O Sudão enfrenta uma crise alimentar severa e foi classificado como um dos países com riscos mais elevados. Regiões como Zamzam e El-Fasher foram devastadas pela privação alimentar usada como arma de guerra. 4,7 milhões de crianças e gestantes estão em risco de morte por desnutrição. O alimento é bloqueado, os hospitais destruídos, a ajuda humanitária impedida. O país tornou-se um laboratório de extermínio em que a fome, o estupro e o terror são táticas militares.
Entre 7 e 9 de outubro de 2025, mais de 60 pessoas foram mortas em ataques aéreos sobre El-Fasher, incluindo mulheres e crianças abrigadas em mesquitas. Trata-se de uma guerra total contra a vida – e não apenas contra exércitos. Na maioria das vezes, o genocídio sudanês permanece fora das manchetes e do debate internacional.
O resultado é que o Sudão se tornou a guerra por procuração mais complexa da atualidade. Nenhuma das potências envolvidas luta pela democracia ou pela paz. Todas defendem seus próprios interesses – estratégicos, energéticos, comerciais ou simbólicos. O país é apenas o território onde essas forças se confrontam, e os sudaneses, seus reféns.
Enquanto isso, o Ocidente pratica uma seletividade moral que se repete em todas as guerras do Sul. Os governos que clamam por direitos humanos na Ucrânia e denunciam os horrores em Israel, silenciam diante da África. Condenam a fome palestina, mas ignoram a fome africana. O G7 e a OTAN, que posam de defensores da civilização, financiam as mesmas indústrias bélicas que alimentam os conflitos no continente.
Mais de 30 milhões de pessoas precisam de ajuda imediata, mas menos da metade do plano humanitário da ONU foi financiado em 2025. A omissão não é descuido: é cálculo. O caos interessa. Ele mantém a África fragmentada, dependente e útil como barreira migratória. Cada guerra, cada crise, cada colapso reforça a política de contenção humana que impede milhões de africanos de cruzar o Mediterrâneo. É a nova forma de colonização – um sistema que transforma a miséria em instrumento de controle geopolítico.
A guerra no Sudão é também um espelho de Gaza, de Iêmen, de Congo, de Haiti. Em Gaza, o colonialismo é direto. No Sudão, é travestido de disputa interna. Em ambos, o que impera é a indiferença institucionalizada e a repetição de um padrão racial e histórico de desumanização. O Ocidente só reconhece tragédias quando o sofrimento tem cor e idioma semelhantes aos seus.
O caso sudanês revela algo ainda mais profundo: o capitalismo global não sobrevive sem a barbárie. Ele precisa de guerras periféricas para expandir lucros, de crises para justificar o saque, de catástrofes para legitimar intervenções. O sangue africano é a moeda com que se compra a estabilidade europeia e americana. O ouro e o urânio de Darfur sustentam o brilho das metrópoles e as baterias dos carros elétricos do Norte.
Como já advertia Karl Marx, “o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros”. E como completava Jean-Paul Sartre, “a liberdade de um só não é possível enquanto houver escravos”. A guerra no Sudão é o retrato contemporâneo dessa dialética. Cada criança faminta é o custo oculto da nossa modernidade.
Mas o que fazer diante desse abismo? O primeiro passo é recuperar o sentido revolucionário da autodeterminação dos povos. O direito à soberania não pode continuar sendo privilégio do Norte. A África não é colônia, nem laboratório de diplomacia seletiva. O povo sudanês tem o direito de decidir seu destino sem ser manipulado por alianças regionais ou sanções geopolíticas.
A paz não virá de Washington, Moscou ou Riad. Ela nascerá da organização popular africana e da solidariedade internacionalista. O socialismo, se quiser ser fiel à sua essência humanista, deve reencontrar na África a sua nova fronteira moral. Defender o Sudão é defender o sentido universal da vida. É afirmar que nenhum povo pode ser sacrificado no altar dos interesses econômicos.
Nesse contexto, o Brasil tem uma responsabilidade histórica intransferível. Somos o maior país afrodescendente do mundo, herdeiros diretos das civilizações africanas que nos moldaram. Nossa cultura, nossa língua e nossa espiritualidade nascem da África. O silêncio diante da destruição sudanesa é uma negação da nossa própria identidade.
O Brasil deve propor, no âmbito da ONU e da União Africana, uma Conferência Internacional pela Paz e Autodeterminação Africana, sediada em Salvador (Bahia) – símbolo maior da diáspora negra. Deve liderar um Movimento Sul-Sul de Solidariedade Humanitária, unindo países da América Latina e do continente africano para discutir paz, reconstrução e soberania. Deve criar, em parceria com universidades e organizações afro-brasileiras, um Observatório Permanente de Crises Africanas, capaz de produzir relatórios independentes e pressionar por responsabilização internacional.
Essas não são medidas simbólicas: são instrumentos concretos de reconstrução da ética global. O Brasil pode e deve ser a voz dos povos oprimidos, não apenas um espectador nas conferências das potências. Nossa diplomacia deve voltar a falar a língua dos povos – a língua da solidariedade, da igualdade e da dignidade.
A esquerda internacional, os socialistas, os trabalhadores e os movimentos revolucionários precisam compreender que o Sudão é mais do que uma tragédia africana: é uma nova fronteira de mobilização mundial. O que se decide ali não é apenas o destino de um país, mas o futuro do próprio conceito de humanidade. A luta pela África é a continuidade da luta pela Palestina, pela Amazônia, pelo clima, pela dignidade humana. Tudo está ligado pela mesma lógica de exploração e de resistência.
O genocídio sudanês é a prova de que o capitalismo em colapso precisa destruir vidas para continuar existindo. A resposta só pode vir de uma reorganização global dos povos – um novo internacionalismo ético, solidário e revolucionário. Um movimento capaz de unir trabalhadores, intelectuais, mulheres, negros, indígenas, estudantes e camponeses em torno de uma bandeira única: a defesa incondicional da vida contra a economia da morte.
Vivemos o tempo da urgência moral. A tecnologia avança, mas a consciência recua. A humanidade multiplica satélites, mas não consegue impedir que uma criança morra de fome em Darfur. O problema não é técnico; é político. E toda omissão é uma forma de cumplicidade.
Por isso, é hora de romper o silêncio. De transformar a solidariedade em organização e a indignação em política.
Porque a paz na África não é apenas uma causa regional.
É o começo da paz no mundo.


