segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Bandeira do Brasil dos párias

 


O que fazer com o poder

A insistência do presidente Bolsonaro em, no jargão atual, esticar a corda e dobrar acusações e imprecações contra ministros do Supremo Tribunal Federal está lhe valendo o descrédito do eleitorado. A rejeição do presidente escala a níveis absurdos, 53%, o que indica, neste instante, derrota já no primeiro turno da eleição presidencial de 2022.

O chefe do governo, na realidade, deixou de governar. Abdicou de seu mandato. Está em campanha aberta pela reeleição através de insultos e xingamentos de todos os calibres.

É uma situação constrangedora e única na história política recente do Brasil. Houve a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, que preparou a cena com cuidado, mas esqueceu de motivar o povo. Saiu de Brasília e foi para a base aérea em São Paulo na expectativa de ser carregado nos ombros de volta ao Palácio do Planalto. O povo não foi e Jânio embarcou num cargueiro para o exílio na Inglaterra.

Jânio tinha preferência pelos destilados. Recorreu a eles antes de redigir sua curtíssima carta de renúncia. Por essa razão Golbery do Couto e Silva disse, certa feita, que alguém deveria ter prendido Jânio no banheiro do Palácio. Passado o efeito do escocês as coisas poderiam ter tomado outro rumo.

Com Jango foi diferente, mas também peculiar. O protegido de Getúlio Vargas nunca foi comunista, socialista ou algo semelhante. Ele era um fazendeiro que ganhou muito dinheiro com o negócio de engorda do gado, com larga experiência em suas terras no Brasil e nos países vizinhos.

Era um homem rico, com um certo cansaço do poder. Ele não lhe tinha respeito. Gostava das mulheres e dos destilados. Certa feita, em Belém do Pará, o Secretário de Justiça do Estado que tinha assuntos a tratar com ele, o encontrou num bordel.

O único ato político público de que Dona Maria Teresa Goulart participou foi o famoso comício da Central do Brasil, quando o ex-presidente anunciou as reformas de base. Desceu do palanque amparado por seguranças e familiares. Efeitos do destilado.

O presidente da República no Brasil tem poderes demais. Ele pode interferir na vida do cidadão seja por via de impostos, de preços públicos e das leis. A canetada dele ajuda ou atrapalha muita gente.

Os contrapesos judiciais e os de ordem administrativa, como defensores do meio-ambiente, servem para colocar o chefe do governo no trilho constitucional. É contra isso que Bolsonaro se insurge. Ele já disse que não renuncia à sua autoridade. Quer mandar e desmandar.

Mas não é dado a libações alcoólicas. Seu comportamento mercurial deve ter origem em algum problema de raiz, que só a psiquiatria política poderá explicar. Ganhou a eleição, porém não aproveita a enorme avenida de oportunidades à sua frente que aguarda ação propositiva do chefe do governo.

Ele precisa do conflito para manter sua claque unida e garantir espaço no noticiário. As ações do gabinete do ódio, e suas ramificações, que recebem verbas oficiais, lançam mentiras, meias-verdades e invencionices no mesmo estilo dos nazistas na Alemanha dos anos trinta, século passado.

O comportamento irritadiço do presidente e suas declarações desastradas na entrada do Palácio da Alvorada desmancham sua credibilidade, derrubam a bolsa de valores, provocam aumento do dólar e impedem a possibilidade de qualquer diálogo. Na realidade, Bolsonaro produz fofoca, espuma, disse que me disse, mas não governa.

A questão das finanças nacionais tende a se complicar nos próximos tempos. Os anos eleitorais são mágicos, neles os governantes se esmeram em tentar agradar o eleitor. Os déficits brasileiros vão se elevar, os empresários estão com expectativas baixas, o investidor estrangeiro possui opções melhores que o mercado brasileiro.

O ministro Paulo Guedes não conseguiu emplacar seus projetos de desestatização, nem o da reforma tributária, esta, aliás, bombardeada por todos os lados. O preço do botijão de cozinha chegou a 10% do salário-mínimo. O da gasolina está em torno de sete reais o litro.

Os personagens da eleição de 2022 ainda não apareceram. Deverão surgir neste segundo semestre. Há esforço de uma ala do PSDB para lançar o atual governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Mas até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se manifestou a favor de João Doria.

Outro candidato óbvio é Ciro Gomes. Além dos dois há muito anunciados, Lula e Bolsonaro. Este, contudo, ainda não se filiou a nenhum partido. E algumas siglas começam a se afastar dele.

“Todos amam o poder, mesmo que não saibam o que fazer com ele”, disse Benjamin Disreali, inglês esperto e culto, que foi duas vezes, primeiro-ministro de seu país.

A batalha eleitoral num pedaço do Nordeste, onde comer é mais importante do que em quem votar

Com uma carta em punho, Maria de Fátima Pinheiro Evangelista, de 57 anos, está decidida a atravessar o abismo entre a sua vida e as principais bandeiras ideológicas de Jair Bolsonaro para tentar sobreviver à crise brasileira. Da casa alugada e sem reboco em que vive sozinha na periferia de Juazeiro do Norte (Ceará), ela ―que não sabe ler ou o que é comunismo― insistiu para que a única filha escrevesse uma carta ao presidente. Quer alcançar o direito à aposentadoria rural, negada porque não conseguiu comprovar o tempo de serviço na roça, onde trabalha desde os oito anos.

Maria de Fátima até chegou a receber o auxílio emergencial no ano passado e viu a vida melhorar por um tempo. Mas foi cortada do programa depois de ter feito o pedido de aposentadoria e agora vive com pouco mais de 250 reais por mês, que consegue lavando roupas para vizinhos. A energia já não é paga há meses e com o gás tão caro ela precisa cozinhar também à lenha para economizar. A comida vem do que planta e de doações. Por isso, a carta é uma esperança. E ela esgueira o corpo para entregá-la a Bolsonaro, que passava acenando de cima de um carro ao lado de sua casa.



A ida do mandatário brasileiro a Juazeiro do Norte na semana passada tinha como justificativa oficial a inauguração de um conjunto habitacional. Mas também é parte de uma estratégia que busca abocanhar votos em um reduto majoritariamente lulista para as eleições do ano que vem. Em 2018, Bolsonaro conseguiu apenas 24% dos votos no segundo turno na cidade, contra 76% de Fernando Haddad, substituto de Lula, impossibilitado de concorrer àquela eleição. No ano que vem, entretanto, ele deverá disputar contra o próprio ex-presidente, criador do Bolsa Família, programa que tirou milhares da pobreza e ao qual Bolsonaro já chamou de “voto de cabresto”. Uma pesquisa recente do Datafolha aponta que o presidente só tem 16% da preferência do eleitorado na região Nordeste enquanto Lula conta com 64%. O Nordeste também lidera a rejeição a seu Governo, como mostrou pesquisa da Poder Data esta semana, feita entre os dias 16 e 18 de agosto: 72% classificam a gestão Bolsonaro ruim ou péssima, enquanto no Sudeste a rejeição é de 59%, e 58% no Sul e Centro-Oeste. No Norte, o presidente ainda tem preferência, e a rejeição fica em 46% contra 52% de aprovação.

Com sua popularidade derretendo no mercado financeiro e entre filões de eleitores de uma classe média descontente com sua postura antidemocrática e sua gestão da pandemia, Bolsonaro tenta avançar sobre regiões mais carentes, onde os investimentos federais tendem a aparecer mais. Ele sabe que precisa abocanhar parte do eleitorado de Lula —que inclui pessoas beneficiadas pelo auxílio pago durante a pandemia— para tentar estancar a sangria provocada por sua impopularidade crescente, quando o voto antipetista que o ajudou em 2018 também está em fuga. Onde falta o básico como comida e trabalho, não sobra muita margem para a polarização política. E muitos estão dispostos a votar em quem, de fato, indique que pode melhorar suas vidas.

“Se fosse Lula o presidente, eu fazia igual. Bolsonaro se quiser tomar água na minha casa, toma. Acho que presidente é de todo mundo e tem que olhar para quem é pobre”, diz Maria de Fátima, que já foi eleitora do PT e não faz ideia a quem dará seu voto no ano que vem. “Nem sei quem são os candidatos ainda. Espero que Bolsonaro leia minha carta e faça a vida da gente andar. Não sei de quem é a culpa, só sei que está tudo muito difícil”, emenda. Ela não conseguiu entrar no local onde o presidente discursou.

Desde junho do ano passado, Bolsonaro intensificou suas viagens ao Nordeste. Em 2020, foi três vezes mais a cidades da região do que no seu primeiro ano de mandato. Neste ano, já passou por cinco dos nove estados nordestinos. No seu discurso em Juazeiro do Norte, afirmou que o valor investido no auxílio em 2020 equivaleria a 13 anos de Bolsa Família. Admitiu a inflação, que criou alimentos proibitivos como a carne e levou famílias a voltarem a cozinhar à lenha, mas colocou a conta da crise no colo dos governadores. E ainda que tenha defendido suas pautas conservadoras —como o combate ao comunismo e a defesa da família e da propriedade—, se vendeu como um grande finalizador de construções inacabadas pelos Governos anteriores. Tem dito que já inaugurou mais de 4.700 obras desde 2019 na região, entre elas a Transposição do São Francisco, iniciada nos Governos petistas. Para coroar, prometeu prorrogar o auxílio até novembro e explorou o que poderá ser seu grande trunfo eleitoral no ano que vem: um novo e turbinado Bolsa Família, que agora se chamará Auxílio Brasil, apagando o nome que é marca lulista.

“Vou votar em Bolsonaro. Já votei a primeira vez e não acho que ele seja ruim pro comércio. Se não fosse o auxílio, tinha muito mais gente passando fome. Eu mesma parei de trabalhar por meses na pandemia e passei até precisão”, conta a comerciante Maria Lúcia da Silva, de 65 anos, que trabalha há mais de 40 anos em uma lanchonete no mercado público do centro de Juazeiro do Norte.

Ainda que a implantação do auxílio tenha lhe rendido alguma simpatia de parte dos beneficiários, a tarefa de Bolsonaro em conquistar este eleitorado não é fácil diante de tanta gente que se agarra a uma memória de estabilidade econômica e de maior facilidade de consumo durante o Governo Lula, enquanto associa a alta inflação e a redução do poder de compra ao atual presidente.

“Bolsonaro vai prometer um monte de coisa para não sair da Presidência, mas aqui nosso voto é de Lula. Foi ele que deu mesmo oportunidade ao pobre, até pra estudar”, diz Idenilson Lima Monte, de 27 anos. Ele trabalha em um terreno arrendado na zona rural de Juazeiro, onde planta para comer e cuida do gado do patrão. Ao lado dele, a esposa Luana Neves de Oliveira, de 30 anos, afirma, com a filha pequena nos braços, que também pretende votar no petista. “O auxílio do Bolsonaro está só caindo e o preço de tudo subindo. Recebo 250 reais e hoje só dá mesmo para a fralda e o leite da minha filha. Um perfume que a gente precisa não podemos mais comprar”, emenda.
Carne todo dia

Quando Maria Jocimar da Silva recebeu as primeiras parcelas de 1.200 reais do auxílio no ano passado, a família conseguiu comer carne todos os dias e colocar gasolina no carro que usa para levar os vizinhos que precisam ao hospital. Mas o valor do benefício diminuiu para 250 reais em abril deste ano, e o preço de tudo aumentou. O resultado é que um botijão de gás, que custa 130 reais, dura mais de um mês porque há pouca comida para cozinhar, conta o marido dela, o agricultor Francimar de Lima, de 41 anos, morador da Vila Horácio, zona rural de Juazeiro do Norte. “Não tem mais aquela história de comer a hora que quer aqui”, ele diz. “Agradeço a Bolsonaro porque foi uma comida a mais na mesa naquele tempo, mas o que ele deu já tirou com tudo caro. Ele dá com uma mão pra tirar com a outra”, reclama. 

A família de Francimar vive com a ajuda dos programas do Governo, do que planta e da venda do excedente. Ele conta que a energia está atrasada, a plantação neste ano não foi farta e o dilema agora é vender ou não o carro conquistado a duras penas há 10 anos e que agora só roda em situações de máxima emergência. “O que a gente tem neste Governo é dívida. Bolsonaro só quer mudar o nome das coisas que Lula fez, como o Bolsa Família, mas não faz as dele e nem olha pro pobre. Foi Lula que abriu crédito pra eu comprar o carro, e agora não tenho nem o [dinheiro] da gasolina”, queixa-se. “Eu tenho até medo. Bolsonaro diz que vai aumentar o Bolsa Família, mas e se acabar? O que ele diz não se escreve né?”, emenda Maria Jocimar.

Eles esperam que o próximo presidente priorize projetos para o campo e o pequeno agricultor, como linhas de crédito para comprar materiais para a plantação e estímulo à pecuária, o que os permitiria melhorar a renda mensal com seu trabalho. Ambos votaram no petista Fernando Haddad nas últimas eleições e dizem que votarão em Lula ou em quem ele indicar em 2022. “Não queria votar no Lula porque acho que ele não tem mais idade pra cuidar de um Brasil desse jeito que tá não, mas confio nele pelo histórico de tirar gente da pobreza. Bolsonaro acha que agradando os ricos vai ter os pobres com ele”, argumenta Francimar.

Às investidas de Bolsonaro com inaugurações de obras e promessas de aumentar em pelo menos 50% o valor do atual Bolsa Família, Lula reage com a primeira caravana pelo seu berço eleitoral desde que voltou a ser elegível. Sua estratégia neste momento foca na costura de alianças políticas com vistas a 2022 e em encontros com movimentos sociais. O petista está no final da excursão de 11 dias por seis Estados nordestinos e já mudou até seu avatar nas redes sociais para uma imagem em que usa um chapéu de cangaceiro, como quem indica sentir-se em casa. Mas também terá de trabalhar para manter sua ampla vantagem de preferência nas eleições.

“A única certeza que eu tenho é que neste presidente que tá aí [Bolsonaro] eu não voto. Lula hoje está em primeiro lugar, mas ainda não tenho 100% de certeza se vou nele”, diz o agricultor Juarez Timóteo, de 52 anos. Da televisão de sua casa no assentamento 10 de Abril, uma comunidade rural a cerca de 25 quilômetros da cidade de Crato, ele acompanha tudo o que acontece no país pela televisão. Acredita que Bolsonaro virou as costas para os pobres e errou em não comprar vacinas logo para combater a pandemia. Também está aborrecido com o “mau exemplo” provocando aglomeração até na vizinha Juazeiro do Norte e diz morrer de vergonha ao assistir a CPI da Pandemia. “Lula ainda vou observar porque foi bom, mas tem mais gente que vai disputar. Ciro Gomes e Cid também ajudaram muito a gente aqui”, diz.

Foi no Governo Lula que a família de Juarez conseguiu uma cisterna para armazenar água da chuva, a casa e uma moto para tanger o gado. “Com este de agora onde a gente anda é só lamentação. Ele disse que ia ajudar o Nordeste. Em quê? Não vi nada ainda. No lugar de ter gastado estes rios de dinheiro em obra e asfalto, devia comprar vacina para diminuir a crise dessa pandemia. A gente aqui no Brasil tem pressa para outras coisas”, reclama ele, que perdeu dois primos com covid-19.

Na caótica crise brasileira, Juarez não está certo nem se irá mesmo escolher um candidato nas próximas eleições. “Para um presidente ganhar meu voto, eu vou ter que observar muito”, diz, ao lado da filha Vitória, de 18 anos, que vai votar pela primeira vez no ano que vem e diz simpatizar com Bolsonaro. “O Auxílio Emergencial dele foi bom. Não acho Bolsonaro ruim, talvez eu vote nele”, justifica. Com os 1.200 reais do programa no ano passado, a mãe dela, Cirene Ventura dos Santos, realizou o sonho de cimentar todo o piso da casa onde eles moram.

Mas quatro meses depois o valor do benefício caiu para 600 reais e agora está em 250 reais, complicando o orçamento doméstico. Cirene não viu faltar comida à mesa como tantas famílias brasileiras durante a crise, mas precisou voltar a cozinhar à lenha porque já não consegue comprar gás suficiente para usar só o fogão. Ela quer uma estabilidade financeira para realizar um novo sonho, o de construir um alpendre em casa. Acha que o discurso de Bolsonaro está muito distante da realidade deles, com críticas ao comunismo, ataques ao voto eletrônico e defesa às armas. É a única da família que já sabe o número que vai digitar na urna no ano que vem. “Voto 13, em Lula, que no tempo dele a vida era mais fácil. Com fé em Deus o próximo presidente vai ser ele.”

A lenga-lenga da construção de harmonia entre os Poderes é farsa

O descompromisso com a franqueza das atitudes é próprio do político profissional, e uma das suas diferenças essenciais para o militante de ideias que está na política. Mas a aplicação de vícios do profissional a circunstâncias de alta gravidade, como é o atual ataque à ação legítima do Judiciário, alia-se ao intuito antidemocrático e até o estimula. É o que estão mostrando os presidentes do Senado e da Câmara, com o presidente do Supremo como coadjuvante.

A lenga-lenga da construção de harmonia entre os Três Poderes, fantasiada pelos três e por um profissional da politicagem, não é mais do que farsa. Movida a palavrório de lugares-comuns e reuniões para mais entrevistas, resulta em serviço à crescente agitação de Bolsonaro contra as defesas da democracia.


O senador Rodrigo Pacheco, o deputado Arthur Lira, o ministro Luiz Fux e o camaleônico Ciro Nogueira sabem como poucos, de seus postos privilegiados, que Bolsonaro busca a desarmonia, precisa dela como plano de ação e de salvação. Sabem que suas propostas de encontros pacificadores serão respondidas por Bolsonaro, como foram todas até aqui, por imediata saraivada de ameaças aos tribunais superiores e a magistrados.

A insistência na harmonia impossível proporciona a Bolsonaro repetidas oportunidades de mais incitar o bolsonarismo. O estúpido pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, foi feito por Bolsonaro em seguida a Luiz Fux dispor-se a “reavaliar” o cancelamento de um “encontro pacificador dos presidentes”. Quem cancelou, de fato, foi Bolsonaro horas depois de um “diálogo e acordo” com Fux.

Rodrigo Pacheco, eleito com ajuda de Bolsonaro e que age como bolsonarista enrustido, aproveitou depressa o mais recente pretexto de reunião dos Três Poderes e, como interessava a Bolsonaro, abriu caminho no Senado à sabatina de recondução de Augusto Aras como procurador-geral da República. Imoralidade puxa imoralidade. O personagem patético Augusto Aras e quem apoie sua permanência são indignidades iguais.

Em outro plano da mesma área, a formação exibida por Bolsonaro, Pazuello e tantos outros deveria evitar novos espantos com a espécie. É impossível. Portador de constelações nos ombros, mais condecorações que os heróis de várias guerras americanas, o general Braga Netto diz que não houve ditadura no Brasil. Só se pode concluir que o ministro da Defesa não sabe o que é ditadura.

Então o espanto redobra. Quem não sabe o que é ditadura, não sabe o que é democracia. Logo, pende para o mais conveniente à sua formação. E muito se explica ou se confirma aos nossos olhos cansados das constelações e ouvidos ofendidos pelos canhonaços verbais.

Espantos não precisam ser grandes. Fernando Henrique o provou sempre. Houve agora quem tivesse um certo espanto com sua informação: não só apoia João Doria para a Presidência, acha mesmo que “ele representa o futuro”.

Esse espanto é de má vontade. A visão que Fernando Henrique tem da Presidência está exposta em atos e palavras. Estava até renovada no lançamento, que fez, de um animador de auditório para presidente da República. O moço foi mais sensato, preferiu suceder Faustão na Globo a ser sucedâneo de Fernando Henrique no Planalto.

A descrença em resultados ronda a CPI da Covid, por presumida perda de eficácia nas investigações. Há outra maneira de entender seus dias atuais.

A investida de Bolsonaro contra o Supremo, as ações de ministros do Judiciário sobre atitudes de Bolsonaro e mesmo o desastre americano no Afeganistão invadiram áreas do noticiário que a CPI ocupava. Além disso, à medida em que vão completando investigações e descobertas, as CPIs esmorecem a atração e a repercussão.

O serviço já prestado pela CPI é irredutível, inclusive por seu pioneirismo institucional no enfrentamento ao autoritarismo genocida e corrupto. Resultados judiciais e institucionais cabem a outras instâncias. Foi pela CPI que se soube haver intenção na causa da morte prematura e sofrida de centenas de milhares dos pais e filhos, avós e irmãos, amigos e gente em geral deste país. Esse feito da CPI, e dos que a empurraram, já bastaria para justificá-la. A CPI que o presidente do Senado precisou ser arrastado pela ministra Cármen Lúcia, em nome do Supremo, para instalá-la.

Pensamento do Dia

 


Falta uma vacina contra desgoverno e golpismo

Bolsonaro pode perder de Lula e de outros candidatos na próxima eleição, mas ganha do coronavírus em todas as frentes. O discurso golpista, a economia emperrada, o dólar nas alturas, a insegurança política e o atraso no combate à pandemia comprovam o poder devastador do presidente. O País acumulou US$ 47,94 bilhões de superávit comercial de janeiro até o meio de agosto, mas o dólar custava R$ 5,47 no início da manhã da última sexta-feira. Poderia, segundo especialistas, estar sendo comercializado abaixo de R$ 5. Fatores externos, como a economia chinesa, afetam a cotação, mas a instabilidade cambial, no Brasil, resulta principalmente de incertezas internas. A ameaça de impor um calote aos credores de precatórios é apenas um dos muitos fatores de insegurança.

Que o presidente seja mais perigoso que o coronavírus é fato verificado há muito tempo. Bolsonaro continua menosprezando a crise sanitária e pregando maior atenção aos negócios, como se a economia fosse independente da saúde. Economistas e autoridades econômicas de respeito têm opinião muito diferente. Pandemia, variantes do vírus e progresso da imunização têm aparecido com destaque em documentos de instituições financeiras privadas, bancos centrais e entidades multilaterais.


Ao anunciar suas últimas decisões, o Banco Central do Brasil e o Federal Reserve, o BC americano, citaram no início dos comunicados o avanço da vacinação e a insegurança ainda ocasionada pela covid-19. Pandemia tem sido tema frequente de estudos e comentários divulgados no site da Fundação Getúlio Vargas. Essa constância está afinada com padrões globais. Uma força-tarefa para apoiar países em desenvolvimento em assuntos ligados à doença, incluídos financiamento e acesso a recursos médicos, foi criada por quatro grandes instituições, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).

No Brasil, os dirigentes do BC destoam de autoridades federais mais sujeitas à orientação presidencial. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, cada vez mais parecido com seu antecessor, declarou-se contrário ao uso obrigatório de máscara. Já existem, argumentou, muitas leis descumpridas. Mas o detalhe mais significativo, nesse episódio, é outro. Usar máscara, assim como evitar aglomerações, é questão de saúde pública, de interesse coletivo, portanto. Não é problema de interesse privado ou de direito individual, e um médico deve conhecer essa diferença.

Mas é preciso considerar se o reconhecimento desse fato – o interesse coletivo – é compatível com os padrões bolsonarianos. Fiel a esses padrões, o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou o risco de violar uma obrigação legal, o pagamento de salários de servidores, se o governo tiver de liquidar os precatórios sem parcelamento. “Se não descumprirmos uma lei, descumprimos outra”, disse o ministro em audiência no Congresso.

Essa conversa é inaceitável. A alegada surpresa em relação ao valor dos precatórios, próximo de R$ 90 bilhões, mostra despreparo. Essa condição já foi exibida na elaboração da proposta orçamentária para este ano. O projeto foi feito como se a pandemia e seus efeitos econômicos e sociais devessem desaparecer em 31 de dezembro. Uma das consequências foi a suspensão do auxílio emergencial nos primeiros três meses de 2021, um erro desastroso.

A equipe econômica deveria estar preparada para ajustar o próximo Orçamento ao aperto das dívidas judiciais, sem mexer nos gastos obrigatórios. Mas o ministro tem procurado acomodar a política fiscal às conveniências do presidente e às ambições de sua base fisiológica. O primeiro passo deveria ser uma revisão dos gastos com o Centrão e com os interesses eleitorais de Bolsonaro.

O esforço do ministro para atender o chefe, evitar uma violação ostensiva das normas fiscais e negociar, ao mesmo tempo, um arremedo de reforma tributária resulta em enorme confusão. Está tudo errado, a começar pela ideia de improvisar, no meio de uma crise, uma reforma do sistema de impostos, sem distinguir as questões imediatas, como a campanha eleitoral, e os objetivos mais amplos, como a renovação fiscal e o desenvolvimento. Bolsonarismo, enfim, é isso mesmo.

Agindo diretamente ou por meio de servidores, o presidente desarruma a economia, compromete as finanças públicas, assusta o mercado e humilha o vírus. Este contamina, mata e atrapalha os negócios, mas Bolsonaro já foi e ainda pode ir muito além. O presidente retardou a vacinação, combateu o distanciamento social, criticou o uso de máscara, desinformou, defendeu tratamentos errados e estimulou comportamentos de risco. Milhares de mortes poderiam ter sido evitadas, segundo especialistas. Essas façanhas devem aparecer no relatório da CPI da Pandemia, mas a história continua. O discurso golpista denota uma ambição muito maior, indicada pelas ameaças à eleição, pelos ataques ao Judiciário e pelos elogios a um torturador. Nessa história, o vírus está longe de ser o protagonista.

Sobre baionetas e poder civil

Otto von Bismarck (1815-1898), o chanceler de ferro da Alemanha militarista, criador do Segundo Reich alemão, governou seu país voltado para conciliar os interesses da crescente burguesia industrial com o apetite voraz dos grandes proprietários de terra e da elite militar do século XIX. Afirmava que “tudo se pode fazer com baionetas, exceto sentar em cima delas”. Sendo assim, segundo ele, para manterem-se no poder, faz-se necessário às tiranias criar um colchão ideológico visando a legitimar suas ações.

A ideologia é um sistema discursivo com o qual a classe dominante, por meio do Estado, aquele poder coercitivo separado da sociedade, mascara tanto a divisão da sociedade quanto o somatório de privilégios obtido pela classe dominante devido aos movimentos de ocultação e de legitimação desta mesma divisão.

As ideologias querem substituir a verdade de fato pela certeza aparente de uma falsa consciência a qual, ao enganar-se a si mesma, toma os erros por evidências, e os absurdos por verdades de senso comum.


Como breve exercício prático, analisemos o seguinte episódio recente. Em 3 de agosto de 2021, o general Ramos, Chefe da Secretaria-Geral de Bolsonaro, publicou em seu twitter uma foto sorridente e feliz, ao lado do presidente do PTB, Roberto Jefferson, com os seguintes dizeres; “Recebi hoje a visita do Presidente do PTB, Roberto Jefferson. Mais um soldado na luta pela liberdade do nosso povo e pela democracia do nosso Brasil”.

No dia 13/08, dez dias após a ignominiosa postagem, Roberto Jefferson, o soldado querido e referendado pelo general Ramos, foi preso, por tempo indeterminado, por ordem do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre Moraes, dentro do inquérito que investiga a ação das milícias digitais bolsonaristas, por ameaçar publicamente as instituições democráticas, por meio inclusive de incitamento a ações armadas. O ministro Moraes também determinou busca e apreensão de armas e equipamentos eletrônicos em posse de Jefferson por sua participação nessas organizações criminosas.

As palavras-chaves do texto do general Ramos são: soldado, democracia, liberdade e povo. Com elas, ele busca montar um sofisma ideológico articulado com todas as mensagens emitidas pelo bolsonarismo. O sujeito central do sofisma do general é o soldado, o tipo idealizado por esta ideologia fascista. Aquele ente perfeito, imaculado, acima da sociedade, ao qual todos os civis devem prestar reverência e obediência.

Mas em uma democracia legítima, o sujeito central são os cidadãos autônomos, articulados em movimentos sociais e organizações representativas – como sindicatos, partidos políticos, associações civis – que constroem, defendem e garantem livremente a democracia de uma nação tendo como fundamento legal de suas ações políticas e civis a Constituição. Ao soldado, de fato, cabe a obrigação imposta pela Lei da defesa da nação diante do inimigo externo. Não compete ao soldado, sob nenhuma hipótese, tutelar a vida cidadã nem ameaçar a atuação dos Poderes republicanos.

O “colchão ideológico”, anunciado pelo chanceler de ferro Bismarck, visa, como num passe de mágica, ocultar os problemas da vida real com uma cortina de fumaça nas representações mentais, levando-as a perceberem-nos como resolvidos, num puro jogo de aparências. Em vez de despertar as forças mais profundas dos cidadãos em torno da luta por justiça e libertação, os tiranos buscam com estas mensagens produzir, como alimento, um tipo de ópio que confunda e anestesie a população diante da realidade. Este é o objetivo do colchão ideológico da classe dominante.

No último dia 11 de agosto, pode-se perceber uma nova edição desta crônica com o programado desfile de equipamentos militares, arcaicos e obsoletos, no âmbito da Praça dos Três Poderes, encomendado pelo general Braga Netto e tornado realidade pelo seu ordenança (soldado às ordens de uma autoridade militar) Bolsonaro.

O desfile compôs uma das diversas ações governamentais de ameaça à confirmação do voto eletrônico pela Câmara Federal, consolidado em nossa democracia desde as eleições municipais de 1996. Uma magnânima obra democrática brasileira que superou o voto em papel, motivo de grandes fraudes eleitorais desde tempos imemoriais. E eis novamente o soldado trazido à baila, de forma farsesca, apresentando-se em seu agir político partidário como um defensor da ordem democrática, ao querer impor sua autoridade imperativa, quando na verdade se apresenta como sua grande ameaça.

A tarefa do próximo Presidente eleito, juntamente com o Congresso nacional, situa-se no movimento político-jurídico de pleno retorno do Brasil à democracia. Isto implica uma ampla e profunda revisão constitucional do papel das Forças Armadas, proibindo terminantemente a sua intervenção na segurança do interior do Estado brasileiro; distinguindo claramente a defesa nacional contra a ameaça externa, papel das Forças Armadas, como um âmbito organizacional-funcional diferente da segurança interior; impedindo a intervenção operativa e de inteligência das Forças Armadas em assuntos circunscritos a este âmbito; repudiando energicamente toda forma de violência que quebre a convivência democrática dos brasileiros; ratificando de forma pétrea o poder civil na vigência plena das instituições democráticas.

Desânimo como nação


Brasil tem essa coisa de muito decepcionante
Antonio Callado

Um arruaceiro na Presidência


Fiel a seu histórico, Jair Bolsonaro cumpriu as piores expectativas. Incapaz de escutar quem quer que seja, protocolou na sexta-feira passada um pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Com o ato drástico, o presidente da República tentou simular fortaleza. No entanto, a realidade é a oposta. Em razão de suas próprias ações e omissões – o pedido de sexta-feira foi mais um entre muitos atos de irresponsabilidade –, Jair Bolsonaro nunca esteve tão fraco e tão isolado.

O pedido de impeachment é tacanho nos fundamentos e nos objetivos. Pelo teor da peça, seria crime de responsabilidade proferir decisão judicial que desagrade ao presidente da República. Em vez de recorrer judicialmente da decisão, como se faz num Estado Democrático de Direito, Jair Bolsonaro preferiu acusar um ministro do STF injustamente.

Em nota, o Supremo expôs o abismo entre o pedido protocolado por Jair Bolsonaro e a Constituição. “O Estado Democrático de Direito não tolera que um magistrado seja acusado por suas decisões, uma vez que devem ser questionadas nas vias recursais próprias, obedecido o devido processo legal”, diz a nota do Supremo, corroborada pelos 11 ministros.

A rigor, a ameaça de Jair Bolsonaro é pífia. Bem se sabe que o tal pedido não tem como prosperar. “Não antevejo fundamentos para impeachment de ministro do Supremo”, disse o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Aqui fica evidente o real objetivo do pedido. Não é, nem nunca foi, tirar Alexandre de Moraes do STF. A finalidade é promover a arruaça no País.

Tão logo o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes foi protocolado no Senado, as redes bolsonaristas começaram a difundir novas ameaças. “Ou abrem o impeachment ou paramos o País”, diziam as mensagens, explicitando o nível de loucura e de desespero do bolsonarismo.


O presidente da República e seus seguidores atuam como se fossem opositores violentos do governo, ameaçando parar o País. Em vez de governar, o bolsonarismo imita o PT em tempos do governo Fernando Henrique. À vista desse comportamento, entende-se por que mais de 60% dos brasileiros afirmam que não votarão de jeito nenhum em Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

O bolsonarismo é caso a ser estudado. No meio de uma pandemia, com inflação em alta, emprego em baixa, nível de confiança caindo, investimentos em compasso de espera, o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores tentam instigar medo no País, para que o Senado remova indevidamente um ministro do Supremo em razão de suas decisões judiciais.

É assim que o governo deseja promover a retomada econômica? É assim que se deseja melhorar a situação de tantas famílias vivendo na pobreza e extrema pobreza, por força da pandemia e da crise econômica?

Para piorar, as mensagens convocando para atos a favor de Jair Bolsonaro no dia 7 de setembro – mensagens quase sempre apócrifas, mas nunca desmentidas ou rejeitadas pelo presidente da República – são rigorosamente criminosas, incitando a violência contra instituições e autoridades. O que ali se vê não é exercício da liberdade de pensamento e de expressão, e sim prática ostensiva de crimes contra a liberdade e contra o regime democrático.

Além disso, as mensagens de convocação para os atos do 7 de Setembro utilizam de forma abusiva e mendaz o bom nome das Forças Armadas. O espírito militar propaga a ordem e a civilidade, e não o caos ou a intimidação.

Talvez Jair Bolsonaro veja o inviável e frágil pedido de impeachment de Alexandre de Moraes como um gesto de esperteza. Ainda que de maneira torpe, teria agitado as hordas bolsonaristas. Trata-se de um não pequeno engano. A irresponsabilidade de sexta-feira não ficará impune. Ao protocolar a acusação, Jair Bolsonaro conseguiu isolar-se politicamente em grau inédito. Além disso, reiterou uma faceta especialmente nefasta de seu comportamento. Quando se trata de livrar os seus familiares e amigos do alcance da Justiça – afinal, essa é a causa de sua desavença com Alexandre de Moraes –, não tem limites.