quinta-feira, 16 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


A liberdade ‘fake’ e o Marquês de Sade

“Mercadores do caos”. É assim que o primeiro editorial do Estado de ontem qualificou aqueles que difundem mentiras sobre as enchentes no Rio Grande do Sul. O texto vai no ponto: “Bolsonaristas andam espalhando desinformação porque, inimigos da democracia que são, a eles interessa minar a capacidade dos cidadãos de confiar uns nos outros.” Palavras precisas. Justas.

O quadro é alarmante, não só pelas águas que dizimam cidades inteiras, mas também pela propagação industrializada e intencional de desorientação. Com a cidadania submersa, a perversão do fanatismo antidemocrático jorra pelos bueiros. Há mensagens inconcebíveis circulando massivamente. Umas afirmam que não adianta fazer doações porque o governo federal está barrando caminhões que rumam para o Rio Grande do Sul. Falso. Outras sustentam que Exército e os bombeiros negam ajuda aos desabrigados. Invenção dolosa. Os exemplos de má-fé são caudalosos, tóxicos, e, embora sejam desmascarados a toda hora, deixam rastros de devastação moral e cívica.


A produção em larga escala de mais essa leva de fake news é um trabalho de organizações subterrâneas e subaquáticas que operam longe da luz do dia e consomem rios de dinheiro infecto. São usinas superindustriais que geram as falácias aos borbotões e nunca aparecem publicamente – atuam no submundo, clandestinas. Mais que soturnas e esquivas, são usinas invisíveis. Mais do que abjetas, são eficazes. Abastecem caudalosamente as multidões de idiotas inúteis que trabalham de graça, noite e dia, para fazer escoar todas as sandices asfixiantes pelas redes (anti)sociais.

Se as grandes organizações da mentira atuam nas sombras, os operários alienados e alienantes que trabalham para elas como escravos mostram sua cara sorridente. São os tios e tias do Zap, você os conhece. Quando interpelados pelo bom senso do vizinho de condomínio, protegem-se na desculpa de que apenas exercem sua “liberdade de expressão”. Estão errados em tudo, inclusive nisso. Estão errados principalmente nisso.

Em primeiro lugar, as agências camufladas de onde recebem a porcariada que distribuem não têm direito à liberdade de expressão, nem poderiam ter. A liberdade de expressão é um direito da pessoa humana, não de pessoas jurídicas ou de organizações criminosas. O Estado, as empresas e os partidos políticos não têm liberdade de expressão, pois não são pessoas. A liberdade de expressão é um direito humano, um direito de gente de carne e osso, não uma licença econômica ou corporativa.

Portanto, quando um desses grupelhos ilegais ou uma dessas big techs impulsionam falsidades que lesam a saúde pública e a integridade física de milhões de seres humanos, não é de liberdade de expressão que estamos falando, mas de um inaceitável abuso do poder econômico. A finalidade desse tipo de abuso é fazer propaganda do caos e instaurar um ambiente em que “ninguém acredita em mais nada”, como sintetizou Hannah Arendt numa célebre entrevista. Em resumo, não aceitemos mais chamar de “liberdade de expressão” o que não passa de abuso destrutivo do poder econômico.

Isso posto, falemos agora da liberdade das pessoas, as tais idiotas inúteis que se comprazem com a tarefa de disseminar as notícias fraudulentas em troca de nada – ou, melhor dizendo, em troca do gozo imaginário de se olharem no espelho e se chamarem de “patriotas”. As voluntárias do obscurantismo, por certo, contam com o direito de proferir e reproduzir tolices de mau gosto. Sim, elas são livres para pronunciar o impronunciável. Elas só não têm direito de dar seguimento a crimes.

Aí vem o ponto mais embaraçoso. Elas não sabem distinguir uma coisa da outra. A ideia que carregam de liberdade é uma não ideia: elas concebem a liberdade como uma espécie de bocarra, uma porteira aberta nas fronteiras do corpo para dar vazão aos impulsos viscerais, a despeito das convenções e das normas básicas do convívio civilizado. A liberdade seria, enfim, o triunfo do bicho sobre o humano. É como se o sujeito dissesse “eu sou livre para oprimir você e exercer contra você a minha estupidez essencial”.

E qual a origem dessa concepção pulsional de liberdade? Sigo aqui a sugestão do psicanalista Ricardo Goldenberg. Em um breve ensaio, Do cinismo ao descaramento (no livro O MalEstar na Cultura Revisitado, organizado por Lucia Santaella, publicado pela Estação das Letras e Cores), Goldenberg localiza no Marquês de Sade (17401814) fantasia de que a “liberdade individual” incluiria um suposto “direito” de “gozar do próximo sem nenhum entrave” (“gozar”, aqui, é sinônimo de abusar). Em Sade, o sujeito livre é aquele que consegue juntar o pior vício da aristocracia (dispor do corpo do outro como dispõe da terra) ao pior vício da burguesia (explorar energia do outro para acumular dinheiro e prazer). Em suma, o homem livre é amoral, assassino, pedófilo, estuprador e ditador. No meio de tamanha enchente de mentiras, a gente pode acrescentar: e fascista. A liberdade fake, a liberdade sádica, que no fundo é a negação de toda liberdade, está levando o Brasil ao naufrágio total.

O fim do mundo

Nada era mais assustador do que falar naquele assunto. O fim do mundo fazia parte dos medos, na infância, mas contraditoriamente eu gostava de ouvir as histórias. Entre as brincadeiras, havia aquela das contações, eram passatempos como fossem filmes de terror. Os relatos, apocalípticos, nos faziam viajar com os pés em chão firme.

Havia um amigo cuja mãe falava do Velho Testamento em casa e ele, do alto de sua autoridade, nos repetia com os olhos esbugalhados. Dizia que o mundo se acabou com água, da primeira vez, num dilúvio que tomou conta de toda a Terra. E, da próxima, ai de nós, o planeta seria devorado por imensas labaredas. Haveria choro e ranger de dentes.

Tudo seria consumido pelo fogo. Entre apavorado e fascinado por aquelas narrativas, eu rezava minhas ave-marias, que aprendi nas aulas do catecismo, pedindo a Deus para não virar churrasco.

Paulinho recontava o fim do mundo à sua maneira e o medo dele alimentava o nosso, que éramos seus amigos. Não se sabia ao certo como seria aquele incêndio atlântico, onde ele começaria ou quando. Mas com certeza seria algo para além dos limites geográficos de nossa cidade.


Seria um castigo de Deus, segundo ele, devido à maldade das pessoas e, portanto, não era bom questionar as “profecias”. De minha parte eu cuidava de repassar os relatos e claro, ninguém aceitava aquela história de forma tranquila ou desprovido de espantos.

O fato é que o fim do mundo estava próximo e havia o precedente que era comprovado pela Bíblia. No grande dilúvio, salvaram-se somente os que pegaram carona na Arca de Noé, episódio incontestável conhecido pelos adultos e pelas igrejas. Logo, era difícil se contrapor.

Penso agora no fim do mundo, sem aquele sentimento ingênuo e dogmático da infância, quando leio e vejo notícias sobre os desastres no Rio Grande do Sul. As águas do Rio Guaíba avançam sobre cidades e o céu gaúcho dá a entender que pode despencar, a todo instante, num cenário desalentador.

O mundo acabou para muitas pessoas, infelizmente. As enchentes e tempestades são exemplos de fim de mundo, assim como o “final dos tempos” ocorre para várias populações, em diversas regiões, nas secas terríveis que agora são registradas até na Europa; na temperatura da atmosfera que está cada vez mais alta em todo o mundo; nos terremotos, ciclones, furacões e tornados que sacodem os centros urbanos; nos tsunamis, no avanço do mar e nas pandemias; entre outras dores.

Vivemos, em cada episódio, uma terrível sensação de finitude. A cada desastre estamos sendo privados da vida. A crise climática, na verdade, está nos deixando ilhados no mundo que poderia ser mais confortável para todos. Aquele temor do fim do mundo, que tínhamos na infância, é manifestado, na maturidade, com outro sentimento e com o sentido de novas realidades.

A crise do clima é também da existência humana. O fim do mundo, não é mais aquela versão de Paulinho, mas sim causado por um certo projeto de modernidade que é destrutivo demais. Desigual demais, ganancioso demais. As respostas da natureza nos chegam com a mesma intensidade do egoísmo desregrado e deixam claro a quem cabe criar leis, normas técnicas e parâmetros.

Janela do tempo

Cá estamos, no controle a granel de praticamente tudo o que existe sobre a Terra e, mesmo assim, perto de sermos a mais frágil das espécies com que dividimos a existência. À exceção de uma guerra nuclear aniquilante, continuamos a agredir com voracidade suicida o meio ambiente que permite o viver humano. Ao arrepio da ciência e do saber, tudo sofre agressão ininterrupta — oceanos, outras espécies, florestas, rios, pantanais, ecossistemas, biomas, ar, água. Tudo. Na enxurrada, lá se vão muitos sonhos, esperança, planos e expectativas de um amanhã — também essas coisas exigem um planeta habitável.

Uma década atrás o escritor e ambientalista britânico George Monbiot já alertava sobre a degradação do chão em que pisamos — tratamos feito lixo essa estrutura biológica que produz 99% das calorias de que precisamos. Mais recentemente, Monbiot publicou o premiado “Regenesis: feeding the world without devouring the planet”(em tradução livre, “Regênese: alimentando o mundo sem devorar o planeta”), em que destrincha vários caminhos ainda possíveis. Só que a janela do tempo vai se fechando, e preferimos não ver.

Nenhum bípede vive um só dia sem deixar algum impacto no mundo à sua volta, repete à exaustão a grande dama Jane Goodall, do alto de seus 90 anos. Mesmo atos comezinhos, cotidianos, fazem diferença. O que cada um precisa decidir, acrescenta ela, é que tipo de diferença no mundo quer fazer. Para honrar a jornada que nos é dada no chão da Terra, tem pouca serventia a esperança entendida como ato passivo. A esperança real não é almoço grátis — exige ação e comprometimento.

E o Brasil de 2024, tragado pelo desastre ambiental de magnitude acachapante no Sul do país, revela toda sua gama de ações e manifestações contraditórias. Recursos que andavam desperdiçados ou adormecidos avivaram-se, formaram correntes de eficiência, enquanto fabricantes de caos aproveitam para espalhar vilanias. Somente com o baixar das águas, quando o cara a cara com a devastação se fizer mais real, se verá melhor o grau de maturidade da sociedade brasileira. Um fato, contudo, pode ser registrado desde já: sorte do país que tem liberdade de imprensa em tempos horrendos. A cobertura da grande mídia profissional está sendo um dos alicerces nessa dolorosa travessia nacional.

Vem à mente, nesse aparente desarranjo da natureza com seus ocupantes humanos, um trecho lindo do discurso da polonesa Olga Tokarczuk ao receber o Nobel de Literatura em 2019, em tradução de Gabriel Borowski:

— Estamos todos, nós, plantas, animais, objetos, imersos no mesmo espaço regido pelas leis da física. Esse espaço comum tem seu formato, em que essas leis esculpem uma quantidade incontável de formas mútuas e correspondentes. Nosso sistema circulatório se parece com as redes de drenagem, a estrutura de uma folha é semelhante aos sistemas da comunicação humana, o movimento das galáxias faz pensar nos redemoinhos da água que escorre na nossa pia. O desenvolvimento das sociedades lembra as colônias de bactérias. As escalas micro e macro revelam um sistema infinito de semelhanças. O modo como falamos, pensamos e criamos não é nada abstrato e desligado do mundo, mas é antes uma continuação, em outro nível, de seus processos incessantes de transformação.

Na semana passada, um cavalo de ferraduras escorregadias, equilibrado num improvável pedaço de teto ainda não tomado pelas águas, comoveu o mundo. Fotografado do alto, permanecia absurda e teimosamente de pé, imóvel, sozinho, sem chão. Éramos nós que ali estávamos. Para ser salvo, o animal precisou confiar nos humanos que dele se aproximaram — qualquer tentativa de coice ou movimento de defesa poderia lhe ser fatal. Por instinto ou impossibilidade de se mover, ele correu o risco de confiar. E deu-nos de presente um radioso momento de irmandade entre espécies. Quem não se emocionou com a entrega desse animal de 350 quilos aos braços de brigadistas que nunca vira não merece saber o que é ser humano. Nem animal.

Tenho vários pontos onde encostar o susto

Tenho vários pontos de vista. Alguns deles tão altos que nem eu mesmo alcanço. Outros são rasteiros e não me dou ao trabalho de me abaixar para entender. Os que alcanço facilmente não me interessam. Estão batidos e não me dão mais prazer. Dessa maneira, o que me sobra são os pontos de vista dos outros. Alcançando ou não, mudo partes ou tudo. Entendo mal, me divido na opinião final, deixo passar coisas importantes, incorporo corpúsculos digitalizados. Pobres daqueles que escrevem livros e fazem jornais ou televisão querendo passar fora do meu quintal, rente à cerca de ilusões.


Dando voltas em volta da mente, o homem que pensa é sempre contra. Voltaire nunca se vai. Ele sugeriu que o mal maior não é a desigualdade entre as pessoas. A dependência é que é. Somos tão dependentes uns dos outros que, por isso, cultivamos uma ilusão chamada sociedade. Agora sou eu divagando. Não acuse Voltaire, que não pode se defender. Que não depende mais de você. Única forma de não depender de ninguém é morrer. O cultivo da sociedade como algo inerente ao ser humano é uma balela. Quem de sã consciência ficaria dentro de um escritório por oito horas, sem ver a luz do Astro-Rei? Quem deixaria as pernas lindas das mulheres vagando solitárias pelas ruas e shoppings para se enfiar dentro da cabina de um avião a jato e ficar doze horas sobrevoando o Pacífico? Nossa fragilidade como seres é absurda.

Um beija-flor não bate na porta de outro, duas da manhã, para pedir que o escute. Precisa o belo pássaro contar suas mágoas, seus desamores, suas angústias? Um cavalo não se queixa para o outro porque perdeu um páreo pela diferença de um pelo do focinho. O lambe-lambe, os elogios rasgados, a opressão, as ameaças veladas, a indiferença, as fofocas… São apenas armas da nossa fragilidade. São armas mortais que cada um usa para sobreviver como indivíduo. O ‘salvo eu, danem-se os outros’ seria o slogan ideal do ser humano.

Os negacionistas estão matando

Negacionistas não somente rejeitam a verdade. Sequer participam de disputa sincera pela verdade. Não estão interessados. Todo negacionismo é, antes, negação da responsabilidade que a verdade imputa. Estratégia diversionista, esconde causalidades entre ações e consequências. E rejeita a norma jurídica ou moral que sanciona o comportamento danoso.

Não se equiparam aos sofistas ou aos céticos, nem aos ateus ou agnósticos. Estão mais próximos ao que Harry Frankfurt chamou de "bullshiters". Diferente do mentiroso e do hipócrita, que conhecem a verdade e sabem que mentem, o "bullshiter" tem indiferença à verdade e joga outro jogo. Sua empreitada não é intelectual, mas política e sectária.

Muitos negacionismos contaminam a conjuntura brasileira: negacionismo do golpe, da ditadura, do racismo, da homofobia, dos conflitos de interesses da magistocracia, da corrupção e do autoritarismo; dos efeitos da desigualdade e da boçalidade pública; da correlação entre liberação de armas e aumento de homicídios, parecido com o da causalidade entre cigarro e câncer; do dever constitucional de manter o meio ambiente equilibrado e do direito de gerações presentes e futuras.


Não interessa ao negacionista cultivar o hábito intelectual da dúvida nem a atitude política da desconfiança. Quer apenas destruir inimigos com a melhor arma em mãos. É uma técnica sintonizada ao extremismo político, hoje armado de canhões desregulados de desinformação com alta precisão algorítmica. Financiar a fabricação de negacionismo com cara de ciência é comum a indústrias que impactam a saúde e o meio ambiente.

O Rio Grande do Sul sedia nesse momento o encontro do extremismo político com a desigualdade extrema e o evento climático extremo. Ainda não conhecemos todos os danos que uma reunião explosiva desse calibre produz, mas já somos capazes de perceber a multiplicação desnecessária e discriminatória de mortes, sofrimento e empobrecimento material.

Negacionistas têm tentado corroer o esforço da sociedade e do Estado brasileiro em enfrentar as consequências da tragédia. Sua produção torrencial de notícia falsa se dirige a bloquear e deslegitimar iniciativas estatais de ajuda aos atingidos.

Em paralelo, a solidariedade social, traduzida na dedicação voluntária de indivíduos e organizações, em colaboração com esforços públicos, é tumultuada por oportunistas que, mais do que participar, tentam individualizar os méritos do heroísmo coletivo em redes sociais.

Nesse momento, o negacionista luta dois combates: um contra o Estado, cujas instituições precisam continuar a ser evisceradas de capacidade de compreender a estrutura do desastre, de preveni-lo e de responder a ele; outra contra o conhecimento que demonstra, justamente, a relação de causalidade entre o que o negacionista faz e a consequência para a coletividade.

A tragédia precisa ser desvinculada da ação negacionista. O negacionista precisa ser exonerado de sua responsabilidade.

Exemplos recentes da responsabilidade negacionista: o governo do RS ignorou plano de prevenção a desastres desde 2017; flexibilizou regras sobre barragens em áreas de preservação permanente; enfraqueceu o código florestal; o Congresso Nacional vem desmontando a proteção ambiental nos últimos anos e tenta aprovar o "pacote da destruição" com mais de 20 projetos contra o meio ambiente. O governo federal não dá sinais de ter a causa da proteção ambiental como prioridade.

Ainda não conseguimos construir ferramentas de responsabilização de organizações, empresas e atores políticos que, desinteressados nas consequências humanas e econômicas do que fazem, e ansiosos por ganhos de curto prazo, contribuem para o desastre. Nem conseguimos construir instituições que traduzam o compromisso constitucional da precaução em prática real.

Enquanto isso, os negacionistas estão matando e vão continuar a matar.