segunda-feira, 19 de julho de 2021

Lições de política no Brasil de Bolsonaro

O Ministério Público está cobrando da Ancine a contratação dos projetos aprovados, há mais de dois anos, pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). A agência tem 120 dias para resolver o problema que ela mesma criou colaborando, através da política de embaraço à produção, com o boicote do governo à cultura do país. Não sei se o presidente, no seu cantinho de hospital, vai tomar conhecimento dessa história. Mas, logo ou depois, vai certamente se aborrecer com o juiz que tenta, no que está a seu alcance, evitar que o Brasil caia numa Idade Média tardia, para onde Bolsonaro nos empurra com entusiasmo.

Jair Bolsonaro era um presidente recente. Embora nunca tivéssemos, nem de longe, pensado em votar nele, ainda não tínhamos descoberto, direitinho e por completo, seu caráter indecoroso e enganador. Ou o estávamos descobrindo, mas faltava completar o desenho de um caráter que iria se revelar de corpo inteiro, sobretudo na pandemia (um genocídio de quase 600 mil cidadãs e cidadãos). Não tínhamos tido um candidato que nos ajudasse a retomar um rumo que Dilma havia interrompido. Fernando Haddad parecia um cara correto, um bom sujeito capaz de fazer uma boa administração do país. Mas desprovido de sonhos e da audácia de que tanto precisávamos para recolocar o Brasil na trilha da poesia.



Desde a faculdade, na agitação do movimento estudantil, sabíamos que Brasília, por exemplo, era uma porra-louquice responsável pela inflação que maltratava a população. Mas não podíamos evitar um friozinho na barriga, um arrepio na nuca cada vez que via a imagem de um daqueles monumentos, belos edifícios e palácios modernos, gloriosamente esculpidos no deserto pelo maior artista plástico de todos os tempos, o criador sem freios Oscar Niemeyer.

Cada um de nós, mesmo que não o declarasse, desejava estar à altura daquela grandeza. O novo Brasil, mesmo que não gostássemos da política socioeconômica vigente, fosse ela qual fosse, tinha que ser construído à semelhança do que tudo aquilo significava. Era aquele destemor, era aquela força de vontade, era aquela a louca mania que nos atraía para a aventura de mudar o mundo. Mudando-o certamente na direção de nosso próprio rumo. O Brasil estava condenado a propor à civilização humana um jeito de viver que nada tinha a ver com a medíocre dualidade da Guerra Fria. A nossa revolução vinha ao mundo com um sorriso de tudo; e muita certeza e confiança visíveis no coração.

Era esse o nosso instrumento de criação. Na arquitetura, como na poesia, na música, na literatura, na pintura, no teatro, no cinema que começávamos a inventar. Na política e nas nossas lições práticas de política, estávamos reproduzindo, em outro espaço, um momento especial na história do país — na passagem do século XVII para o XVIII, uma geração colonial delirante, sem lideranças evidentes, garantia, com sua coragem e sua imaginação, grande parte da vastidão de nossos 8,5 milhões de km², até hoje uma raridade no mundo.

Por falta de ousadia e confiança na democracia, o Brasil está hoje deixando corromper-se a teia de valores que o diferenciava de tantos povos melancólicos pelo mundo afora. Está aceitando a melancolia como fatalidade, com o argumento ignorante de que a Humanidade é assim mesmo. Prefiro voltar a ser como quando a gente preferia agir em vez de assistir (em geral, com muita lamentação). Mesmo que às vezes não nos entendessem, não tínhamos vergonha de não nos sentirmos obrigados a ser o que queriam que fôssemos. É contra essa rendição que temos que nos bater, fazer política diante da Ancine e do que for.

Uma colisão em câmera lenta

Faz parte de nosso imaginário de catástrofes aquelas cenas de acidentes automobilísticos em câmera lenta, feitas com manequins no lugar de seres humanos. Você observa o carro lentamente bater contra um muro para, em uma singular mistura de tragédia e assepsia, tornar-se o espectador transcendente do choque frontal quebrando os vidros, prensando a lataria e arremessando os corpos de plástico para fora. A função desses espetáculos pedagógicos é pretensamente nos acordar para o perigo de nossas condutas automobilísticas enquanto ainda há tempo, enquanto ainda não ocupamos o lugar daqueles manequins impessoais, produzidos para passivamente serem destruídos. Mas eles acabavam por alimentar um certo fascínio pela destruição que parecia a espreita de cada pisada mais funda no acelerador.

A história brasileira recente pode ser descrita dessa forma: como uma colisão em câmera lenta. Vivemos em uma espécie de expectativa difusa de explosão, que alguns lutam por dissipar o mais rápido possível fazendo gestos e ações próprios de uma “vida normal” cuja realidade é da ordem da lembrança. A cada dia que passa é mais evidente que a única questão realmente relevante é quando vamos colidir.

Alguns percebem o Brasil atual como uma forma de pesadelo. Esses pedem aos céus para acordarmos e voltarmos à realidade. Mas talvez fosse mais correto dizer que não estamos em pesadelo algum. Nós simplesmente acordamos. Esse é o Brasil real e deveria ser a régua para entendermos nossos verdadeiros problemas. Antes, o que havia era um sonho para poucos e um pesadelo infernal para a grande maioria. Ou, se quisermos, poderíamos dizer que, antes, alguns estavam dormindo enquanto a grande maioria não conseguia dormir.


Pois seria o caso de insistir agora como o Brasil inovou nas últimas décadas criando uma espécie de democracia geograficamente limitada. Nas regiões onde vive a classe média e alta, tal democracia parecia existir, com sua garantia elementar da integridade dos corpos. Mas bastavam alguns quilômetros em direção às periferias para entrarmos em uma terra na qual policiais invadem casas sem mandado, pessoas desaparecem pelas mãos de milícias, crianças morrem por balas perdidas, sujeitos não podem registrar uma ocorrência em uma delegacia sem temer alguma forma de retaliação vinda das próprias pessoas que deveriam protegê-las. Ou seja, nessas áreas a “democracia” nunca existiu, e nenhum governo viu como tarefa sua modificar tal partilha. Quando se fala que o Brasil está a perder sua democracia, deveríamos começar por lembrar do fato de ser impossível perder o que você nunca teve.

Nesse sentido, ao menos agora a classe política poderia nos poupar de vender mais uma rodada de ilusões a respeito da necessidade de nos livrarmos de uma extrema-direita incontrolável para voltarmos ao respeito aos limites mínimos de uma “pacto democrático” que teria existido por esses terras no período pós-ditadura militar. Uma das patologias nacionais é essa crença de que um escândalo, uma eleição, um pacto pelo alto irá nos tirar da rota da colisão, irá recolocar as coisas nos trilhos e nos fazer voltar a sonhar e cantar. Talvez fosse o caso de dizer: dessa vez, isso provavelmente não vai ocorrer.

É possível dizer isto porque, depois de um certo tempo, dá para adivinhar a lógica de Jair Bolsonaro e de seus fieis. Ela se resume a algumas ações básicas. A primeira delas é sua incrível capacidade de, diante de uma crise, sempre dobrar a aposta e correr para frente. Como já se disse antes, pode parecer loucura, mas tem método. Ele sabe que, caso perca as eleições do ano que vem, provavelmente a diferença não será grande. E nesse cenário, uma confusão à la Trump já está no script.

Bolsonaro provavelmente tem razão. Ele conta com um repique da economia devido à retomada de demandas globais por matérias-primas depois do desconfinamento geral. Ele sabe que se sobreviver os próximos meses, poderá contar com uma economia em melhores condições. Depois, é contar com a secular tendência dos “liberais” latino-americanos a abraçar governos autoritários quando vem o povo batendo as portas do poder. Poderíamos chamar isso de “complexo de Vargas-Llosa”. Algo que, diga-se de passagem, não tem nada de muito complexo.

Um liberal latino-americano é alguém que pode até aprender a escrever e ganhar um prêmio Nobel, alguém que pode até fazer palestras mundo afora para falar das riqueza de seu povo mas que, em situações onde as clássicas partilhas de poder e riqueza são questionadas, sabe muito bem qual é seu lado. Normalmente, é o lado da filha do ditador ou do coronel que “fala mais que devia” mas que entrega tudo o que promete (“reforma” trabalhista, previdenciária, fiscal etc.). Um liberal latino-americano conhece bem sua classe de origem e se tem algo que ele desconhece é raiva em relação a sua própria classe e meio. Quem confia em frente ampla devia ler um pouco mais Vargas-Llosa.

Já a segunda ação típica desse governo é colocar as Forças Armadas cada vez mais dentro do cenário político nacional. Pergunto-me por quanto tempo ainda vão nos vender a narrativa do governo sempre às voltas com conflitos entre as Forças Armadas e o presidente. Essa narrativa faz parte da estratégia de preservação das Forças Armadas. Mas, para além da narrativa, a verdadeira face fardada foi mostrada semana passada, com a nota ameaçando a CPI e o poder legislativo. Nada muito diferente do senhor Villas-Boas mandando tuítes com ameaças contra o STF anos atrás. De toda forma, quem acredita que as Forças Armadas entregarão os 7.000 cargos que ocupam caso percam a eleição deveria lembrar o que significa situações nas quais um setor do poder constitui um Estado dentro do Estado.

Ou seja, é claro que há duas saídas para a oposição. A primeira é deixar de ser oposição, ou seja, ser apenas oposição à pessoa de Jair Bolsonaro e não aos interesses que ele defende tão bem. Em nome da “governabilidade” possível seremos obrigados a nos contentar com um horizonte ainda mais miseravelmente rebaixado de expectativas. Então teremos um governo que não reverá nenhuma derrota da classe trabalhadora, nem tocará na natureza “moderadora” do poder militar.

No entanto, é difícil não lembrar aqui de um filme de Sophia Coppola chamado Maria Antonieta. Como o título indica, é um filme sobre a rainha Maria Antonieta, aquela dos brioches. Durante todo o filme, acompanhamos Maria em suas festas ao som de Siouxsie and the Banshees, sua liberação sexual, sua afirmação de si, até o momento em que algo que não deveria estar lá aparece e muda tudo. Mas aparece não como um personagem. Na verdade, aparece como um poder de decomposição, como uma força sem figura que tudo desaba. Era o povo de famintos, de empobrecidos, de enlutados, cuja única presença no filme é como o som emudecedor que Maria deve ouvir da sacada do Palácio de Versalhes. Bem, imaginar que esse povo que já demonstrou sua força na Colômbia, no Chile, não aparecerá por aqui pode ser um cálculo muito ruim. Mas se a oposição política tentar colocar-se a seu lado, ela perderá seus novos amigos da Frente Ampla. Amigos que, podem apostar dois vinténs, irão abraçar novamente Jair Bolsonaro nessa situação. Isso talvez explique por que o Brasil tem uma oposição que, no fundo, reza para que nada ocorra. Mas como aprendemos nesses filmes de acidentes automobilísticos, no final o carro bate.

Nessas circunstâncias, melhor seria admitir de vez que o carro baterá e que não há como salvá-lo. O Brasil que conhecemos acabou. Forças efetivas de oposição estariam a fazer de sua bandeira uma profunda refundação institucional do país, assim como formas de desmonte da estrutura necropolítica de seu estado e luta real contra as classes responsáveis pela concentração econômica e espoliação geral. Essas mesmas classes que enriqueceram com a pandemia e que sonham em fazer turismo espacial nas novas naves de Robert Bransom ou Jeff Bezos.

'Por minha Pátria eu morro. E também mato e faço coisas que não vou listar aqui'

A ascensão do general da reserva Ridauto Fernandes ao comando da diretoria de logística do Ministério da Saúde deu aos militares uma vitória na batalha pelo cargo, que a CPI da Covid mostrou ser alvo de disputa entre os fardados ligados a Eduardo Pazuello e o Centrão. Mas não só. Deu também ao presidente Jair Bolsonaro o conforto de ter num cargo tão sensível um seguidor fiel.

O general, que chegou a defender a decretação de estado de sítio em maio de 2020, no auge da crise entre Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal, faz poucas postagens em redes sociais. Mas continua manifestando apoio a Pazuello e Bolsonaro em listas fechadas de WhatsApp.

Em novembro passado, no auge da briga pelas vacinas, ele protestou numa dessas listas contra um artigo que o jornalista Fernando Gabeira publicou em O GLOBO, intitulado "O perigoso esporte de humilhar generais".


Indignado com a afirmação de que Bolsonaro rebaixava as Forças Armadas ao desautorizar Pazuello em negociações de vacinas, Ridauto escreveu: "Por alguns valores, um militar passa (facilmente) por cima de muita coisa. Desculpem os que se sentirem ofendidos, mas por minha Pátria em morro. E também mato e faço coisas que não vou listar aqui, para não provocar chiliques."

Egresso das Forças Especiais, assim como vários outros membros do governo, o Ridauto formou-se na turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1981. Chegou a general de Brigada em 2017, mas deixou as forças logo depois para trabalhar em consultorias.

Na mensagem enviada em novembro a uma lista de WhatsApp da qual participam oficiais militares e PMs, o general não explicou que coisas ele faz que não poderia listar. Mas deixou claro que não estava brincando.

"Se eu achar que minha Pátria estiver precisando, aceito de cabeça erguida humilhações e cusparadas. E, se achar que minha Pátria estiver precisando, providenciarei para que aquele que a esteja agredindo seja neutralizado. Adoro essa palavra, neutralizado", completou. 

Ao fechar a postagem indignada com Gabeira, dizendo que teria um "grande prazer de estar ao lado do presidente" caso fosse preciso defendê-lo de alguma iniciativa ilegal para derrotá-lo, Ridauto afirmou: "Nem sempre cumprir o dever é algo sacrificante. Acha que o Exército mudou em 50 anos? Adoraria mostrar que não mudou".

Consultado por mim sobre a mensagem, o general diz que ela expressa seu pensamento desde sempre e que tem orgulho disso. "Destaco que, na data em que o expressei, não integrava qualquer órgão de governo e, portanto, falava somente por mim, com a liberdade que a lei me garantia".

Se o general é bom de logística não se sabe, mas não há dúvidas de que pode ser o escudo de que Bolsonaro e Pazuello precisam para blindar a diretoria mais radioativa do ministério da Saúde contras as investidas da CPI da Covid. 

A íntegra mensagem de Ridauto Fernandes à lista de oficiais e PMs

Militares de carreira são escravos de seus valores. Isso é o que a sociedade não entende. E, como seres humanos, são diferentes uns dos outros. Inclusive quanto à escala de valores, que varia de um para o outro. De um modo geral, varia pouco. O que quero dizer com isso, em relação ao tema abordado pelo ex-MR-8 Gabeira, é que, por alguns valores, um militar passa (facilmente) por cima de muita coisa. Desculpem os que se sentirem ofendidos, mas por minha Pátria em morro. E também mato e faço coisas que não vou listar aqui, para não provocar chiliques. Se eu achar que minha Pátria estiver precisando, aceito de cabeça erguida humilhações e cusparadas. E, se achar que minha Pátria estiver precisando, providenciarei para que aquele que a esteja agredindo seja neutralizado. Adoro essa palavra, neutralizado. Que ideia essa, Gabeira. Pensar que a imagem do Exército e das Forças Armadas será arranhada, triscada sequer, porque o Presidente da República mandou um de seus ministros, que também é militar, fazer algo com que não concorda e o ministro, DISCIPLINADO, aceitou. Que ideia, Gabeira. Essa convivência próxima que vc mesmo diz que teve com certas lideranças militares não lhe ensinou nada? Mas não sou ingênuo de achar que vc apenas se enganou. Ah, não. Cada palavra sua é medida e pensada. E visa colocar integrantes das Forças Armadas, os menos experientes e menos preparados, contra seus Chefes. Tem coisa bem mais perigosa que humilhar generais, posso te assegurar. Quando vc diz que derrotará Bolsonaro e quantos militares estiverem a seu lado, estou imaginando que será pelo voto e pela via legal. É isso? Porque, se a ideia for outra forma QUALQUER, confesso que teria um grande prazer em estar ao lado do Presidente. Nem sempre cumprir o dever é algo sacrificante. Acha que o Exército mudou em 50 anos? Adoraria mostrar que não mudou. Gen Ridauto.

Além da corrupção, o roubo oficial

Pode ser pixulé, propina, comissionamento ou até recursos não contabilizados, como dizia Delúbio Soares, tesoureiro do PT pego pelo mensalão. O apelido não importa. As tenebrosas transações do Ministério da Saúde para compra de vacinas superfaturadas têm um só nome: corrupção. A ela somam-se criativas fórmulas de ladroagem, o roubo oficial, prática cada vez mais corriqueira no governo do presidente Jair Bolsonaro.

Foi-se o tempo em que Bolsonaro garantia não existir corrupção em seu governo, e das juras de combatê-la. Nada fez. Ao contrário, desmontou ciosamente o aparato que auxiliava na corrida contra o crime, em nome do seu clã, embolado nas rachadinhas, e de aliados que se metem em “rolos”.

Bolsonaro, que usou e abusou da ojeriza popular à corrupção – que ele vendia como sendo produto exclusivo do PT -, sabe o peso que a prática carrega na cabeça do eleitor. Mas cada vez fica mais difícil arrumar versões – já foram quatro até aqui, todas esfarrapadas – para escapar das acusações que pesam sobre ele e os militares de seu círculo de poder, incluindo o ex-ministro e dileto amigo Eduardo Pazuello, general da ativa.


Pazuello, que de titular da Saúde passou a sentar-se ao lado direito do presidente no Planalto, foi exibido ao país em vídeo negociando com um misterioso John a CoronaVac que Bolsonaro o proibiu de comprar porque a vacina tinha como origem a China e, claro, o governo de João Doria. Uma cena patética em que o ex-ministro e o vendedor, mascarados como manda o protocolo odiado por Bolsonaro, trocam gentilezas, falam de “portas abertas” para “vacinas futuras”. Só faltou dizer “mesmo que tenham preço quase três vezes maior” do que as doses do Butantan, representante oficial da chinesa Sinovac no Brasil. Em espantoso descaramento, agora Pazuello nega tudo. Quer convencer que ninguém viu o que viu.

Afanar dinheiro público na compra de vacinas contra um vírus que já matou mais de 540 mil brasileiros é mais do que abominável, é cruel, assassino. Mas o Brasil convive com corrupção há tanto tempo que se chega ao cúmulo de comparar valores de um roubo e outro para favorecer quem garfou menos, versão corrente de governistas fiéis para tentar blindar Bolsonaro.

O mensalão, envolvendo praticamente a mesma turma que hoje apoia Bolsonaro, foi menor do que o milionário petrolão. O escândalo PC Farias, que detonou o ex-presidente Collor de Mello, seria muito menos grave do que a dinheirama do Banestado. A máfia dos sanguessugas, que em 2006 lucrou com ambulâncias, teria roubado menos do que os anões do orçamento. E por aí vai.

Parte da desfaçatez de medir corrupção pela contabilidade do surrupio se escora na frequência da roubalheira e na quantidade apurada, confundindo o freguês. Os 6 milhões de reais de Collor viraram pó perto dos 30 milhões do Banestado, dos 105 milhões do mensalão ou 48 bilhões do petrolão. Pior: a maioria dos criminosos está livre, leve e solta, beneficiada por recursos infindos e prescrição. Prende-se com estardalhaço, solta-se por tecnicismos.

Lula, condenado pela Lava-jato, foi solto não por inocência, mas por um entendimento tardio do STF de que o foro de suas ações não seria Curitiba e sim Brasília (por que não São Paulo?), e por suspeição do juiz Sérgio Moro, que havia tido suas sentenças sobre o ex confirmadas em instâncias superiores por 11 vezes, incluindo o próprio Supremo. Delúbio é outro exemplo: acaba de ter seus processos encerrados por prescrição.

Como se não bastasse, o país convive com o “roubo por dentro”, absurdos legalizados que sugam o dinheiro dos contribuintes, tal como a portaria de Bolsonaro que autoriza o fura-teto salarial para militares aposentados que prestam serviço ao governo e para outras natas do funcionalismo público federal.

No Congresso, o pagador de impostos é extorquido de outras formas. Na compra escancarada de apoio de parlamentares feita pelo presidente para impedir um processo de impeachment, materializada nas dádivas do orçamento secreto – essa peça de legalidade para lá de duvidosa mas que está pronta para se repetir -, e com a mais aviltante das excrescências: 5,7 bilhões aprovados para o fundo eleitoral de 2022. Outro roubo oficial.

À corrupção adita-se o assalto que vira lei.

Pensamento do Dia

 


Pesadelos de Caserna


Muito ruim essa coisa dos fantasmas dos militares voltarem a assombrar nossas vidas agora. Pode ser desespero do governo, pode ser um cadáver mal sepultado, pode ser a eterna paranoia que temos de não podermos ser felizes, enfim, pode ser tudo, mas o que importa é que eles ainda assustam
Miguel Paiva


Militares no poder

É beabá de qualquer gerenciamento de crise não mentir. A mentira falseia a realidade, escamoteia responsabilidades e, para prosperar, precisa de cúmplices. Por isso, acaba desnudada, como acontece agora com o general de divisão da ativa do Exército Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde responsável pelo desastre sanitário que vivemos, em coautoria com o presidente Jair Bolsonaro. Em seu depoimento na CPI da Saúde, Pazuello mentiu; agora, está no sal, porque um vídeo gravado em seu gabinete revela que negociou diretamente a compra de vacinas com empresários que faziam, diga- mos, “intermediações onerosas” com o governo. Dos 12 inves- tigados na CPI até agora, por envolvimento em negociações suspeitas, seis são militares.

Pazuello tratou da possibilidade de compra de 30 milhões de doses de CoronaVac sem envolvimento do Instituto Butantan, mesmo sabendo que o governo federal tinha um acordo com o laboratório do governo paulista para o fornecimento de até 100 milhões de unidades da vacina desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac. O vídeo obtido pela CPI da Covid foi gravado em 11 de março. Nele, Pazuello explica que o grupo fora tratar da possibilidade de adquirir as vacinas “numa compra direta com o governo chinês”.


Os intermediadores da compra representariam a empresa World Brands Distribuidora, com sede em Itajaí (SC). Pazuello teria recebido a comitiva fora da agenda oficial. Ofereceram 30 milhões de doses por US$ 28 cada uma, com depósito de metade do valor total até 2 dias depois da assinatura do contrato. Ao Butantan, o Ministério da Saúde pagou US$ 10 por dose, quase 2/3 a menos que a suposta oferta feita pelos empresários em março. Ao depor na CPI da Covid, em 20 de maio, Pazuello disse que não participava de negociações com empresas.

O ex-ministro da Saúde faz parte de um grupo de militares que se formou no Comando Militar do Leste, com sede no Rio de Janeiro, à época sob comando do ex-ministro da Defesa Fernando de Azevedo e Silva, demitido do cargo por divergir da politização e manipulação das Forças Armadas por Bolsonaro. Seu chefe de estado-maior era o atual ministro da Defesa, general Braga Netto, que foi interventor na segurança do Rio de Janeiro no governo Michel Temer e manteve absoluto sigilo sobre as investigações que apontaram o envolvimento das milícias com o assassinato da vereadora Marielle Franco, cuja revelação po- deria atrapalhar a eleição de Bolsonaro. O comandante da Vila Militar, a maior unidade do Exército, era o atual secretário-geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos. Pazuello comandava a Brigada de Paraquedistas. Hoje, o grupo manda no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e nas Forças Armadas, como uma espécie de guarda pretoriana de Bolsonaro

Premido pela necessidade de quadros e visando seus propósitos autoritários, Bolsonaro formou um governo de viés bonapartista, com grande número de militares. Hoje, estima-se que sejam em torno de 6,2 mil oficiais nos altos escalões, ocupando funções civis, segundo a pesquisa Militarização da Administração Pública no Brasil: Projeto de Nação ou Projeto de Poder?, de William Nozaki, do Fórum Nacional das Carreiras Públicas de Estado (Fonacate). Como muitos são da ativa, como Pazuello, por exemplo, isso subverte a hierarquia militar e ameaça a democracia, ao envolver as Forças Armadas diretamente na política. Sem falar no desgaste de imagem causado pelo envolvimento de alguns elementos em negócios suspeitos e outras não-conformidades.

Alguém já disse que os homens fazem sua própria história, mas não como querem; não escolhem as circunstâncias, elas lhe foram legadas. Militares são patriotas com aptidões que podem ser muito úteis nas atividades civis, mas não têm a competência dos técnicos e gestores públicos de carreira, formados nos centros de excelência da administração direta e indireta, que são tão patriotas quanto. Afora isso, são pessoas como outras quaisquer, cuja integridade e honradez independem das suas patentes e que podem, sim, na reserva, prestar grande colaboração à administração pública, nas funções para as quais têm formação compatível.

Entretanto, são neófitos ou refratários à política propriamente dita, que não está apenas nas esferas de decisão do governo, mas em todo lugar. É aí que a panelinha de militares que hoje manda e desmanda no país está perdendo a batalha para os senadores da CPI da Covid, que formam um grupo heterogêneo, mas sintonizado com a opinião pública e a maioria da sociedade. A República democrática é um regime de partidos políticos, representativo da sociedade, formado por políticos por vocação; a tutela militar sobre a República é a gênese do autoritarismo corporativista, um regime de casta, incompatível com a Constituição de 1988 e que leva ao fascismo.

Saqueadores na pandemia

De novo na estrada. Depois de quase um ano e meio de quarentena, sinto-me como um jogador que se ausentou longamente dos campos: um pouco fora de forma.

A grande diferença agora é que não posso acompanhar as notícias no seu fluxo. É preciso esperar o fim do dia de trabalho para saber o que está acontecendo. É de estarrecer.

Ao fim da primeira jornada, descobri que os deputados votaram um fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões em plena pandemia.

No momento em que nos debatemos com um governo que, pela incompetência, e possivelmente corrupção, cuidou muito mal do povo brasileiro, contribuindo para milhares de mortes, surgem os deputados saqueando os cofres públicos.


Para onde quer que olhemos, o panorama é desolador. Felizmente, foi apresentada a emenda constitucional que barra a presença de militares da ativa no governo. Cinco ex-ministros da Defesa se manifestaram a favor da ideia.

Os deputados parecem sentir a fragilidade de Bolsonaro e resolveram aprofundar a exploração das pessoas que trabalham. No passado, as eleições foram contaminadas pela relação com empresários que compravam candidatos. A ideia de um fundo eleitoral era destinada a corrigir isso, com eleições modestas e debate de programas, sobretudo agora com novas plataformas.

Parece que resolveram virar as costas para nós. Quando menciono a fragilidade de Bolsonaro, não quero me referir a sua doença, que deve ser curada nos próximos dias. A fragilidade é determinada pela existência de mais de uma centena de pedidos de impeachment. O preço que ele paga é alto e, naturalmente, a fatura deve ser distribuída por toda a sociedade.

Seria interessante lembrar os idos de 2013. As pessoas saíram às ruas e protestaram com vigor. Foi uma advertência ao próprio processo de redemocratização, que as subestimou precisamente porque os líderes estavam mais preocupados em financiar suas campanhas.

Foi no curso desse declínio de legitimidade que surgiu Bolsonaro, de forma oportunística, desafiando o que ele chamava de todo o sistema. Hoje sabemos bem que Bolsonaro não participava do grande esquema de corrupção porque criou o seu, artesanal e familiar, materializado nas rachadinhas.

No interior do Brasil, por onde ando, não há grandes manifestações. Parece que esperam pelas metrópoles, onde há mais facilidade em mobilizar e todo o aparato de divulgação está concentrado.

Isso não significa, entretanto, que as pessoas não estejam atentas a todos os golpes como esse do fundo eleitoral e a todas as desastradas atitudes de Bolsonaro, cujo prestígio se derrete.

Não creio que o processo de 2013 se repita, nos mesmos termos, como aliás nada se repete exatamente na História. Se a degradação do sistema político possibilitou a aventura de Bolsonaro e sua extrema-direita, o que mais pode acontecer se o sistema continua a se degradar?

Tenho pensado muito nas condições que possam neutralizar a extrema-direita no Brasil, para que nunca mais volte ao poder, depois de tantas mortes e tanta devastação ambiental.

Chegamos a uma situação, segundo um recente estudo, em que a Amazônia hoje emite mais gás carbônico do que retém em suas matas. A longo prazo, estão contribuindo para inviabilizar a própria humanidade.

E, no curto prazo, estão inviabilizando o que ainda podemos chamar de civilização brasileira. Bolsonaro, desmatadores, incendiários, deputados vorazes — todos parecem unidos na tarefa de devastar a esperança de construir um país decente.

O autointitulado salvador da pátria já foi para o espaço e não volta em 22. Mas o sistema político continua de costas para a sociedade.

Sem perceber essa armadilha, sem reformar o sistema político, estaremos condenados a uma sucessão de nostalgias a que chamamos generosamente de futuro. Mas, na verdade, serão apenas simulacros cavando abismos entre representantes e a sociedade.

Assim nasce o inferno


Eu já falei, repito para vocês, é um paraíso de lobistas, de picaretas. Em Brasília, tudo o que é de ruim no Brasil vai pra lá, fazer lobby, tirar proveito
Jair Bolsonaro

O método Bolsonaro: um assalto à democracia em câmera lenta

Em 20 de janeiro de 2021, uma assessora do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos durante o Governo de Donald Trump, Valerie Huber, escreveu um último e-mail aos seus aliados de outros países, no qual dedicou especial atenção ao Brasil. Huber ―uma forte defensora da abstinência, que trabalhava em larga escala contra programas de educação sexual e reprodutiva― se despediu de seus colegas com o anúncio: “O Brasil, gentilmente, se ofereceu para servir agora como coordenador dessa coalizão histórica”, escreveu ela no e-mail ao qual o EL PAÍS teve acesso. A “coalizão histórica” era basicamente uma aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde e de outros organismos multilaterais. Fracassada a tentativa de Trump de permanecer no poder, a ofensiva da direita global contra os direitos de uma nova geração foi deixada nas mãos do Governo Jair Bolsonaro.

Bolsonaro não ganhou como herança de Trump somente uma responsabilidade, mas também um manual não escrito de táticas de como erodir a democracia, que alguns líderes começaram a replicar sem sutilezas pelo mundo. Nenhum, talvez, com o atrevimento e determinação que fizeram do presidente brasileiro um porta-estandarte mundial da direita. Embora o ímpeto do golpe o acompanhe desde que chegou ao Palácio do Planalto, sua estratégia para enfraquecer as instituições e permanecer no poder torna-se cada vez mais evidente à medida que sua popularidade diminui e as eleições de 2022 parecem mais claras no horizonte.

“Ou fazemos eleições limpas, ou não teremos eleições”, disse Bolsonaro na última quinta-feira, 8 de julho, a seguidores que o esperam todos os dias na porta do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em Brasília. Atacar, sem apresentar evidências, a legitimidade das urnas eletrônicas ―o mesmo sistema eleitoral que o elegeu presidente e a outros cargos eletivos ao longo de sua carreira política― faz parte de sua campanha mais recente para não entregar o poder no ano que vem caso seja derrotado. No dia seguinte, Bolsonaro foi além. “Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar no voto auditável e confiável. Dessa forma [como é hoje], corremos o risco de não termos eleições no ano que vem”, repetiu ele uma vez mais na sexta, 9.

O impulso golpista, entretanto, desta vez gerou uma reação em cadeia nos Três Poderes, que fizeram defesa pública do processo eleitoral brasileiro. “Não podemos admitir fala, ato, menção que seja atentatória à democracia”, disse o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, descartando a possibilidade de haver qualquer interferência nas eleições. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, o convidou dias depois para uma reunião, para “fixar balizas sólidas sobre a democracia brasileira” em nome da estabilidade política. O empenho por refrear os arroubos autoritários parecem insuficientes diante da velocidade com que o presidente impõe seu projeto de poder.


Bolsonaro não é o primeiro populista de extrema direita no mundo. Mas, sem dúvida, “é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira já enfrentou em meio século”, como advertia em 2019 Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins (EUA), no seu livro O povo contra a democracia, onde retratou como os líderes eleitos em países como Turquia, Hungria e Filipinas destroem o regime democrático por dentro. Em pouco mais de dois anos e meio como mandatário, já é possível decifrar o modus operandi do político forjado pelo Exército brasileiro que assumiu a Presidência em 1 de janeiro de 2019. Enquanto parte de sua atividade se concentra em perseguir seus críticos, inventar notícias falsas ou meias verdades que precisam ser desmentidas pelos jornais, e fomentar crises políticas com os outros Poderes, a máquina do Estado é utilizada para fortalecer os pilares que poderiam sustentá-lo no poder para além do voto. Se sua estratégia discursiva parece uma cópia da empregada por Donald Trump, sua metodologia mais poderosa é, paradoxalmente, a mesma que a adotada pelo chavismo: garantir a lealdade dos militares.

Democracia verde oliva

Os militares são hoje a espinha dorsal do Governo Bolsonaro. Há pelo menos 6.157 fardados espalhados entre diretorias, conselhos administrativos e gerências de empresas estatais, como Petrobras, Itaipu, Correios e Eletrobras. De seus 22 ministérios, nove são atualmente ocupados por militares da ativa ou da reserva. Eram dez até a queda do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, em março. “As Forças Armadas servem tanto como base política-eleitoral para o Governo Bolsonaro, mas também como instrumento de intimidação da oposição. Ele tenta passar a ideia de que pode usar a força contra seus inimigos políticos, por mais que não seja verdade”, diz o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Fundação Getulio Vargas. O mandatário já incorporou ao seu discurso até a expressão “Meu Exército” para demonstrar sua influência.

O Governo federal já gastou o equivalente a 86,8 bilhões de reais em privilégios à categoria, uma alta de 17% nos anos Bolsonaro. Neste cálculo, estão os benefícios concedidos pela reforma da Previdência da caserna ―podem se aposentar com salário integral, por exemplo—; um reajuste salarial de 13% —enquanto o dos demais servidores públicos não superou os 8%— e a concessão de comissionamentos extraordinários aos militares que participam de conselhos administrativos de estatais. A conta foi feita, a pedido do EL PAÍS, pelo cientista político Willian Nozaki, que em maio publicou o estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder?. Na equação não está inclusa a mudança na regra que permite que militares aposentados, como Bolsonaro ou seus ministros Walter Braga Netto (Defesa), Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Augusto Heleno (Gabinete da Segurança Institucional) possam receber acima do teto constitucional de 39.293 reais.

Bolsonaro estende benefícios aos policiais militares das 27 unidades da federação. Os PMs são uma base natural do presidente, que poderiam jogar a favor dele, a despeito do comando dos governadores, a quem respondem. O presidente aprovou recentemente um programa de financiamento habitacional exclusivo para as forças de segurança. Também incluiu na reforma Administrativa que tramita na Câmara dos Deputados um artigo que entende que os policiais seriam carreira típica de Estado, portanto, não correriam o risco de demissão, como as demais funções.

A pergunta é se todo esse prestígio alcançado pelos militares e PMs no Governo vai se converter em apoio em caso de uma tentativa de golpe do presidente no ano que vem. “Se isso acontecer, as Forças Armadas terão que tomar uma decisão. Se agirão dentro da legalidade, rompendo de vez publicamente com Bolsonaro ou não”, alerta Amorim Neto. As PMs, por sua vez, seguem a corrente que estiver mais forte. “As polícias no Brasil têm duplo comando. Elas obedecem aos 27 governadores e ao comandante do Exército. Se você perguntar para um oficial da PM quem ele irá seguir em caso de ameaça, a resposta que ele lhe dará será: quem estiver mais forte”, diz o professor Zaverucha.

O ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores sob Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Celso Amorim, acredita que nenhum comandante das Forças Armadas está de acordo com uma intervenção. “Isso é uma discussão mais entre alguns generais da reserva. Por mais que boa parte da tropa concorde com as ideias do presidente, ela vai contra o que pensa o Alto Comando do Exército. Ela não vai ultrapassar essa linha”, diz. Para Amorim, o presidente não é bem visto na caserna, quando forçosamente leva a política para dentro dos quartéis, como no episódio que resultou na demissão coletiva do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, em maio, por discordarem da linha de atuação do presidente. O ex-ministro lembra também que todo golpe requer apoio internacional, algo que o Brasil deixou de ter após o início do Governo Joe Biden.

Os militares, contudo, também vivem o desgaste do poder ao lado de Bolsonaro. Eles emprestaram sua imagem a um Governo que perdeu prestígio com os resultados desastrosos da pandemia, alto desemprego e agora acossado com acusações de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 que alcançam integrantes do Exército. As acusações de propina, investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, começam agora a levantar suspeitas sobre vários militares que ocupam ou ocuparam cargos no Ministério da Saúde.

Jair Bolsonaro não vive exatamente seu momento mais popular nem entre as instituições, nem junto à opinião pública. Rejeitado por metade da população pela gestão da crise sanitária, o mandatário tem encarado protestos puxados por partidos de esquerda contra sua administração desde maio. As pesquisas eleitorais já mostravam uma erosão do apoio popular pouco antes do noticiário brasileiro ser tomado pelas denúncias de corrupção no Ministério da Saúde na última semana de junho. Um levantamento feito pelo Instituto Ipec entre os dias 17 e 21 daquele mês revelava queda preocupante da sua popularidade diante do ex-presidente Lula: 49% a favor do petista, contra 23% do presidente, o que levaria Lula a ganhar em primeiro turno. Numa pesquisa mais recente, feita pelo instituto Datafolha entre os dias 7 e 8 deste mês, Lula aparece com 58% de apoio para sua candidatura presidencial contra 31% de Bolsonaro —a rejeição ao presidente chega a 59%, contra 37% do petista.

Combustível para se reerguer

Faltando um ano e três meses para as eleições presidenciais, Bolsonaro ainda tem tempo, eleitores e alianças fiéis, além da máquina pública a seu favor para navegar nestas águas revoltas até chegar a 2022 competitivo para se reeleger. Ao farejar o risco de perder as eleições, o presidente já plantou as sementes do caos ―assim como Trump fez no ano passado― inventando um risco de fraude. A verborragia calculada para atormentar adversários e incomodar as instituições ajuda a desviar a atenção. É o método adotado desde que assumiu a presidência.

E ―novamente seguindo o roteiro trumpista―, dia sim, dia não, submete o país a sobressaltos com seus discursos radicais e falas distópicas que confrontam a realidade e desafiam a Constituição. Enquanto distrai a opinião pública, muda leis por atos institucionais que não dependem do Congresso. No dia 19 de julho de 2019, por exemplo, durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros, Bolsonaro afirmou que não existia gente passando fome no Brasil, apesar de 5,2 milhões de brasileiros que se encontravam nessa situação àquela altura, mais do que a população da Nova Zelândia. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, dizia enfaticamente na presença de jornalistas internacionais. “Passa-se mal, não come bem. Agora passar fome, não”, afirmou ele com veemência.

Enquanto a imprensa repercutia a sua fala, naquele mesmo dia foi publicado no Diário Oficial da União o decreto número 9.926/19 que promoveu um revogaço de 324 atos administrativos, incluindo o que determinava a criação de conselhos com a participação de representantes da sociedade civil em decisões sobre políticas públicas. Essa foi a primeira canetada para reduzir o controle social sobre o poder público. Outros vieram, diminuindo também a transparência dos atos públicos.

No início da pandemia, no ano passado, o Governo editou uma medida provisória suspendendo os prazos de respostas aos pedidos de informação enquanto durasse a crise sanitária para todos os órgãos cujos servidores estivessem em regime de teletrabalho. A MP ficou em vigor de março a julho de 2020 e tirou o acesso aos dados públicos num momento em que o país se organizava para enfrentar o novo coronavírus. Em junho deste ano, o Comando do Exército decretou sigilo de 100 anos no processo administrativo contra o general Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado de ato político com apoiadores de Bolsonaro, o que é proibido pelo regulamento das Forças Armadas aos militares da ativa, como é o caso dele. O processo foi aberto, mas o Exército entendeu que o ex ministro não cometeu “transgressão disciplinar” e arquivou o caso.

A promulgação de atos ―portaria, resolução, decretos, instrução normativa, edital, lei, despachos— é outra das frentes de erosão democrática usada como método por Bolsonaro. Em dois anos e meio no poder, 1.060 decretos já foram assinados pelo presidente. Como comparação, Dilma Rousseff assinou 614 dessa natureza, grande parte para regulamentar leis ou organizar a gestão pública. Porém, na gestão Bolsonaro, eles se tornaram uma importante ferramenta para contrariar a Constituição e as engrenagens que sustentam a democracia do país. Muitos são revertidos no Supremo Tribunal Federal. Mas enquanto não são julgados, garantem que o plano de poder do presidente avance algumas casas.

Foi assim que Bolsonaro conseguiu ampliar a venda de armas no Brasil, apesar de o país ter um Estatuto do Desarmamento, que contou com o referendo de uma votação popular em 2005. Mais de 63% dos brasileiros votaram a favor da proibição da venda de armas naquele ano. Mas, desde que Bolsonaro assumiu a presidência, já foram mais de 30 atos normativos para alterar a política de acesso às armas no país.

Os quatro decretos mais recentes foram assinados em fevereiro deste ano com o objetivo de facilitar ainda mais a venda de armas e reduzir a fiscalização pelos órgãos competentes. “Temos projetos antigos no Congresso do grupo pró-armas, mas eles sempre enfrentaram resistência. Nenhuma ação conseguiu desmontar o Estatuto do Desarmamento, por isso o Governo partiu para os decretos”, afirma Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé. Risso explica que, apesar dos decretos poderem ser contestados mais facilmente na Justiça —a ministra do Supremo Rosa Weber suspendeu em liminar a eficácia de diversos dispositivos de quatro decretos presidenciais—, as armas que já foram vendidas durante a queda de braço jurídica não terão mais retorno. “A obsessão do presidente pelas armas foi o primeiro sinal de que o Governo iria mexer com o sistema democrático, uma vez que ele começa a fazer decretos para legislar. E uma vez derrubado o decreto, o Governo revoga e publica outros três. É uma forma de driblar os sistemas de controle”, afirma.

Em um cenário hipotético em que Bolsonaro perde a reeleição e tenta se manter no poder, a existência de um grande grupo de simpatizantes que se muniram de armas de fogo durante seu Governo representa um cenário sinistro. Desse modo, contornar os limites impostos pelas leis cumpre uma dupla função: manter a lealdade de seu núcleo duro de apoio e, ao mesmo tempo, proteger seus próprios interesses.

Enquanto os atos facilitam a venda de armas, nenhuma outra área sofreu mais ataques do Governo Bolsonaro sob esse método do que a proteção socioambiental. Já são 1.112 atos voltados para alterar a legislação ambiental e facilitar a exploração das florestas, segundo o monitor Política por Inteiro, do Instituto Talanoa. A eficiência dessa estratégia é incontestável. O desmatamento na Amazônia bate recorde desde a chegada de Bolsonaro e o Governo faz vista grossa para a ação de garimpeiros e madeireiros. O Fundo Amazônia, que recebe doações estrangeiras com o objetivo de promover ações de controle e combate ao desmatamento na Amazônia, foi uma das vítimas desse revogaço. O fundo tinha um comitê técnico que, deliberadamente, não foi retomado. Assim, foi rompido o contrato, deixando 2,9 bilhões de reais acumulados no fundo até hoje.

Do total de atos, 107 tiveram como objetivo flexibilizar as normas vigentes de forma unilateral pelo Executivo. Foi assim que Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha: acabar com o que chamou de “indústria da multa no campo”. Um decreto de abril de 2019 passou a obrigar os órgãos de fiscalização a “estimular a conciliação” nos casos de infrações administrativas por danos ao meio ambiente. Na prática, os infratores passaram a ser convidados a participar das audiências, que não são obrigatórias. E mesmo os que são multados pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) ganham descontos e maiores prazos para pagar. “A conciliação ambiental foi criada para travar as multas. Essas audiências não foram marcadas. Criou-se a indústria do perdão”, lamenta Natalie Unterstell, diretora-presidente do Instituto Talanoa.

Não por acaso os ruralistas interessados em ampliar seus domínios no campo em antítese à preservação são hoje uma base de sustentação do presidente. A bancada de deputados que representam o agronegócio é parte do grupo legislativo Centrão que garante ao presidente a sua estabilidade no poder, depois do acordo selado no ano passado. Essa convergência no Congresso levou à aprovação, em 13 de maio, de um projeto de lei que flexibiliza regras para concessão de licenciamento ambiental para determinados empreendimentos. E ao apoio à aprovação do projeto de lei 490, que dificulta demarcações de terras indígenas e abre espaço para que as terras sejam exploradas pelo agronegócio —foi aprovado no final de junho numa comissão da Câmara.

A intimidação pública de indígenas e ativistas também é parte do plano Bolsonaro. Em abril deste ano a Polícia Federal abriu inquérito para apurar a conduta dos líderes indígenas Sônia Guajajara e Almir Suruí por supostamente propagar “mentiras” contra o Planalto. O suposto crime foi veicular vídeos de uma campanha de preservação da memória dos povos indígenas, cujo fio condutor era o mote “Nenhuma gota a mais”, referente ao sangue derramado por ataques de invasores ou pela covid-19. O pedido de inquérito partiu da Fundação Nacional do Índio (Funai), hoje dirigida por um ex-dirigente da PF, Marcelo Xavier, a pedido do presidente. Sem provas, o inquérito foi arquivado dois meses depois.

Em setembro de 2019, uma operação da Polícia Civil de Santarém, em Belém do Pará, mandou prender quatro brigadistas voluntários sob suspeita de terem promovido um incêndio criminoso em setembro em Alter do Chão, uma região paradisíaca no norte do país. Os quatro jovens tiveram as cabeças raspadas e foram acusados de provocar os incêndios para obter mais verbas de ONGs num inquérito cheio de falhas. Era tudo especulação, como apontou um inquérito da Polícia Federal concluído em 2020, que afirmou não haver evidências de que os quatro rapazes eram culpados. Foi um grande espetáculo que serviu para Bolsonaro se descolar da responsabilidade pelo chamado Dia do Fogo, organizado por fazendeiros bolsonaristas do Pará, com queimadas tão intensas que fizeram a fumaça chegar até São Paulo, a milhares de quilômetros de lá. As ações, no entanto, seguem a reverberar na rede de informações dos bolsonaristas até hoje com versões que culpam os brigadistas, as ONGs, e afirmam até que o ator Leonardo di Caprio financiaria essas organizações com intuito criminoso.

Notícias sob medida

As redes de comunicação do bolsonarismo são um capítulo à parte na fragilização da democracia brasileira. Desde que assumiu o poder, Bolsonaro faz uma live semanal nas redes sociais em que muitas vezes desdiz ―num espaço blindado para críticas― o que ele ou seus ministros afirmaram em público. No exercício de poder, o presidente mantém sua linha de intolerância com os jornalistas, em arroubos que já eram conhecidos desde seus tempos de deputado. E se multiplicaram com Bolsonaro presidente, incluindo milícias virtuais para atacar profissionais, especialmente mulheres, num assédio amplificado por seus seguidores. Não por acaso, o mandatário brasileiro entrou este ano para a seleta lista de protofascistas que perseguem a imprensa, segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras. Nessa lista de “predadores da imprensa” estão Nicolás Maduro, e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un.

Sua aversão à imprensa fez o presidente fechar um círculo com sites e redes de televisão que o apoiam incondicionalmente —e recebem melhores verbas publicitárias estatais por isso. São portais e TVs que reduzem o impacto da pandemia da covid-19, e ignoram as suas manobras casuísticas. Bolsonaro só dá entrevistas a esses meios afins. Parte da estratégia bolsonarista incluiu facilitar a venda de uma concessão pública de televisão à Rede Jovem Pan, o grupo com o maior número de comentaristas defensores de Bolsonaro na rádio e na internet.

É dessas fontes que seus mais leais seguidores se abastecem de informações. Vinicius Publio, de 45 anos, por exemplo, é um orgulhoso bolsonarista que não acompanha a imprensa e raramente assiste a um telejornal. Ele busca informações pelas redes que apoiam Bolsonaro e as que o presidente, sua equipe e seus ciberescudeiros alimentam com uma avalanche de conteúdos. Entre eles, vídeos com propaganda das ações do Governo, as visitas surpresas de Bolsonaro a pequenas cidades, balanços ministeriais triunfalistas, muitas vezes com meias verdades.

Publio admira o perfil do presidente. “É autêntico, fala claramente, diz o que o povo quer ouvir”, explica ele numa cafeteria em Barueri, na grande São Paulo. Publio compartilha com o presidente os valores, a ideologia, o gosto por armas e pelas motos potentes. A bordo de sua BMW, foi um dos que acompanharam o mandatário no comboio de motos num sábado de junho pelas ruas e estradas de São Paulo. Bolsonaro transformou os passeios de motos com seguidores em manifestações públicas de apoio popular, dentro de uma sofisticada estratégia de relacionamento com seus seguidores.

Casado e pai de dois filhos adolescentes, Publio combina seu emprego na Polícia Militar com negócios imobiliários. Personifica o núcleo duro dos eleitores de Bolsonaro, aqueles que permanecem leais a ele apesar de tudo. Mais de meio milhão de mortes por pandemia, inflação ascendente, incêndios na Amazônia ... “São cerca de 15% do eleitorado brasileiro, com presença destacada de homens brancos de certa idade e alta renda”, explica Isabela Kalil, coordenadora do Observatório de Extrema Direita.

É este grupo que endossa o presidente e propaga suas verdades sem questionar. Uma parte do Brasil que é imagem e semelhança com o presidente. Bolsonaro governa no caos para ganhar espaço político e implementar seu projeto de poder. Enquanto não alcança um novo mandato, usa os recursos disponíveis na legislação brasileira para intimidar adversários. Desde que assumiu, em 2019, seu Governo intensificou a perseguição a seus críticos com base na Lei de Segurança Nacional (LSN).

Consolidada em 1983, dois anos antes do fim da ditadura, a LSN é mais um entulho da era militar no Brasil. É ela que tem embasado inquéritos abertos pela Polícia Federal e até pela Polícia Civil contra professores, artistas, ativistas. Foram vítimas de processos do Governo com base nessa lei desde o youtuber Felipe Neto por chamar Bolsonaro de “genocida” nas redes sociais, o cartunista Aroeira, que desenhou o símbolo do fascismo como se o presidente o tivesse pintado, até o jornalista Ricardo Noblat por ter partilhado a charge de Aroeira nas redes sociais. “Essa lei significou um dos elementos que mantinham o sistema ditatorial. Ela pune a crítica”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito da PUC-SP. “Deveria ter sido revogada e não foi, mas em compensação existia um certo pacto na sociedade por não utilizá-la.”

O autoritarismo do presidente no emprego dessa lei contamina até “o guarda da esquina”, usando a expressão cunhada na ditadura pelo então vice-presidente Pedro Aleixo no Governo de Costa e Silva, em 1968, que temia o efeito da institucionalização do AI-5 sobre as tropas. No final de maio, o professor Arquidones Leão, de Trindade, região metropolitana de Goiânia, foi detido por um policial militar por supostamente caluniar o presidente. Leão tinha uma faixa colada ao capô do carro onde se lia “Fora Bolsonaro Genocida”. A justificativa do policial para detê-lo era o desrespeito à Lei de Segurança Nacional. Leão, que é também secretário estadual do Partido dos Trabalhadores em Goiás, teve de depor na Polícia Federal, e foi liberado horas depois.

As salas de aulas e as universidades têm sido uma frente de batalha para Bolsonaro desde que chegou ao poder. Segundo ele, estão cheias de esquerdistas pregando o comunismo. O Governo tentou interferir até nas eleições de reitores eleitos por seus pares com a edição de uma medida provisória que dava poderes ao ministro da Educação de eleger os nomes durante a pandemia. Passou a intimidar também professores que fizessem críticas ao Governo com processos na Justiça. Em janeiro deste ano os professores universitários Erika Suruagy e Tiago Costa Rodrigues foram alvos de inquérito da Polícia Federal por publicarem críticas ao presidente em outdoors de suas cidades. Suruagy vive em Recife, e Rodrigues, em Palmas, no Tocantins. Os inquéritos foram arquivados meses depois por falta de consistência nas acusações. Mas o estrago foi feito. “As portas se fecharam, não consegui mais trabalho”, conta Rodrigues, que teve de se mudar de cidade. “O clima é de medo”, resume a professora Erika Suruagy.

Também um grupo de professores e alunos da Universidade Federal do Ceará é alvo de inquérito da Polícia Federal por aulas sobre os riscos do fascismo. Alunos eleitores de Bolsonaro delataram os docentes do curso à polícia por um suposto assédio contra eles.

Dentro da sala de aula, há uma pressão para evitar assuntos ligados à política. Não foram poucos os casos de vídeos de professores filmados por alunos fazendo alguma crítica informal, mas que circularam nas redes bolsonaristas como uma conspiração comunista. “Se a universidade não pode falar, não pode discutir ideias, quem fará isso? Não existe democracia que se sustente sem as universidades”, diz Suruagy.

O presidente também mina os investimentos nas universidades, estrangulando ainda mais o já sufocado orçamento do ensino superior. De 2019 para cá, o corte da verba das universidades federais chega a 25%, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). O assédio não se restringe aos professores universitários. A Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca), coalizão de entidades do setor público, por exemplo, identificou mais de 820 episódios de assédio. Segundo o levantamento, o Ibama encabeça a lista dos órgãos onde mais ocorreram essas intimidações.

Resistência

O Judiciário, em especial a Corte Suprema, tem sido uma barreira para inibir os abusos de poder do presidente. A Corte tem desarmado parte das bombas-relógios que o Governo cria com a promulgação de medidas provisórias, por exemplo. A Corte também liderou a investigação, conduzida pela Polícia Federal, sobre as redes digitais bolsonaristas que incentivaram a perseguição e assédio ao próprio Judiciário e a opositores do presidente. O chamado inquérito dos atos antidemocráticos encontrou indícios de “uma verdadeira organização criminosa” que ataca a democracia, e que conta com o trabalho de parlamentares, empresários que apoiam o presidente e blogueiros que espalham notícias falsas. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito, abriu uma nova frente de investigação a partir de agora.

Hoje há mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro na mesa do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que já demonstrou não ter interesse em avançar com o assunto. O último, apresentado no final de junho como um superpedido reunindo todos os demais que já estão com Lira, trazia uma lista de 23 potenciais crimes de responsabilidade, incluindo o de prevaricação (um crime contra a administração pública, que ocorre quando um agente público deixa de cumprir seu dever por interesse pessoal), uma vez que Jair Bolsonaro foi informado pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda, sobre a pressão por propina na compra de uma vacina contra a covid-19. Embora tenha assegurado aos irmãos Miranda que iria investigar, o presidente não deu nenhuma ordem nesse sentido.

As ruas começaram a ganhar expressão em maio, especialmente com o papel que a CPI da Pandemia passou a exercer apontando as responsabilidades do presidente sobre o caos na saúde. Protestos organizados pela esquerda levaram milhares de brasileiros às manifestações, especialmente nas capitais do país, em três ocasiões, mas ainda sem a adesão de partidos de centro ou da direita. É nesta encruzilhada que o Brasil se encontra, com os maiores partidos resistindo a se unir aos protestos, hoje dominados por eleitores do ex-presidente Lula.

Em seu livro O povo contra a democracia, o professor Yascha Mounk lembra que na maioria dos países os populistas só alcançam o cargo máximo porque seus adversários fracassam em concluir um pacto eleitoral. “Embora seja natural presumir que a ameaça autoritária possa nos ajudar a enxergar as coisas com mais lucidez, o oposto também é verdadeiro: aflitos e apavorados, os adversários dos populistas começam a fazer o jogo político da pureza, impondo testes… recusando-se a abraçar antigos aliados do populista”, diz ele.

Um passo importante foi dado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que desde abril sinaliza que pode votar em Lula num eventual segundo turno com Bolsonaro. “Quem não tem cão caça com gato”, afirmou Cardoso. Nomes cotados para disputar as eleições de 2022 ouvidos pelo EL PAÍS nos últimos meses tinham claro que a união contra Bolsonaro é irreversível e não descartam abrir mão de candidatura em algum momento da corrida eleitoral para evitar que ele avance ao segundo turno.

O objetivo é evitar a reeleição de Bolsonaro, onde ele dobraria a aposta nas quebras democráticas, como aconteceu em outros países governados por líderes radicais. “Todos os Governos autoritários atuais, seja na Venezuela ou na Hungria, foram degradando aos poucos a democracia no primeiro mandato e o desmonte final veio no segundo”, lembra Pedro Abramovay, diretor da Open Society.

“Bolsonaro não tem convicção democrática, ele aceita [a democracia] por questão estratégica”, diz o cientista político Jorge Zaverucha, professor da Universidade Federal do Pernambuco. “Ele fica esperando para, se um dia os ventos soprarem para uma solução autoritária, ele embarcar nela”, acrescenta. À espera de tempestades, Bolsonaro avança em seus propósitos. Muitos brasileiros os percebem. E os temem.
Afonso Benites, Carla Jiménez, Felipe Betim. Marina Rossi, Naiara Galarraga Gortázar, Regiane Oliveira, Jamil Chade