quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Bolsonarismo e lava-jatismo

Quando o então juiz, Sergio Moro, foi convidado para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, houve quem acreditasse que ele seria aquele capaz de colocar freios aos notórios ímpetos autoritários do presidente eleito. Moro era visto por esses otimistas como possível bastião do estado de direito num governo cuja liderança principal nunca lhe demonstrara apreço. O curioso otimismo talvez se justificasse se fosse Moro, ele mesmo, em sua carreira de magistrado, referência para a defesa do império da lei, dos direitos individuais e do devido processo legal. Contudo, quando se considera o que foi a Operação Lava-Jato, não é esse o quadro.

Conduções coercitivas a rodo, de pessoas que sequer sabiam que deveriam depor e, logo, nunca se negaram a fazê-lo; prisões preventivas a perder de vista, até que os presos, ainda não condenados, nem de alta periculosidade, decidissem confessar ou delatar algo; aceleração considerável de processos de determinados réus; condução das audiências de forma a intimidar os advogados de defesa; divulgação politicamente oportuna de informações relativas a processos - como a delação de Antonio Palocci, às vésperas do primeiro turno de 2018; grampos em escritório de advogados do réu; e, por último, mas não menos importante, o vazamento de um grampo telefônico tomado em momento não autorizado pelo próprio juiz, envolvendo autoridade fora do alcance de sua jurisdição - no caso, a presidente da República.

Algo foi esquecido? Provavelmente sim. Porém, tudo já era conhecido previamente ao anúncio do convite para o ministério e, portanto, antes também das revelações da Vaza-Jato pelo “The Intercept”, que demonstraram existir conluio do juiz com procuradores - estes últimos, sempre bom lembrar, parte do processo, não seu árbitro.

A ilusão de que Moro pudesse ser o dique às tendências autoritárias de Bolsonaro decorre da normalização do arbítrio na Lava-Jato, em nome do combate inclemente à chaga da corrupção. Ela explica a leniência de cortes superiores com excessos cometidos pela operação, como ficou claro na decisão do TRF-4 sobre abusos do juiz que a chefiava, em especial o vazamento do telefonema presidencial, irregularmente captado.

Para justificar a não punição de Moro por seus abusos, afirmou o desembargador relator do caso: “É sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada operação ‘Lava-Jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no Direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”. Ainda complementou: “a ameaça permanente à continuidade das investigações da operação ‘Lava-Jato’, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional (...) as investigações e processos criminais da chamada operação ‘Lava-Jato’ constituem caso inédito, trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”.

Trocando em miúdos: o ineditismo da situação permite uma justiça de exceção. Ocorre que a Operação Lava-Jato, que perdura por seis anos, rotinizou a exceção, normalizando-a. Moro e seus companheiros no Ministério Público foram artífices dessa normalização, coonestados pelo restante da hierarquia judicial, sob pressão da empolgação pública, do cansaço em relação à corrupção e do apoio acrítico, apaixonado ou mesmo cínico de segmentos importantes da imprensa. A normalização do Estado de Exceção, contudo, tem nome: chama-se ditadura.

Portanto, como esperar do heroico propulsor do Estado de Exceção judicial no país que se transformasse subitamente em freio limitador de um presidente de vocação autoritária? Seria de se supor, na verdade, exatamente o oposto: que Moro se convertesse naquele capaz de dar forma jurídica ao autoritarismo bolsonarista, desenhando seus contornos legais.

O pacote anticrime, consideravelmente corrigido pelo Congresso - mas que continha na versão originária, proposta pelo ministro, algo como o excludente de ilicitude de assassinatos cometidos sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” - é um exemplo de como dar forma legal ao arbítrio. Nesse caso, não se trata apenas da perseguição a corruptos e criminosos do colarinho branco, supostamente alvos preferenciais de Moro, mas de ações que dão ao Brasil a liderança mundial da letalidade policial, preferencialmente de jovens pobres e negros - sob elogios da família Bolsonaro e silêncio do ministro.

Essa convergência de propósitos é visível não apenas na lealdade de Moro ao projeto bolsonarista, antecipada por suas ações como juiz e pelo apoio público de sua esposa ao candidato de extrema direita na eleição presidencial. Ela se nota também na mistura de lavajatismo e bolsonarismo nos movimentos de base da nova direita extremista (como o movimento Nas Ruas); na ideia de que, em nome da “justiça”, o respeito a direitos fundamentais e ao devido processo é “mi-mi-mi”; na tentativa de criminalizar a imprensa, que revela impropriedades da atuação de agentes “da lei”; e na acusação a críticos e opositores de cumplicidade com malfeitorias.

Assim, a disputa intestina, entre Moro e Bolsonaro, não contrapõe concepções políticas significativamente distintas. Ambos têm estilos pessoais diferentes e conseguem apelar a públicos que se sobrepõem considerável, mas não completamente. A maior discrição e polidez do ex-magistrado, se lhe tira o carisma por um lado, amplia seu alcance por outro. Não ter vínculos obscuros com milicianos e que tais também é vantagem, pois lhe reduz as vulnerabilidades. Não à toa segue mais popular do que o chefe e com boa chance de lhe dar uma rasteira se for expelido. Por isso mesmo, para além das afinidades de fundo, o mais interessante para Bolsonaro é o manter vinculado a si. Para Moro, pode ser exatamente o oposto, sob o risco de ser tragado pelas confusões de um governo ao qual dá seu respaldo, mas com cujos problemas pode acabar se fundindo.
Cláudio Gonçalves Couto

Poder de sangue

O poder é, antes de mais nada, arbitrário, impaciente e necessariamente cruel
Jean-Clude Carrière, "O círculo dos mentirosos"

O silêncio do clã Bolsonaro

Escolheram o silêncio, estranharam amigos de ambos na Polícia Militar do Rio. Até há pouco não perdiam chance de louvá-lo: um “brilhante oficial”, nas palavras do patriarca Jair, ou, um homem de “excepcional comportamento”, na definição do primogênito Flávio. Viam nele um combatente urbano, treinado no Batalhão de Operações Especiais, hábil no gatilho à distância, sagaz em perseguição camuflada na geografia carioca. 


Os Bolsonaro o reverenciavam. Jair, por exemplo, se apresentou como deputado federal no julgamento do amigo, no outono de 2005. Assistiu à sua condenação (19 anos e 6 meses de prisão) pela execução “de um elemento que, apesar de envolvido com o narcotráfico, foi considerado pela imprensa um simples flanelinha”, como descreveu em discurso de protesto na Câmara. 

Com o filho Flávio, cultuava o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega como símbolo de uma PM cuja prioridade, julgavam, deveria ser a eliminação sumária de suspeitos, “porque vagabundo tem de ser tratado dessa maneira”. Dedicaram-lhe discursos, homenagens e até inscreveram seus parentes na folha salarial do Estado do Rio. 

Estavam numa cruzada por alguma forma de legitimação das milícias. No plenário da Assembleia, o deputado Flávio argumentava: “Será que um vagabundo sendo preso poderá se recuperar? Temos de deixar de ser hipócritas! Não há recuperação mesmo.” E justificava o avanço desses grupos à margem da lei: “Não podemos generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão.”

Era uma visão consensual no clã liderado por Jair. Em 2003, na Câmara, saiu em defesa das execuções feitas por policiais baianos. “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será muito bem-vindo. Se não houver espaço na Bahia, pode ir para o Rio. Terão todo o meu apoio... Meus parabéns!”

Acusado de liderar matadores de aluguel no Rio, o ex-capitão do Bope fluminense acabou morto pelo Bope baiano em Esplanada, cujo cemitério foi erguido por Antônio Conselheiro, líder do fanatismo religioso no sertão do final do século XIX. O clã Bolsonaro preferiu o silêncio.

O que é o 'Cisne Verde', que pode causar a próxima crise financeira mundial

Quando o dinheiro estava correndo fartamente nos corredores de Wall Street e a festa parecia nunca acabar, poucos viram que uma crise financeira brutal estava a caminho. Seus efeitos profundos pelo mundo contam esta história até hoje.

Após a crise de 2008, a urgência em tentar antecipar crises como essa cresceu tanto quanto o medo da reincidência.

Foi nessa época que os economistas começaram a usar o termo "cisne negro" para se referir a eventos fora da curva e que têm um forte impacto negativo ou até catastrófico.

Na semana passada, o Bank for International Settlements (BIS), conhecido como "o banco dos bancos centrais", com sede na Suíça, publicou o livro The green swan (O cisne verde), um estudo de Patrick Bolton, Morgan Despres, Luiz Pereira da Silva, Frédéric Samama e Romain Svartzma.

A partir do cisne negro, os autores criaram a figura do "cisne verde" para se referir à perspectiva de uma crise financeira causada pelas mudanças climáticas.


"Os cisnes verdes são eventos com potencial extremamente perturbador do ponto de vista financeiro", resumiu à BBC News Mundo o brasileiro Luiz Pereira da Silva, vice-diretor geral do BIS e co-autor do estudo.

O economista explica que eventos climáticos extremos, como os recentes incêndios na Austrália ou furacões no Caribe, aumentaram sua frequência e magnitude, o que traz grandes custos financeiros.

Explicam os prejuízos as interrupções na produção, destruição física de fábricas, aumentos repentinos de preços, entre outros. Pessoas, empresas, países e instituições financeiras podem ser afetados.

Recentemente, no Brasil, fortes chuvas com intensidade muito superior à média mensal castigaram os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, causando dezenas de mortes, prejuízos materiais e interrupções de atividades produzindo um efeito negativo ainda não totalmente medido na economia.

"Se houver um efeito cascata na economia, outros setores também sofrerão perdas. Tudo isso pode acabar em uma crise financeira", diz Pereira da Silva.

A esse cenário são adicionados outros riscos que o especialista chama de "transição", altamente perigosos.

Isso ocorre quando, por exemplo, há uma mudança abrupta nos regulamentos, como uma proibição repentina da extração de combustíveis fósseis.

Ou se houver uma mudança inesperada na percepção do mercado e, por exemplo, os proprietários de certos ativos financeiros decidirem repentinamente se livrar deles.

Nesse caso, se produz um efeito em cascata: o pânico afeta outros investidores, que acabam se desfazendo de ativos.

Todos esses riscos estão sendo estudados por bancos centrais e reguladores do sistema financeiro, que buscam uma maneira de antecipar ou se prevenir para a chegada de um cisne verde.
Como enfrentar um cisne verde?

A verdade é que, nos círculos financeiros, não há resposta para essa pergunta.

Os autores do livro explicam que os modelos de previsão do passado não foram projetados para incluir as mudanças climáticas.

É por isso que eles convidam outros pesquisadores a desenvolver novas fórmulas considerando isto.

Os autores também alertam que, se uma crise como a de 2008 acontecer de novo, os bancos centrais não terão mais como auxiliar no resgate mundial como naquele tempo — quando tiveram papel vital reduzindo as taxas de juros a níveis historicamente mínimos.

Acontece que, mais de uma década depois, as taxas continuam baixas, o que deixa pouco espaço de manobra para estimular as economias e impulsionar o crescimento.

O livro também afirma que os níveis mínimos de capital acumulado para enfrentar crises, exigidos pelos regras atuais, não seriam suficientes para mitigar os efeitos de um cisne verde no sistema financeiro.

Outros alertas já vieram também de outras partes do mercado.

Larry Fink, diretor executivo do BlackRock, o maior fundo de gerenciamento de ativos do mundo, alertou em meados de janeiro que as mudanças climáticas estão prestes a desencadear uma grande reforma.

"Estamos à beira de uma mudança fundamental no sistema financeiro", escreveu Fink em sua carta anual aos acionistas.

Ele explica que "as mudanças climáticas se tornaram um fator determinante nas perspectivas de longo prazo das empresas" e prevê que uma realocação significativa de capital ocorrerá "antes do previsto".

"As mudanças climáticas são quase sempre a principal questão que os clientes em todo o mundo levantam para o BlackRock. Da Europa à Austrália, América do Sul, China, Flórida e Oregon, os investidores perguntam como devem modificar seus portfólios de investimentos".

E embora Fink não seja uma autoridade política ou monetária, sua empresa administra ativos avaliados em quase US$ 7 bilhões. Portanto, quando ele fala, é ouvido com atenção.

"Durante os 40 anos de minha carreira em finanças, testemunhei uma série de crises e desafios financeiros: aumento da inflação nos anos 70 e início dos 80; a crise monetária asiática em 1997; a bolha da internet e a crise financeira global", afirmou.

"Mesmo quando esses episódios duraram muitos anos, eles eram todos de um tipo de curto prazo. É diferente com as mudanças climáticas."
Em The green swan, os autores identificam cinco tipos de riscos associados às mudanças climáticas que podem contribuir para uma crise financeira. São eles:
  • Risco do crédito: as mudanças climáticas podem atrapalhar os devedores a honrar seus compromissos. Além disso, a possível depreciação dos ativos utilizados como garantia para os empréstimos também pode contribuir para o aumento dos riscos de crédito.
  • Risco dos mercados: se houver uma mudança acentuada na percepção de rentabilidade pelos investidores, poderá haver vendas rápidas de ativos (liquidações de preços baixos), o que pode desencadear uma crise financeira.
  • Risco de liquidez: ele também pode afetar bancos e instituições financeiras não bancárias. Se estes não conseguirem se refinanciar no curto prazo, isto poderia levar a uma crise maior.
  • Risco operacional: ocorre quando, como resultado de um evento climático extremo, escritórios, redes de computadores ou data centers têm problemas em funcionar.
  • Risco de cobertura: no setor de seguros, uma quantidade maior de sinistros poderia ser acionada, colocando as empresas do ramo em xeque.

Conta outra, doutor

Ganha um fim de semana em Rio das Pedras quem conseguir montar um cenário plausível para a seguinte situação: Setenta policiais participam de uma operação para a captura do “Capitão Adriano”, foragido desde o ano passado. Suspeitando-se que ele se escondeu na chácara do vereador Gilsinho da Dedé (PSL), alguns deles formam um triângulo e cercam a casa. Tratava-se de uma área rural, sem vizinhos.

Segundo a versão da polícia baiana, ratificada pelo governador Wilson Witzel (Harvard Fake ’15), “chegamos ao local do crime para prender mas, infelizmente, o bandido (Medalha Tiradentes ’05) que ali estava não quis se entregar, trocou tiros com a polícia e infelizmente faleceu”.


Conta outra, doutor. Ou, pelo menos, conta essa direito. Adriano da Nóbrega estava cercado. O bordão “trocou tiros” é um recurso gasto. Antes da chegada da polícia, o miliciano já fugira da casa onde estava com a família, na Costa do Sauípe, e do esconderijo onde se abrigara, numa fazenda próxima. Os policiais podiam ficar a quilômetros da casa, e o bandido poderia atirar o quanto quisesse, mas continuaria cercado. Se a intenção fosse capturá-lo vivo, isso seria apenas uma questão de tempo. Três dias depois da operação, as informações divulgadas pelas polícias foram genéricas e insuficientes para se entender o que aconteceu.

Na melhor da hipóteses, os policiais foram incompetentes. Na pior, prevaleceu o protocolo de silêncio seguido pelo ex-PM Fabrício Queiroz, "chevalier servant" da família Bolsonaro e administrador da “rachadinha” de seus gabinetes parlamentares, onde estiveram aninhadas a mãe e a mulher de Adriano. O silêncio de Queiroz é voluntário, o do miliciano foi inevitável. Fica no ar um trecho da fala triunfalista de Witzel, no qual ele disse que a operação “obteve o resultado que se esperava”.

Quando a polícia estava no rastro de Adriano, o ministro Sergio Moro vangloriou-se de ter organizado uma lista dos criminosos mais procurados. Nela estavam 27 bandidos, mas faltava o “Capitão Adriano”. No melhor burocratês, o ministério explicou: “As acusações contra ele não possuem caráter interestadual, requisito essencial para figurar no banco de criminosos de caráter nacional”. Conta outra, doutor. Dois dos listados eram milicianos municipais do Rio de Janeiro. Ademais, a interestadualidade de Adriano foi comprovada na cena de sua morte, com policiais baianos e fluminenses.

O secretário de Segurança do governo petista da Bahia prometeu transparência na investigação da morte do miliciano. Seria uma pena se a cena do tiroteio tiver sido alterada. Numa troca de tiros deveriam existir cápsulas da arma de Adriano. Seria razoável supor que a polícia disparou mais tiros, além dos dois que atingiram o bandido. A cena poderia ter sido filmada, mas isso seria pedir demais, mesmo sabendo-se que se tratava de uma operação de relevância nacional. A captura de Adriano lustraria a polícia e jogaria luz sobre suas conexões. A morte do ex-capitão serviu apenas para aumentar as trevas que protegem essa banda das milícias do Rio.

Faz tempo, uma patrulha do Exército perseguiu outro ex-militar foragido pelo interior da Bahia. Chamava-se Carlos Lamarca. Apesar de ter teatralizado a cena de sua morte, o oficial que comandava a patrulha não falou em troca de tiros. Narrou uma execução.