quarta-feira, 22 de outubro de 2025

A guerra invisível e a nova fronteira da luta humanitária

O mais importante movimento de solidariedade internacional concentrou os olhos sobre Gaza, contudo, a África sangra em silêncio. No coração do continente, o Sudão vive uma das maiores tragédias humanitárias do século — uma guerra civil que já produziu mais de 13 milhões de deslocados, centenas de milhares de mortos e um colapso moral global. Desde abril de 2023, o país é palco de uma disputa brutal entre o Exército Sudanês (SAF) e as Forças de Apoio Rápido (RSF), que transformou cidades inteiras em ruínas.

O Sudão enfrenta uma crise alimentar severa e foi classificado como um dos países com riscos mais elevados. Regiões como Zamzam e El-Fasher foram devastadas pela privação alimentar usada como arma de guerra. 4,7 milhões de crianças e gestantes estão em risco de morte por desnutrição. O alimento é bloqueado, os hospitais destruídos, a ajuda humanitária impedida. O país tornou-se um laboratório de extermínio em que a fome, o estupro e o terror são táticas militares.

Entre 7 e 9 de outubro de 2025, mais de 60 pessoas foram mortas em ataques aéreos sobre El-Fasher, incluindo mulheres e crianças abrigadas em mesquitas. Trata-se de uma guerra total contra a vida – e não apenas contra exércitos. Na maioria das vezes, o genocídio sudanês permanece fora das manchetes e do debate internacional.


O resultado é que o Sudão se tornou a guerra por procuração mais complexa da atualidade. Nenhuma das potências envolvidas luta pela democracia ou pela paz. Todas defendem seus próprios interesses – estratégicos, energéticos, comerciais ou simbólicos. O país é apenas o território onde essas forças se confrontam, e os sudaneses, seus reféns.

Enquanto isso, o Ocidente pratica uma seletividade moral que se repete em todas as guerras do Sul. Os governos que clamam por direitos humanos na Ucrânia e denunciam os horrores em Israel, silenciam diante da África. Condenam a fome palestina, mas ignoram a fome africana. O G7 e a OTAN, que posam de defensores da civilização, financiam as mesmas indústrias bélicas que alimentam os conflitos no continente.

Mais de 30 milhões de pessoas precisam de ajuda imediata, mas menos da metade do plano humanitário da ONU foi financiado em 2025. A omissão não é descuido: é cálculo. O caos interessa. Ele mantém a África fragmentada, dependente e útil como barreira migratória. Cada guerra, cada crise, cada colapso reforça a política de contenção humana que impede milhões de africanos de cruzar o Mediterrâneo. É a nova forma de colonização – um sistema que transforma a miséria em instrumento de controle geopolítico.

A guerra no Sudão é também um espelho de Gaza, de Iêmen, de Congo, de Haiti. Em Gaza, o colonialismo é direto. No Sudão, é travestido de disputa interna. Em ambos, o que impera é a indiferença institucionalizada e a repetição de um padrão racial e histórico de desumanização. O Ocidente só reconhece tragédias quando o sofrimento tem cor e idioma semelhantes aos seus.

O caso sudanês revela algo ainda mais profundo: o capitalismo global não sobrevive sem a barbárie. Ele precisa de guerras periféricas para expandir lucros, de crises para justificar o saque, de catástrofes para legitimar intervenções. O sangue africano é a moeda com que se compra a estabilidade europeia e americana. O ouro e o urânio de Darfur sustentam o brilho das metrópoles e as baterias dos carros elétricos do Norte.

Como já advertia Karl Marx, “o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros”. E como completava Jean-Paul Sartre, “a liberdade de um só não é possível enquanto houver escravos”. A guerra no Sudão é o retrato contemporâneo dessa dialética. Cada criança faminta é o custo oculto da nossa modernidade.

Mas o que fazer diante desse abismo? O primeiro passo é recuperar o sentido revolucionário da autodeterminação dos povos. O direito à soberania não pode continuar sendo privilégio do Norte. A África não é colônia, nem laboratório de diplomacia seletiva. O povo sudanês tem o direito de decidir seu destino sem ser manipulado por alianças regionais ou sanções geopolíticas.

A paz não virá de Washington, Moscou ou Riad. Ela nascerá da organização popular africana e da solidariedade internacionalista. O socialismo, se quiser ser fiel à sua essência humanista, deve reencontrar na África a sua nova fronteira moral. Defender o Sudão é defender o sentido universal da vida. É afirmar que nenhum povo pode ser sacrificado no altar dos interesses econômicos.

Nesse contexto, o Brasil tem uma responsabilidade histórica intransferível. Somos o maior país afrodescendente do mundo, herdeiros diretos das civilizações africanas que nos moldaram. Nossa cultura, nossa língua e nossa espiritualidade nascem da África. O silêncio diante da destruição sudanesa é uma negação da nossa própria identidade.


O Brasil deve propor, no âmbito da ONU e da União Africana, uma Conferência Internacional pela Paz e Autodeterminação Africana, sediada em Salvador (Bahia) – símbolo maior da diáspora negra. Deve liderar um Movimento Sul-Sul de Solidariedade Humanitária, unindo países da América Latina e do continente africano para discutir paz, reconstrução e soberania. Deve criar, em parceria com universidades e organizações afro-brasileiras, um Observatório Permanente de Crises Africanas, capaz de produzir relatórios independentes e pressionar por responsabilização internacional.

Essas não são medidas simbólicas: são instrumentos concretos de reconstrução da ética global. O Brasil pode e deve ser a voz dos povos oprimidos, não apenas um espectador nas conferências das potências. Nossa diplomacia deve voltar a falar a língua dos povos – a língua da solidariedade, da igualdade e da dignidade.

A esquerda internacional, os socialistas, os trabalhadores e os movimentos revolucionários precisam compreender que o Sudão é mais do que uma tragédia africana: é uma nova fronteira de mobilização mundial. O que se decide ali não é apenas o destino de um país, mas o futuro do próprio conceito de humanidade. A luta pela África é a continuidade da luta pela Palestina, pela Amazônia, pelo clima, pela dignidade humana. Tudo está ligado pela mesma lógica de exploração e de resistência.

O genocídio sudanês é a prova de que o capitalismo em colapso precisa destruir vidas para continuar existindo. A resposta só pode vir de uma reorganização global dos povos – um novo internacionalismo ético, solidário e revolucionário. Um movimento capaz de unir trabalhadores, intelectuais, mulheres, negros, indígenas, estudantes e camponeses em torno de uma bandeira única: a defesa incondicional da vida contra a economia da morte.

Vivemos o tempo da urgência moral. A tecnologia avança, mas a consciência recua. A humanidade multiplica satélites, mas não consegue impedir que uma criança morra de fome em Darfur. O problema não é técnico; é político. E toda omissão é uma forma de cumplicidade.

Por isso, é hora de romper o silêncio. De transformar a solidariedade em organização e a indignação em política.

Porque a paz na África não é apenas uma causa regional.

É o começo da paz no mundo.

Concentração inédita cria risco de estouro da bolha da IA

Existe uma bolha da inteligência artificial? Esse é um debate que vem consumindo os círculos no entorno do Vale do Silício há pouco mais de um mês. O anúncio de uma operação casada de Nvidia, Oracle e OpenAI acelerou a preocupação. Afinal, existem vários indícios cada vez mais fortes de que a economia americana se meteu num lugar inédito. O primeiro começa com as magnificent seven — as sete magníficas, companhias que ocupam as sete primeiras colocações na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE) em valor de mercado. Por ordem: Nvidia, Microsoft, Apple, Google, Amazon, Meta e Tesla.

Em conjunto, as sete representam quase 35% do índice S&P 500, que reúne as 500 maiores companhias com capital aberto na NYSE e na Nasdaq. Tamanha concentração já ocorreu de forma similar no passado, mas nunca deste jeito. Por uns meses, em 1964, as sete maiores chegaram a valer perto de 30% do total. Entre 1973 e 1974, algo similar aconteceu. Mas não só representavam parte um tanto menor do conjunto, como havia uma diferença crucial. Nos anos 1960, naquele punhado de empresas, havia uma grande companhia telefônica, automobilísticas, petroleiras e até a IBM. Na década seguinte, a lista incluía ainda bancos e a GE. As sete pertenciam a muitos setores distintos. A ramos diferentes. Se houvesse uma crise do petróleo, como aliás houve, isso até aumentava o consumo de telefone. A ação de uma cai, a outra sobe.


Não foi só isso que mudou. Empresas que valiam muito, mas muito mesmo, no mercado americano ou mundial, chegavam a algo na casa dos US$ 200 bilhões. A Nvidia vale mais de US$ 4 trilhões. Microsoft e Apple estão possivelmente a semanas de cruzar essa linha. Mesmo corrigindo pela inflação, os números simplesmente não são comparáveis. Nem sequer cabem na mesma régua, tamanha a distância. E algo mais torna a preocupação maior. Os fundos com as aposentadorias dos americanos de classe média vêm sendo transferidos para a Bolsa cada vez mais nas últimas décadas. É a maior economia do mundo, portanto, com o maior volume de dinheiro mensalmente deslocado para guardar planejando auferir renda na velhice, dada a concentração. Quase todo esse dinheiro tem ido para comprar papéis das sete magníficas.

O apelido que o conjunto ganhou tem um trocadilho que, em português, se perde. Trata-se do nome original do filme “Sete homens e um destino”, adaptação americana, como western, de “Os sete samurais”, de Akira Kurosawa — por sua vez, versão japonesa de “Sete contra Tebas”, peça do teatro ateniense clássico. O mundo dá voltas.

E a preocupação aumenta. A Nvidia tem entre seus maiores clientes as grandes companhias de nuvem, que adquirem os chips de IA. São Microsoft, Google, Amazon e Oracle. A mesma Nvidia investiu US$ 100 bilhões na OpenAI. A OpenAI tem um contrato com a Microsoft e outro com a Oracle para rodar seus modelos de inteligência artificial na nuvem. Nuvem que depende de chips Nvidia. Ora, a mesma Nvidia também investiu na Anthropic, concorrente da OpenAI — que roda seus modelos nas nuvens de Amazon, Google e, mais recentemente, Microsoft. Se estas duas, OpenAI e Anthropic, não estão entre as sete, é por uma única razão. Não abriram capital. São empresas fechadas. Mas as sete grandes estão entre suas principais acionistas.

O dinheiro é circular. Entra numa e vai para a outra. A conta circular, feita pela McKinsey, funciona assim: ao todo, 60% do montante do dinheiro do negócio da IA vai para chips e nuvem. É quanto das fortunas investidas sai do cofre de uma, entra na outra, e volta para a primeira. Outros 25% são gastos em energia, escorrendo para outro setor da economia. Ponha-se, ainda, uns 15% do investimento em construção civil. Aço, concreto, cabos, operários.

Não é pouco dinheiro. O fato de a economia americana não estar em recessão, apesar das tarifas impostas ao mundo pelo governo Trump, é atribuído à única coisa que cresce como se não houvesse possibilidade de fim para construção de riqueza baseada numa única ideia: inteligência artificial. Nunca, na história do capitalismo, um único setor da economia gerou tanta riqueza tão rápido. E fez isso sem mostrar objetivamente como aumentar a produção usando o que vende. Não é um detalhe pequeno. IAs já poupam dinheiro em muitas empresas. Há estudos mostrando isso. É só que a conta da economia ainda é uma fração do que se investe.

Como o crescimento é num único setor muito estreito, baseado numa única inovação, basta uma das sete grandes sofrer uma crise que o risco de contágio é grande. Bum! Estoura a bolha.

Uma voz do Brasil

A voz anônima de uma atendente de restaurante chegou aos ouvidos de Caetano Veloso. “A vida é amiga da arte”, cantava a senhora ao microfone para uma sala quase vazia, com uma toca de plástico sobre a cabeça. “É a parte que o sol me ensinou”.

A imagem da improvável e fascinante cantora circulou pelas redes sociais, captada por alguém que ainda fez troça de sua idade – a “vovozinha do restaurante”. Mas conquistou tantos corações que chegou ao autor daquela canção, Força Estranha.

Deitado na cama, com o celular nas mãos, Caetano se emocionou. “Ela canta lindo”, disse ele. “É a mesma canção que cantei com meus filhos na televisão”.

Pouca gente saberá, por enquanto, quem é a cantora. Nem onde fica o restaurante, onde já não havia quase ninguém quando ela começou a cantar. Mas não importa. Ela mostrou ali, naquela rara simplicidade, como bate hoje o coração do Brasil.


Um Brasil que anda esquecido de si mesmo. Que se deixou mergulhar em brigas de egos, disputas políticas e guerras ideológicas que parecem ter saído do túnel do tempo.

Talvez de um século atrás, quando os nazistas começaram por atacar os artistas e acabaram levando o mundo inteiro a uma grande guerra.

Naquela Alemanha de antes de Hitler, Berlim era uma espécie de Nova York, que atraía artistas e intelectuais de todo o mundo. O cinema era revolucionário, a música inovadora, a arquitetura e a arte se uniram para criar o movimento Bauhaus.

Tudo foi proibido depois que os nazistas chegaram ao poder. Nazistas que inspiraram o famoso discurso do primeiro responsável pela cultura no governo de Jair Bolsonaro.

Aqueles quatro anos foram um tempo de ataque aos artistas. Na visão dos mais fiéis bolsonaristas, todos eram sanguessugas patrocinados pela Lei Rouanet. Embora os protegidos cantores sertanejos tenham feito fortunas com shows pagos por prefeituras alinhadas com a direita.

A senhorinha do restaurante não ganhou nada ao cantar. Talvez venha a ficar famosa e apareça na televisão. Mas também isso não importa. O que importa é o que ela tem por dentro e canta, mesmo que para ninguém.

Não terá sido aleatória a escolha da canção. “Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos”, escreveu Caetano. “Estive no fundo de cada vontade encoberta. E a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol”.

No horizonte da política a imagem é outra. As grandes certezas imutáveis dividiram as pessoas, os amigos, as famílias. E até hoje há gente que aposta na radicalização, como a abrir caminho a uma instabilidade que soe como convite ao autoritarismo.

Nada disso parece mesmo valer um caminho sob o sol. O Brasil está povoado de pessoas simples como aquela cantora, com muita sensibilidade e vontade de viver em paz, em um país que busque reduzir a pobreza, a desigualdade e a violência.

É para toda essa gente que os futuros candidatos a presidente devem um novo projeto. Algo mais do que um necessário projeto nacional de desenvolvimento, que permita mais oportunidades a todos e proteção social a quem mais precisa.

Esse projeto também deve incluir a busca de uma nova identidade brasileira, para além da guerra ideológica que ainda ameaça contaminar as eleições de 2026.

O Brasil pode vir a se mostrar a si mesmo a ao mundo como um país que une a liberdade à busca do desenvolvimento, à proteção de sua natureza, ao combate à desigualdade e ao estímulo a suas mais diversas culturas.

Para que muitas outras senhorinhas possam soltar sua voz tamanha.