andrade

O que o Jesus judeu diria sobre a guerra em Israel hoje?

Todo Natal o jornal costuma me pedir para escrever algo sobre o que realmente se sabe sobre a figura emblemática do Jesus judeu, que abriu o caminho ao cristianismo. Isso existiu? Onde nasceu? Em Belém ou Nazaré? É verdade que ele tinha irmãos e irmãs? Ele era casado com Maria Madalena ou não ? É histórico que ele tenha sido crucificado? Os judeus ou os romanos o condenaram? É verdade que ele acabou ressuscitando? E se não tivesse existido?

Este ano, ao escrever esta coluna sobre um novo Natal, que para mim é o 91º da minha vida, ao pensar no que escreveria, não pude esquecer que vamos celebrá-lo no meio do guerra devastadora em Israel, a poucos passos de Belém, onde, segundo a tradição, Jesus nasceu. E a dois passos do Egito, onde, também segundo a tradição, os pais de Jesus, Maria e José tiveram que fugir porque o então rei Herodes queria matar o novo Messias recém-nascido. E por isso ordenou o assassinato de todas as crianças até os quatro anos de idade.


O que me ocorre ao escrever este ano é que esta guerra, com todas as suas interrogações, infinitas interpretações, na busca de quem é mais culpado do que quem, está mais distante do que pregava aquele curioso pregador judeu que revolucionou a história. É difícil entender o Cristianismo sem o Judaísmo. E é difícil entender o que aquele judeu que desafiou o poder de seu tempo, que era a favor da vida e não da morte, pensaria de uma guerra com tanto sangue escorrendo nos chamados “lugares sagrados”.

Num Natal com tantas mortes inocentes de ambos os lados , os cristãos devem ser lembrados que se estas festas evocam alegria e ternura, porque se trata de nascimento e não de morte, entre tantas discussões políticas ou pseudopolíticas, não é possível esquecer qual foi o manifesto de Jesus, as chamadas bem-aventuranças:

“Bem-aventurados os que trabalham pela paz porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados vocês serão quando as pessoas os insultarem, perseguirem e disserem todo tipo de calúnia contra vocês. Bem-aventurados os perseguidos por serem justos.”

Difícil? Sim, eu diria impossível. E, no entanto, não haveria guerras, nem genocídios, nem holocaustos, nem massacres de mulheres e crianças inocentes sem acreditar que a paz é melhor do que a violência e a verdade do que as mentiras.

Nosso mundo continuará a ser um inferno de sangue e dor, de mentiras e injustiças, de guerras malucas geradas nas trevas da ganância e da sede de poder, nas quais os inocentes sempre acabam sendo sacrificados. O fácil é justificá-los. O difícil é gritar, juntos, crentes ou não, que não importam os adjetivos dados às guerras , pois o que nos faz felizes é a vida e não a morte. Ou o que os jovens quixotes das revoluções escreveram nas paredes: “Faça amor, não faça guerra”.

Hoje empobrecemos a língua ao falar de guerras justas ou injustas, de guerras políticas ou religiosas. Como disse um amigo meu: “Vamos parar com as bobagens: guerra é guerra e isso basta”.

Talvez porque esteja convencido, pela experiência de muitos anos vividos, que no fundo do poço escuro de cada um de nós existe uma luz de esperança, que todos preferimos a paz à guerra, a amizade ao ódio, as lágrimas de alegria às de sangue. Atrevo-me a dizer ao meu punhado de leitores e amigos: Feliz Natal de paz!

Nada mais? Sim, nada mais. Ou parece pouco para você?
Juan Arias

Neste Natal, os sinos não tocam em Belém onde nasceu Jesus

Este ano, o Natal não será celebrado em Belém, cidade onde a tradição cristã acredita que nasceu Jesus. É também a terra natal do rei Davi, e o local onde ele foi coroado rei de Israel. Atualmente, Israel controla as entradas e saídas de Belém.

Encravada na Cisjordânia, território palestino, Belém fica a pouca distância da Faixa de Gaza, onde vivem 2,3 milhões de palestinos, ou melhor: viviam até 7 de outubro último, quando o grupo Hamas, que governa a Faixa, invadiu Israel.


O Hamas matou 1.200 pessoas e sequestrou cerca de 220. Para vingar-se, Israel invadiu a Faixa de Gaza e matou pouco mais de 20 mil palestinos até agora. Todos os dias, Israel promete só parar com a guerra depois que destruir o Hamas.

Enquanto não consegue, bombardeia o enclave com toda sorte de bombas pesadas e sem direção, mísseis e tiros de tanque. É o Exército mais poderoso do Oriente Médio, armado pelos Estados Unidos contra uma população desarmada.

Uma população que não tem para onde fugir porque nem Israel e os países árabes lhe oferecem abrigo. Orientada por Israel, parte dela abandonou o Norte da Faixa para escapar dos bombardeios que reduziram Gaza a escombros.

Então, Israel passou a atacar o Sul sob pretexto de que para ali também escaparam os líderes do Hamas. Mulheres e crianças somam 70% dos mortos e feridos na Faixa de Gaza, hoje o lugar mais perigoso do mundo para quem tenta sobreviver.

Dizer que “somos todos culpados” é a mesma coisa que dizer que ninguém é. Israel é o principal culpado por não existir um Estado Palestino. Só por isso, o Hamas venceu as eleições e governa a Faixa de Gaza – ou melhor: governava.

Se o Hamas, um dia, desaparecer, outro grupo surgirá para defender as mesmas ideias. Israel, em 2006, imaginou ter acabado com o Hezbollah, uma organização fundamentalista islâmica xiita sustentada pelo Irã.

O Hezbollah está mais forte, como o Hamas ou seu substituto também ficarão. Ideias com aderência social não morrem. Pesquisas aplicadas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia atestam que o apoio ao Hamas só fez crescer desde outubro.

Dizer “não em meu nome” é a mesma coisa que dizer a Israel que faça o que achar que deve, “mas eu lavo as minhas mãos”. Por mais que lave, elas continuarão sujas. Nada somos até tomarmos uma decisão. À falta de uma, somos cúmplices.

Feliz Natal para os que possam celebrá-lo com suas famílias e amigos em locais acolhedores. Não é o caso de Belém, onde os festejos estão suspensos. Ali, fora orações em voz baixa, poder-se-ia recitar os versos do poeta irlandês W.B. Yeats:

“Espalhei os meus sonhos sob os teus pés; pise com cuidado, porque você pisa nos meus sonhos.”

Ricardo Noblat