terça-feira, 18 de junho de 2024

Retrocessos na função social da terra

Nas últimas semanas, duas propostas legislativas, apresentadas em casas do Congresso Nacional, suscitaram inquietações sociais e debates porque, para muitos, usurpam direitos sociais historicamente reconhecidos.

Uma, que tem por objetivo declarado privar os que são beneficiados pela reforma agrária de direitos a ela vinculados. Os relativos a medidas de apoio à consolidação dos assentamentos, necessárias a que a reforma produza os efeitos sociais e econômicos a que ela se destina. A outra, a emenda constitucional que trata das terras de marinha e supostamente privatiza as praias brasileiras.

 


As duas propostas se situam na concepção de ministro do governo Bolsonaro, expressa na reunião do ministério de 22 de abril de 2020: aproveitar a distração da mídia e da população com a pandemia para deixar a boiada passar por baixo das formalidades da lei, através do recurso às normas infralegais e desburocratizar o trato da questão ambiental.

Variante desse disfarce, o Projeto de Lei nº 709/2023, apresentado na Câmara dos Deputados, bloqueia o acesso aos benefícios legais aos que tenham invadido a terra para obtê-la.

O endereço confessado é o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas o serão também os proprietários de milhões de hectares de terras que não conseguiram produzir documentação que legitimasse o suposto direito quando chamados a fazê-lo pelo governo federal. Nada impede que os movimentos sociais pleiteiem na Justiça que equivalente medida os alcance, como os benefícios fiscais, favorecimento e financiamentos e outros benefícios.

O regime militar separou propriedade da terra e propriedade do capital, isto é, das construções, equipamentos, plantações, o que é feito pelo trabalho. E o fez para desbloquear o desenvolvimento capitalista no campo, como outros países o fizeram.

O Estatuto da Terra, de novembro de 1964, estabeleceu os fundamentos institucionais da reforma agrária. Também sociais porque episódio da revolução burguesa no Brasil. Um empresariado que desconhece os fundamentos sociais de seus interesses de classe não percebe que ao opor-se à reforma opõe-se a si mesmo e ao futuro do capitalismo entre nós. O mesmo acontece com os membros do Congresso.

A Lei de Terras de 1850, em nosso direito fundiário, ocupou o lugar que, até 1822, fora da Lei de Sesmarias de 1375 aplicada no Brasil a partir da primeira metade do século XVI. Por essa lei, a Coroa, isto é, o Estado, tinha o domínio da terra e o fazendeiro tinha o direito de uso enquanto tornasse produtivas as terras que lhe fossem concedidas. Se não o fizesse, caíam elas em comisso, retornando à posse da Coroa para redistribuição a outrem.

A Lei de Terras, de 1850, preservou direitos e obrigações do regime sesmarial, como os relativos às terras comunais e ao que se chama de terras de marinha. Sem o saber, o MST reaviva valores de posse e uso da terra que procedem desse regime antigo.

Pela lei de 1850, o Estado, com ressalvas, transferiu o domínio sobre a terra aos particulares, criando um direito de propriedade baseado em posse e domínio. Com isso criou uma anomalia, a de substituir o escravo, como fundamento dos empréstimos hipotecários, pela terra, que não tinha propriamente valor.

Criou a questão agrária brasileira, fundamento de conflitos que o regime militar quis resolver com várias medidas limitantes do direito absoluto de propriedade.

A partir da Revolução de Outubro de 1930, já no âmbito do processo de industrialização e de modernização da economia brasileira, o Estado, paulatinamente, tomou medidas para reaver o domínio da terra, de que abrira mão em 1850.

Fê-lo lentamente a partir do Código de Águas, que separou o solo do subsolo, e portanto restringiu o direito de propriedade à superfície. Mesmo aí, a retomada de domínio prosseguiu em relação, também, à superfície no que se refere às florestas, aos territórios indígenas, aos lugares da memória histórica. O proprietário não pode ser dono de bens insuscetíveis de apropriação privada. Caso das terras comunais, expressamente reconhecidos pela Lei de Terras.

Um último esforço nesse sentido foi o do general Danilo Venturini, ministro de Assuntos Fundiários, em 1983, cujo ministério produziu uma consolidação das leis agrárias do país, como referência da precedência do trabalho, a posse útil, para agilizar a reforma agrária mediante decisão de um juiz de comarca em favor do trabalhador.

As duas medidas, tanto a que bloqueia a reforma agrária quanto a que desfigura o que são terras de marinha, revogam mais de cem anos de esforços políticos do país para reinstaurar a soberania e o domínio da nação sobre o seu território e o uso de suas terras.
José de Souza Martins

Pensamento do Dia

 


O dito de Ulysses

Há a velha máxima de que o próximo Congresso será sempre pior que o antecessor. Vale como tirada de humor autodepreciativo consagrada pelo então presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães, mas não necessariamente como expressão da verdade na história.

Já tivemos ótimas sucessoras de boas legislaturas. Caso da que veio em seguida à da Assembleia Constituinte eleita para o período de 1991-95, substituída por aquela que aprovou o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, as privatizações e a abertura da economia —justiça seja feita e apesar de todos os pesares, iniciada no governo de Fernando Collor.

Os mais antigos nessa lide lembramos bem. Havia fisiologismo, balcão de negócios, corporativismo, malandragem, mas não era a regra.


Havia um centro de convergência suprapartidária que resolvia as crises, encaminhava os temas de interesse nacional e acabava por se sobrepor às malfeitorias que, se não chegavam a ser exceções, eram relegadas às franjas da marginalidade legislativa.

A partir de um determinado momento, por volta de 2003, aquele grupo condutor perdeu espaço para o baixo clero, elevado à condição de cardinalato. Aí a coisa degringolou, e podemos dizer que se concretizou o dito de Ulysses.

Assim chegamos onde estamos: um Congresso de poder máximo com estatura moral mínima, que desrespeita a delegação recebida pelo eleitorado para a tarefa de legislar, fiscalizar e debater assuntos de relevância e urgência nacionais.

Há parlamentares sérios, mas parecem espécie em extinção. Prevalecem não os de quinta série, como se diz para infantilizar os "sem noção", mas os de quinta categoria que aceitam votações a jato de temas desprovidos de relevância e urgência para o país.Arthur Lira dá o tom da continuidade de um Parlamento cujo poder se submete a interesses paroquiais, ideológicos e fisiológicos desconectados das necessidades da população.

Convívio com a maldade

O pai gostava de contar histórias para sua filha antes de dormir. Se fosse o caso, cantava canções de ninar: uma pessoa normal, plena de dedicação. Tudo aparentemente de acordo com a convivência familiar, como se esse cotidiano fosse a regra, não admitindo nenhuma exceção. No entanto, seu trabalho de policial já tinha sofrido uma grande alteração, tanto em termos financeiros como de prestígio. A partir do momento em que os uniformes pretos da SS passaram a frequentar a sua casa, sua vida já era totalmente outra.

Ascendeu na carreira, exibia uma eficiência acima do comum no genocídio de judeus, homossexuais e ciganos, tendo também se destacado no assassinato de deficientes mentais. Tornou-se, por seus feitos, comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor. Seu nome era Franz Stangl. Mais propriamente poderia ser denominado de especialista no culto da morte e em sua organização em uma máquina de extermínio. No entanto, continuava a ser um pai carinhoso. Nele conviviam a aparente doçura do pai e o monstro, dedicado, em outro sentido, à maldade.

Finda a guerra, fugiu para a Síria, onde pôde novamente pôr sua “qualificação” a serviço do Exército e de seu serviço de inteligência, pois, sendo um especialista da tortura, poderia bem vender os seus préstimos. Ademais, continuaria colaborando com o extermínio dos judeus, naquele então lutando pelo estabelecimento do Estado de Israel e, depois, em sua consolidação. Mudou de lugar, mas não de convicção. No entanto, um alto funcionário sírio quis com ele acertar o seu casamento com sua filha, prestes a completar 14 anos. Não querendo comprometer o seu futuro, conseguiu graças a seus parceiros nazistas fugir para o Brasil, onde se tornou um trabalhador da Volkswagen. Na ocasião, o pai primou sobre o monstro!

Nesse meio tempo, um jovem húngaro, Gabor (Gabriel Waldman, "Ingrid, a Filha do Comandante", com prefácio de Celso Lafer e posfácio de Marcio Pitliuk, Buzz Editora), tinha se estabelecido no Brasil, depois de vagar pela Áustria com sua mãe. Eram pessoas abandonadas no mundo, não tendo a quem recorrer. A fome, a solidão e a ausência de esperança os habitavam. Seu pai e toda a sua família tinham perecido nos campos. Viveram no imediato pós-guerra na Hungria, que tiveram de abandonar dada a instalação de uma ditadura comunista. De um mal a outro! Aportaram em nosso país em 1952, em busca de uma nova vida. No entanto, a maldade continuava à sua espreita, embora não o soubesse.

Tendo aprendido nosso idioma, inscreveu-se em um curso de madureza para concluir seus estudos. Eis que, um dia, uma bela mulher loira irrompe em sua sala de aula, cabelos esvoaçantes, e sentase ao seu lado. Foi uma paixão instantânea, tendo como idioma o alemão. Era, ainda, do ponto de vista de seu trabalho, chamado como intérprete em empresas alemãs, conferindo a essas um ar de normalidade. O amor tudo apagava, um nem sabendo nem se interessando pela vida do outro. Os corpos falavam a sua linguagem própria.

Acontece que foi convidado a uma festa de amigos dela, quando, de imprevisto para ele, mas não para ela, foi levado a uma casa vizinha para conhecer os seus pais. Foi a eles introduzido de uma forma cordial, porém um pouco fria. O aperto de mão já anunciava que algo diferente estava presente, embora não fosse diretamente anunciada qualquer anormalidade. Ocorre que o pai era nada mais do que Franz Stangl. Aperto de mão em certo sentido aterrador, pois estava convivendo com uma pessoa direta ou indiretamente responsável pela morte de seu pai e de sua família. Era a mão da morte, travestida da familiaridade de vida.

Gabor, agora Gabriel, nada sabia. Ingrid, sua namorada, estava a par de tudo, embora achasse que estava autorizada a escolher suas companhias. Um judeu na família do monstro. A atração dos corpos, todavia, foi anulada pela decisão paterna de interromper essa relação, com medo, provavelmente, de que sua identidade terminasse por ser revelada. Aos prantos, a bela loira cortou seu relacionamento, deixando o seu companheiro perplexo.

Anos depois, lendo o jornal, terminou por descobrir a identidade de seu potencial “sogro”. Era nada mais nada menos do que o comandante dos campos de Treblinka e Sobibor, enfim revelado em sua crueldade. Foi extraditado para a Alemanha, lá tendo sido julgado e condenado à morte. Ingrid, símbolo do amor e da vida, tinha desaparecido, dando lugar à morte enquanto expressão, por sua vez, do “mal existencial” ou do “mal absoluto”. Significa: fazer o mal pelo mal e não como mero contraponto ao bem.

A natureza humana expõe assim todos os seus enigmas. Uma pessoa em uma situação de normalidade, digamos, pode assumir uma outra faceta, a de alguém dedicado ao culto do ódio e à destruição total do outro. Perigo sempre presente, mormente em situações de guerra ou, mesmo, de calamidade, onde o que há de melhor e de pior no ser humano comparecem conjuntamente. O horror não cessa de estar presente!

Como uma empresa dos EUA moldou a imagem pejorativa da América Latina

Houve um tempo em que a United Fruit Company decidia quem morria e quem vivia nas duras vidas que seus trabalhadores enfrentavam nas plantações de frutas na América Latina. Horários de trabalho desregulados, jornadas extenuantes, condições insalubres. Um tempo em que juízes e políticos eram comprados para defender os interesses da empresa em vários países.

A UFC punha e tirava caudilhos do comando dos países cujos mercados queria dominar. Quando havia revoltas de trabalhadores, a empresa intervinha ao lado dos governos para que suas forças de segurança contivessem, muitas vezes com violência, os protestos por melhores salários e condições de vida.

Assim era a United Fruit Company, uma empresa americana criada em 1899 que moldou uma imagem pejorativa da América Latina para o planeta nos séculos 19 e 20.


Essa mesma imagem se manifesta até hoje no imaginário que o mundo tem sobre a região. Dela dependeram gerações de trabalhadores. E a ela se pode atribuir uma dura herança deixada por essas terras: a de que somos uma região de mão de obra barata, quase escrava, destinada a produzir complementos à economia mundial e exposta a uma intempérie política constante.

Foi por causa da UFC que os países do sul das Américas ficaram conhecidos com a infeliz expressão depreciativa "repúblicas das bananas", sinônimo de imaturidade política, corrupção e pobreza.

Nesta semana, uma notícia alentadora veio à tona. Um júri da Flórida decidiu que a Chiquita Brands (nome atual da UFC) é responsável por oito assassinatos cometidos por um grupo paramilitar de direita que a empresa ajudou a financiar em uma região fértil de cultivo de bananas entre 1997 e 2004. Isso mesmo, para defender terrenos de cultivo, a empresa deu dinheiro para as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), um grupo conhecido por terríveis massacres no interior do país.

A literatura da região tem sido um território fértil para a reflexão sobre os aspectos negativos que a United Fruit Company deixou em nossas culturas. Nada menos que quatro prêmios Nobel se dedicaram a chamar a atenção para as consequências de suas ações nos países latino-americanos.

No celebrado "Cem Anos de Solidão", Gabriel García Márquez romanceou a terrível repressão da empresa em La Ciénaga, em 1928, ocorrida quando ele tinha apenas um ano, mas cuja história amedrontava sua geração.

Em "Tempos Ásperos", o peruano Mario Vargas Llosa mostra como a UFC, aliada aos EUA —e por sua vez auxiliados pela ditadura do sangrento ditador dominicano Rafael Trujillo—, derrubaram o governo progressista de Jacobo Árbenz, em 1954.

Outros dois Nobel tratariam do tema. O guatemalteco Miguel Ángel Asturias, em sua "Trilogia Bananera", integrada pelas obras "Viento Fuerte", "El Papa Verde" e "Los Ojos de Los Enterrados", e o chileno Pablo Neruda, em "Calero, Trabajador del Banano".

Outras penas se dedicaram a expor os avanços da UFC na vida econômica e social das Américas. A do costa-riquenho Carlos Luis Fallas ("Mamita Yunai" e "Limón Blues"), a do mexicano Francisco Martín Moreno ("Las Cicatrices del Viento"), a do colombiano Álvaro Cepeda Samudio ("A Casa Grande") e a do hondurenho Ramón Amaya Amador ("Prisión Verde").

A leitura dessas obras traz a reflexão: a América Latina seria diferente se não tivesse passado tanto tempo sob a influência de uma empresa bananeira de tamanho poderio?

Só resta o longo prazo aos gaúchos

O Rio Grande do Sul ainda vive sob o signo da emergência. Vai demorar um tempo para que tudo seja limpo, o básico seja reconstruído e que a vida volte ao normal, com aquela rotina de escola, trabalho e lazer. Embora nem todos tenham sido atingidos do mesmo modo, há um sentimento comum de perda e haverá um empobrecimento maior do que havia antes da tragédia. Com tantas tarefas e problemas ali na esquina, fica difícil vislumbrar o que será o futuro. Mas, para superar de maneira estrutural o imenso desastre que ocorreu, a única saída é construir uma resposta de longo prazo.

Evidentemente que as questões de curto prazo vão dominar, por alguns meses, a agenda gaúcha. Não só porque é preciso reconstituir a economia e a normalidade da vida cotidiana, mas também porque os primeiros passos são importantes para os demais. Uma medida básica é garantir renda às pessoas para que não haja um colapso econômico.


A infraestrutura mais basilar deve ser reconstruída logo, para não inviabilizar todo o restante das atividades. E, mais importante ainda, deve-se definir, o quanto antes, qual será o modelo mais amplo de reconstrução, a ser implementado por um tempo bastante longo.

Em outras palavras, se mil passos começam no primeiro, o início também tem de vislumbrar aonde se quer chegar. Neste sentido, o planejamento da reconstrução vai passar basicamente por duas questões. A primeira diz respeito aos fins, e a segunda, aos meios. Começando pelas finalidades, elas dependem, antes de tudo, de um bom diagnóstico. Mesmo se sabendo da pressa em querer resolver uma situação dramática, não se pode colocar o carro na frente dos bois, o que em políticas públicas significa determinar as soluções antes de identificar claramente e de forma precisa os problemas.

O diagnóstico do desastre passa fortemente pela análise da infraestrutura destruída, sejam as pontes, estradas e mecanismos de contenção de enchentes, sejam as moradias, as empresas e equipamentos públicos (com destaque para as escolas). A reconstrução, porém, não é simplesmente para voltar ao ponto anterior. O principal diagnóstico é que, como há grandes possibilidades nos próximos anos de novos desastres climáticos, será necessário ter um novo modelo de ordenação espacial do Rio Grande do Sul, que significará ter edificações e formas de organização urbana capazes de lidar ou mitigar os efeitos da ação de fenômenos naturais.

Para além de uma nova forma de ordenar o território, o respeito a normas ambientais mais rígidas do que as atuais se tornará um imperativo para o Rio Grande do Sul. Esse diagnóstico é o coração da mudança depois do desastre. Neste momento de desgraça e luto, talvez a grande maioria já concorde com essa necessidade. Só que não custa lembrar como o passar do tempo pode levar ao desejo de se voltar à realidade anterior, um grande perigo que já aconteceu dezenas de vezes no Brasil após tragédias naturais. O problema é que os gaúchos estão condenados a pensar, desde já, no longo prazo.

Uma forma de consolidar um diagnóstico que aponte para as imensas transformações que terão de ocorrer no modelo de desenvolvimento gaúcho é trazer especialistas internacionais e ouvir os estudiosos brasileiros. Eles devem mostrar as tragédias naturais ocorridas em outros países e as medidas que foram tomadas, geralmente amplas e profundas, para se evitar a recorrência ou ao menos para mitigar os efeitos. Tais pesquisadores e gestores têm de apresentar os dados de forma bastante clara, realçando todas as consequências de se tentar permanecer no antigo normal. Além disso, a comunicação deve ser persuasiva e difundida a todos os grupos sociais, num processo que certamente não terminará nos próximos meses. É como na questão da vacinação: regularmente, será necessário ter campanhas públicas no Rio Grande do Sul para lembrar que os caminhos de mudança serão percorridos por muito tempo - novamente, a relevância do longo prazo.

A capacidade de os diagnósticos convencerem a sociedade gaúcha depende também dos prognósticos apresentados. Isso vai exigir a discussão com os atores sociais de um planejamento de ações, com objetivos bem definidos e metas claras, apresentando as consequências de não se tomar determinadas decisões. A temporalidade das medidas, com um calendário de curto, médio e longo prazo, é outro elemento central aqui, tanto para que todos reorganizem sua vida quanto para compreenderem a profundidade das mudanças. É preciso, ademais, realçar que novos comportamentos terão de ser adotados, sem que isso signifique necessariamente uma redução do bem-estar social. Até porque não há nada pior do que os efeitos de desastres naturais.

É provável que, no balanço final dos diagnósticos e prognósticos, se constate que a necessidade de transformação no padrão de desenvolvimento riograndense já deveria ter sido notada antes. O Rio Grande do Sul envelheceu, tem perdido população, vivido uma crise fiscal há décadas, mas seu modelo econômico e social conservou-se sem grandes propostas de inovação. Agora se sabe que sem uma âncora ambiental, que perpasse todas as esferas da vida social, será impossível criar um novo paradigma. Está aí a grande tarefa dos gaúchos: chegar efetivamente ao século XXI que suas elites e eleitores teimavam em não encarar.

As finalidades definidas após o desastre climático não serão alcançadas sem se construir os meios adequados. Entra aqui um conceito-chave para o sucesso da reconstrução gaúcha: a governança colaborativa. Ela tem como objetivo articular continuamente, de forma institucionalizada e mirando o longo prazo, o processo de transformação pós-tragédia. Colaboração, é bom que se diga, não significa ausência de conflito. Trata-se, ao contrário, de um modelo que busca construir os consensos possíveis, gerenciar de forma eficiente as divergências e convencer a todos que o modus operandi colaborativo é o mais efetivo na garantia de uma solução social ótima, que não é perfeita, mas que gera menos prejuízos a cada qual e ganhos comuns mais consistentes e de longa duração.

Os pontos estratégicos da governança colaborativa são a criação de arenas de discussão e deliberação, a montagem de um processo decisório transparente e capaz de reduzir as rusgas inúteis e, como corolário, a construção de uma cultura de confiança e colaboração entre atores que têm muitas vezes interesses e visões de mundo diferentes. Com o tempo, é possível descobrir pela prática colaborativa que há muitos caminhos possíveis que são essenciais a todos, pois o desastre climático realçou o quanto os gaúchos, mesmo com suas assimetrias de vários tipos, convivem na mesma embarcação riograndense. E esse barco vai afundar se não encontrarem formas de cooperar, especialmente com vistas a transformações de longo prazo.

Dois são os elos mais importantes desta modelagem governativa. O primeiro relaciona-se com a Federação. É fundamental construir um modo de colaboração institucionalizado entre a União, o estado e os municípios riograndenses. No curto prazo, o governo federal tem sido muito prestativo, muito mais do que foram outros em tragédias recentes - como o caso do governo Bolsonaro, mestre em se eximir das responsabilidades coletivas. No entanto, dadas as divergências políticas numa sociedade fortemente polarizada, ao que se soma o contexto eleitoral de 2024, é imprescindível construir uma solução que vislumbre decisões e formas de implementação para além dos mandatos dos atuais governantes. Modelos de conselhos federativos e/ou autoridades independentes são possíveis respostas, uma vez que são capazes de fortalecer a cooperação e gerar um pacto por uma transformação que vai exigir anos de ação federativa coordenada e muita generosidade colaborativa.

A colaboração terá ainda que guiar a relação do setor público com a sociedade e os entes privados. Há setores políticos hoje que jogam em prol do descrédito da política e dos governos, apostando que o caos e o voluntarismo produzirão uma solução melhor a uma tragédia gigantesca. Isso é pura ignorância ou uma forma populista de enganar os eleitores - aliás, Bolsonaro foi desastroso no maior problema coletivo de seu mandato, que foram as 700 mil mortes por covid-19. A reconstrução da Europa do pós-Guerra ou da Holanda pós-desastres naturais exigiu um governo forte, competente e entrelaçado com os atores sociais, por meio de muito diálogo baseado em diagnósticos sólidos e implementação azeitada. Ressalte-se esse último ponto: sem um modelo que fortaleça os mecanismos de implementação, os planos e a legitimidade da reconstrução se perdem ao longo do caminho.

O Rio Grande do Sul sempre se caracterizou por uma forte reverência ao passado. As histórias das guerras, os hinos, roupas e festas veneravam a história para construir a identidade gaúcha. Nada contra as tradições, que são importantes para encontrarmos nosso lugar no mundo. Mas o desastre climático de maio de 2024 condena o povo riograndense a viver, daqui para diante, em prol do longo prazo, que se torna a sua maior (ou única?) tábua de salvação. Só um futuro planejado e constantemente debatido pode evitar o retorno das tragédias de grandes proporções e recriar o Rio Grande do Sul do século XXI, aprendendo com os erros para ter novas glórias, que unam colorados e gremistas.