terça-feira, 23 de agosto de 2022
Nosso Guerra e Paz
A leitura das 1.584 páginas dos três volumes do livro Escravidão, de Laurentino Gomes, passa a sensação das 1.575 páginas (na edição Nova Aguilar) do Guerra e paz, de Tolstói: um gostinho de quero mais. O leitor fica instigado a conhecer mais do tema e a continuar o prazer de ler. No caso de Guerra e paz, o leitor quer conhecer a continuação da história do povo russo. Com o Escravidão, queremos saber sobre a continuação desse sistema, mesmo depois da abolição. O próprio Laurentino Gomes conclui o livro com o capítulo "O dia seguinte", ao Treze de Maio, mostrando a abolição incompleta, 130 anos depois. Ele indica a desigualdade nas condições de vida entre negros e brancos e afirma que "o racismo se mantém como um traço característico da sociedade brasileira".
Fica faltando a história da escravidão no pós-abolição, como se os três volumes não bastassem para contar a saga do escravismo não terminado, cuja maldade tem o porte da barbárie do holocausto, do apartheid, persistindo sob a forma da desigualdade crescente, e durou muito mais e atingiu mais pessoas. A Lei Áurea foi duplamente escamoteada: não ofereceu educação, que não contemplava, e pagou indenização, que prometeu não fazer.
Uma escravidão moderna continuou por 100 anos sob a forma da negação de escola para os descendentes sociais dos escravos. Até o século 21, quando entram em vigor a lei do Piso Nacional Salarial do Professor e a obrigatoriedade de vaga em escola pública dos quatro aos 17 anos, mas mantém o sistema de educação dividido entre "escolas senzala" e "escolas casa grande", conforme a origem social do aluno. Essa desigualdade é uma trincheira do escravismo.
Rui Barbosa decidiu queimar os arquivos da escravidão para impedir que os escravistas e seus descendentes cobrassem e recebessem indenização por causa da desapropriação do direito adquirido de possuir seres humanos que tinham sido comprados. Mas, desde então, cada orçamento público brasileiro é uma transferência de renda para investir em benefício dos descendentes sociais dos donos dos escravos, tirando recursos de projetos sociais que beneficiariam os pobres, descendentes sociais dos escravos, na sua maioria descendentes também raciais.
No ano 134° da Abolição, um único item, secreto (de R$ 20 bilhões) no orçamento, e sem benefícios claros para a vida dos pobres, permite indenizar aos descendentes atuais de seus donos, com R$ 25 mil para cada um dos 800 mil escravos cativos em 1888. Soma-se a isso os subsídios e investimentos para a parcela rica: ao longo de três décadas percebe-se que a indenização continua sendo paga, em montantes muito maiores do que se imaginava à época. Por toda nossa história, a República tira dinheiro que deveria ser investido na educação, saúde, moradia, emprego dos descendentes dos escravos e os utiliza para financiar conforto e patrimônio de classes privilegiadas.
Tolstói não escreveu uma complementação para Guerra e paz, mas esperamos o quarto volume do livro Escravidão: os anos seguintes à Abolição. Enquanto esse novo volume não vem, cada casa brasileira deveria ter os três primeiros para contar a saga escravocrata, que durou quase todo o tempo de nossa história. Nos fazer perceber que quase todos os problemas que atravessamos — uma barreira ao progresso e um lamaçal na política — decorrem daqueles 400 anos que Laurentino nos descreve desde o primeiro leilão na cidade de Lagos, em Portugal. Cada criança deveria aprender a ler conhecendo essa chaga sobre a qual o Brasil foi construído. Esta seria uma maneira de ensinar, pelas informações, passar gosto por ler, graças ao belo texto do livro, e despertar indignação com as maldades sociais que nossa elite política e econômica pratica há séculos. Além disso, usar o livro como um despertador moral e político para querermos fazer o Brasil melhor e mais belo, completando a Abolição.
A alma de um povo é construída por seus escritores, artistas e poetas quando eles são capazes de reunir rigor no conhecimento histórico com genialidade para escrever bem. Ainda mais quando suas informações e textos passam empatia pelo lado injustiçado da população. Escravidão é para ser lido e relido, porque está escrito com a qualificação de um investigador e a maestria de um escritor: consegue o rigor da análise, com a beleza do texto, sem esconder o horror do tema. Com essa saga, o Brasil tem seu Guerra e paz, descrevendo uma realidade que parece ficção, tanto quanto Tolstói escreveu uma ficção que parece realidade.
Fica faltando a história da escravidão no pós-abolição, como se os três volumes não bastassem para contar a saga do escravismo não terminado, cuja maldade tem o porte da barbárie do holocausto, do apartheid, persistindo sob a forma da desigualdade crescente, e durou muito mais e atingiu mais pessoas. A Lei Áurea foi duplamente escamoteada: não ofereceu educação, que não contemplava, e pagou indenização, que prometeu não fazer.
Uma escravidão moderna continuou por 100 anos sob a forma da negação de escola para os descendentes sociais dos escravos. Até o século 21, quando entram em vigor a lei do Piso Nacional Salarial do Professor e a obrigatoriedade de vaga em escola pública dos quatro aos 17 anos, mas mantém o sistema de educação dividido entre "escolas senzala" e "escolas casa grande", conforme a origem social do aluno. Essa desigualdade é uma trincheira do escravismo.
Rui Barbosa decidiu queimar os arquivos da escravidão para impedir que os escravistas e seus descendentes cobrassem e recebessem indenização por causa da desapropriação do direito adquirido de possuir seres humanos que tinham sido comprados. Mas, desde então, cada orçamento público brasileiro é uma transferência de renda para investir em benefício dos descendentes sociais dos donos dos escravos, tirando recursos de projetos sociais que beneficiariam os pobres, descendentes sociais dos escravos, na sua maioria descendentes também raciais.
No ano 134° da Abolição, um único item, secreto (de R$ 20 bilhões) no orçamento, e sem benefícios claros para a vida dos pobres, permite indenizar aos descendentes atuais de seus donos, com R$ 25 mil para cada um dos 800 mil escravos cativos em 1888. Soma-se a isso os subsídios e investimentos para a parcela rica: ao longo de três décadas percebe-se que a indenização continua sendo paga, em montantes muito maiores do que se imaginava à época. Por toda nossa história, a República tira dinheiro que deveria ser investido na educação, saúde, moradia, emprego dos descendentes dos escravos e os utiliza para financiar conforto e patrimônio de classes privilegiadas.
Tolstói não escreveu uma complementação para Guerra e paz, mas esperamos o quarto volume do livro Escravidão: os anos seguintes à Abolição. Enquanto esse novo volume não vem, cada casa brasileira deveria ter os três primeiros para contar a saga escravocrata, que durou quase todo o tempo de nossa história. Nos fazer perceber que quase todos os problemas que atravessamos — uma barreira ao progresso e um lamaçal na política — decorrem daqueles 400 anos que Laurentino nos descreve desde o primeiro leilão na cidade de Lagos, em Portugal. Cada criança deveria aprender a ler conhecendo essa chaga sobre a qual o Brasil foi construído. Esta seria uma maneira de ensinar, pelas informações, passar gosto por ler, graças ao belo texto do livro, e despertar indignação com as maldades sociais que nossa elite política e econômica pratica há séculos. Além disso, usar o livro como um despertador moral e político para querermos fazer o Brasil melhor e mais belo, completando a Abolição.
A alma de um povo é construída por seus escritores, artistas e poetas quando eles são capazes de reunir rigor no conhecimento histórico com genialidade para escrever bem. Ainda mais quando suas informações e textos passam empatia pelo lado injustiçado da população. Escravidão é para ser lido e relido, porque está escrito com a qualificação de um investigador e a maestria de um escritor: consegue o rigor da análise, com a beleza do texto, sem esconder o horror do tema. Com essa saga, o Brasil tem seu Guerra e paz, descrevendo uma realidade que parece ficção, tanto quanto Tolstói escreveu uma ficção que parece realidade.
Nem Bolsonaro gostou do seu desempenho no Jornal Nacional
Era para Bolsonaro ter falado mal de Lula e do PT na entrevista de 40 minutos ao Jornal Nacional. Assim fora orientado por seus assessores de campanha, mas acabou não falando.
Era também para ter falado das realizações do seu governo, mas não o fez pelo menos da forma combinada. Era para ter falado diretamente às mulheres e aos mais pobres, mas calou-se.
E por que? Porque ficou surpreso com as perguntas iniciais dos jornalistas William Bonner e Renata Vasconcelos e passou à defensiva, tendo que dar explicações que não gostaria de dar.
Esteve acuado durante parte da entrevista, atormentado com o risco de soltar os freios de repente, abandonar o figurino que vestia e deixar emergir seus instintos mais primitivos.
A verdade é que ele não gostou do seu desempenho, por mais que tenha ouvido elogios dos que o acompanhavam. E assim, apressou-se a fazer logo uma live sobre o próximo dia 7 de setembro.
Não foi propriamente uma fala, mas uma convocação. Convocou seus eleitores para o desfile militar em Brasília e o comício, que não chamou de comício, a realizar-se em Copacabana, no Rio.
Mencionou algumas das atrações que animarão o comício às portas do Forte de Copacabana: bandas de música do Exército, Marinha e Aeronáutica, paraquedistas e a Esquadrilha da Fumaça.
Se outra vez der ouvidos aos que o cercam, na ocasião não desqualificará as urnas eletrônicas nem o sistema de apuração de votos, muito menos atacará ministros dos tribunais superiores.
Está em modo de enganar o distinto público, embora isso não seja de hoje. Até quando?
Era também para ter falado das realizações do seu governo, mas não o fez pelo menos da forma combinada. Era para ter falado diretamente às mulheres e aos mais pobres, mas calou-se.
E por que? Porque ficou surpreso com as perguntas iniciais dos jornalistas William Bonner e Renata Vasconcelos e passou à defensiva, tendo que dar explicações que não gostaria de dar.
Esteve acuado durante parte da entrevista, atormentado com o risco de soltar os freios de repente, abandonar o figurino que vestia e deixar emergir seus instintos mais primitivos.
A verdade é que ele não gostou do seu desempenho, por mais que tenha ouvido elogios dos que o acompanhavam. E assim, apressou-se a fazer logo uma live sobre o próximo dia 7 de setembro.
Não foi propriamente uma fala, mas uma convocação. Convocou seus eleitores para o desfile militar em Brasília e o comício, que não chamou de comício, a realizar-se em Copacabana, no Rio.
Mencionou algumas das atrações que animarão o comício às portas do Forte de Copacabana: bandas de música do Exército, Marinha e Aeronáutica, paraquedistas e a Esquadrilha da Fumaça.
Se outra vez der ouvidos aos que o cercam, na ocasião não desqualificará as urnas eletrônicas nem o sistema de apuração de votos, muito menos atacará ministros dos tribunais superiores.
Está em modo de enganar o distinto público, embora isso não seja de hoje. Até quando?
Não rolou beijo na Globo
A entrevista de Jair Messias Bolsonaro ao Jornal Nacional (JN) nesta segunda-feira não trouxe novidades. Já conhecíamos as perguntas dos apresentadores e as respostas do presidente. As únicas notícias da noite foram a barba branca de William Bonner e uma batata frita famosa na Zona Norte do Rio.
Houve tempos no Brasil em que a grande pergunta era: vai rolar um beijo gay na novela? Nesta segunda, Bolsonaro ameaçou dar um beijo no Bonner. Mas não deu! Num vídeo publicado antes da entrevista com o presidente, alguém comenta com Bolsonaro: "Olha a cara do presidente preocupado com o JN." Aí Bolsonaro ri e diz que vai dar um beijo no apresentador. Mas quando começou a sabatina no Jornal Nacional, vimos Bolsonaro de cara amarrada.
Bonner, por sua vez, estava alegre, sorridente. Eu não me lembrava de ter visto a barba dele tão branca. Perguntou ao presidente o que ele pretende ao xingar ministros do STF. Bolsonaro logo acusou o apresentador de fake news. Nunca houve xingamento, disse o presidente. Houve sim, replicou Bonner, fazendo uma pausa teatral e, então, dizendo: "O senhor xingou um ministro do Supremo de canalha." Bolsonaro só conseguiu murmurar: "Ele vinha fazendo contra mim…" O sorriso de Bonner sinalizou: pegamos o presidente na mentira, logo na primeira pergunta!
E por aí foi. Os apresentadores lembrando as frases polêmicas do presidente, que todos nos já conhecemos, e Bolsonaro tentando se defender o tempo todo com os mesmos argumentos de sempre.
Bonner lembrou que os apoiadores de Bolsonaro pedem o fechamento do STF e uma intervenção militar "com Bolsonaro". "Liberdade de expressão", respondeu o presidente.
Promover medicamentos ineficazes contra a covid? Bolsonaro: o grande erro foi a grande mídia, como a Globo, desestimular o tratamento precoce, "que é conhecido como liberdade do médico".
Desestimular a vacinação dizendo que quem fosse imunizado viraria jacaré? "Usei uma figura de linguagem, ‘jacaré’."
Mas a covid já é passado. Hoje, a grande pergunta parece ser como melhorar a economia no meio das turbulências globais causadas pela guerra na Ucrânia. Bolsonaro relaxou, pois eis um tema em que ele tem bons argumentos. Comparado com muitos outros países do mundo, o Brasil está indo melhor, economicamente. Graças aos benefícios sociais distribuídos pelo governo, diz.
E as queimadas na Amazônia? Olha lá a França e a Califórnia pegando fogo, aponta o presidente. "No Brasil, infelizmente, não é diferente. Acontece."
Lembrei-me de quando o Museu Nacional pegou fogo, em 2018. A reação de Bolsonaro foi a mesma. "Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre."
Como não faz milagres, não sabia das verdadeiras intenções dos diversos ministros do MEC nomeados por ele. Havia um que até distribuiu dinheiro público através de pastores. Bolsonaro: "As pessoas se revelam quando chegam." Parece que a frase tão querida dele e da sua esposa de que "Deus capacita os escolhidos" só se aplica a ele, Bolsonaro, e não a seus ministros. Azar do Brasil!
"Já acabou?", perguntou Bolsonaro, quando foi anunciado o fim da entrevista. "Eu queria ficar algumas horas com vocês aí", confessou. Mas, aparentemente, seu desejo não foi correspondido por William Bonner e Renata Vasconcellos.
Rechaçado pelos apresentadores globais, o presidente teve de se contentar com uma batata frita, supostamente famosa, na Zona Norte do Rio, dividida com seu filho Flávio Bolsonaro. Para o senador, a noite deve ter sido muito boa. Afinal, nem falaram de rachadinha ou do Queiroz na Globo.
Houve tempos no Brasil em que a grande pergunta era: vai rolar um beijo gay na novela? Nesta segunda, Bolsonaro ameaçou dar um beijo no Bonner. Mas não deu! Num vídeo publicado antes da entrevista com o presidente, alguém comenta com Bolsonaro: "Olha a cara do presidente preocupado com o JN." Aí Bolsonaro ri e diz que vai dar um beijo no apresentador. Mas quando começou a sabatina no Jornal Nacional, vimos Bolsonaro de cara amarrada.
Bonner, por sua vez, estava alegre, sorridente. Eu não me lembrava de ter visto a barba dele tão branca. Perguntou ao presidente o que ele pretende ao xingar ministros do STF. Bolsonaro logo acusou o apresentador de fake news. Nunca houve xingamento, disse o presidente. Houve sim, replicou Bonner, fazendo uma pausa teatral e, então, dizendo: "O senhor xingou um ministro do Supremo de canalha." Bolsonaro só conseguiu murmurar: "Ele vinha fazendo contra mim…" O sorriso de Bonner sinalizou: pegamos o presidente na mentira, logo na primeira pergunta!
E por aí foi. Os apresentadores lembrando as frases polêmicas do presidente, que todos nos já conhecemos, e Bolsonaro tentando se defender o tempo todo com os mesmos argumentos de sempre.
Bonner lembrou que os apoiadores de Bolsonaro pedem o fechamento do STF e uma intervenção militar "com Bolsonaro". "Liberdade de expressão", respondeu o presidente.
Promover medicamentos ineficazes contra a covid? Bolsonaro: o grande erro foi a grande mídia, como a Globo, desestimular o tratamento precoce, "que é conhecido como liberdade do médico".
Desestimular a vacinação dizendo que quem fosse imunizado viraria jacaré? "Usei uma figura de linguagem, ‘jacaré’."
Mas a covid já é passado. Hoje, a grande pergunta parece ser como melhorar a economia no meio das turbulências globais causadas pela guerra na Ucrânia. Bolsonaro relaxou, pois eis um tema em que ele tem bons argumentos. Comparado com muitos outros países do mundo, o Brasil está indo melhor, economicamente. Graças aos benefícios sociais distribuídos pelo governo, diz.
E as queimadas na Amazônia? Olha lá a França e a Califórnia pegando fogo, aponta o presidente. "No Brasil, infelizmente, não é diferente. Acontece."
Lembrei-me de quando o Museu Nacional pegou fogo, em 2018. A reação de Bolsonaro foi a mesma. "Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre."
Como não faz milagres, não sabia das verdadeiras intenções dos diversos ministros do MEC nomeados por ele. Havia um que até distribuiu dinheiro público através de pastores. Bolsonaro: "As pessoas se revelam quando chegam." Parece que a frase tão querida dele e da sua esposa de que "Deus capacita os escolhidos" só se aplica a ele, Bolsonaro, e não a seus ministros. Azar do Brasil!
"Já acabou?", perguntou Bolsonaro, quando foi anunciado o fim da entrevista. "Eu queria ficar algumas horas com vocês aí", confessou. Mas, aparentemente, seu desejo não foi correspondido por William Bonner e Renata Vasconcellos.
Rechaçado pelos apresentadores globais, o presidente teve de se contentar com uma batata frita, supostamente famosa, na Zona Norte do Rio, dividida com seu filho Flávio Bolsonaro. Para o senador, a noite deve ter sido muito boa. Afinal, nem falaram de rachadinha ou do Queiroz na Globo.
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