segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A bunda

Pudicos me desculpem: o título não admite concessões. A meu favor, está a obra “Amor Natural” de Drummond.

Drummond era a expressão do homem comum, funcionário público, formal, inspirava respeito pelo talento e por sentimentos reverenciais. Sua vida não foi uma aventura apaixonada a exemplo de Vinicius de Moraes.

Na obra, “Amor natural”, surpreende com poemas repletos de paixão, sensualidade, erotismo, sexo, temperados pelo amor e pelas mais humanas sensações. Em “A bunda, que engraçada” descreve: “A bunda são duas luas gêmeas em rotundo meneio/Anda por si na cadência mimosa, no milagre de ser duas em uma, plenamente”.

O título, também, está protegido pela Vênus Calipígia, escultura greco-romana com os olhos voltados para as belas nádegas. Não se sabe ao certo se a obra está no Museu Arqueológico Nacional, em Nápoles, ou foi destruída no bombardeio de 1945 (Dresden).

Pois bem, a bunda, nobilitada pela história, poesia e intitulada numa das crônicas de imortal Carlos Heitor Cony como “A preferência nacional ao longo dos tempos” (sem essa de “sexismo”), acaba de ser profanada pelos tentáculos da monstruosa corrupção brasileira.

Do antiga “bola” ao pixuleco, passou-se para o crime organizado a partir do conluio entre autoridades púbicas e empresários poderosos que usavam mecanismos das finanças internacionais até formas grotescas de guardar grana.

Em 2017, foi a vez do bunker/Geddel; em 2005, conselheiro do Tribunal de Contas de Mato-Grosso rasgou cheques e jogou no lixo; em 2007, os fundadores da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, guardavam dinheiro na Bíblia; em dezembro de 2015, choveu dólares no Recife; em 2005, o pioneiro de guardar dinheiro na cueca foi assessor do Deputado José Nobre Guimarães (PT), Irmão de José Genoíno, na época Presidente do PT.

O escândalo apoteótico foi protagonizado pelo senador Chico Rodrigues (DEM Roraima): escondeu o dinheiro, segundo o Ministro Luís Barroso “bem no interior de sua vestes íntimas, deixo de reproduzir tais imagens neste relatório para não gerar maiores constrangimentos”.

Estarrecedor! A canalha assaltou o dinheiro da pandemia. Estavam devidamente organizados: operadores, empresas fantasmas e “fornecedores” de estados e municípios. Corruptos e assassinos. O eleitor, diz pesquisa realizada pelo Valor Econômico, quer prefeitos honestos. Será?

Em obra recente “Corrupção e Governo” (Editor FGV 2020), Susan Rose e Bonnie Palifka, advertem que a grande corrupção ocorrem em “compras e concessões projetos superdimensionados, pelas comissões que geram ou pelos votos que permitem comprar”.

Atenção autoridades: 2021 pode ser o ano da CUVID-2020, vírus gerado nas entranhas dos corruptos.

Gustavo Krause

O que o golpe de Fujimori em 1992 ensina ao Brasil de 2020

Há 28 anos, em abril de 1992, o então presidente Alberto Fujimori ― eleito dois anos antes como outsider que prometia lutar contra o establishment político ― surpreendeu os peruanos com uma transmissão em cadeia nacional às 22h30 da noite. Analisou a situação do país e reclamou da “velha política”, da atitude obstrucionista do legislativo controlado pela oposição e do judiciário ― grupos que, ele alertava, se uniam para impedir a transformação do país e o êxito de sua gestão. Reclamou do “parlamentarismo anti-nacional” contaminado pelos “vícios do caciquismo e clientelismo”. 

A justiça politizada e corrupta, segundo ele, era responsável pela “inexplicável liberação” de narcotraficantes e terroristas, que desestabilizaram o país e impossibilitaram a construção de uma “democracia real.” Fez uma pausa para tomar um gole d'água e anunciou calmamente que era necessário assumir uma “atitude excepcional” para promover a reconstrução nacional, que envolvia a suspensão do Congresso e da Constituição, a “reorganização total” do judiciário, do Ministério Público e da Controladoria Geral. 

Tanques cercaram o parlamento, e numerosos jornalistas e deputados foram presos ou sequestrados, entre eles os presidentes da Câmara e do Senado. Em momento dramático, o apresentador da Rádio Antena, emissora peruana, relatou ao vivo a entrada de policiais no estúdio e, antes de o sinal ser cortado, ainda chegou a pedir à população que se manifestasse contra o golpe de Estado. Em vão. 

Tinha início, naquele momento, a ditadura, marcada por violações sistemáticas de direitos humanos, censura aos jornais, um judiciário controlado pelo presidente, corrupção sistemática, isolamento internacional e um líder que tentou se perpetuar no poder. Fujimori apostou tudo e ganhou: a maioria da população apoiou o golpe, e sua taxa de aprovação inicialmente subiu quando ele começou a governar por decreto. Apesar de sua condenação e prisão em 2008 por violações de direitos humanos, uma pesquisa de opinião em 2012 revelou que 47% dos peruanos acreditava que a ruptura constitucional foi necessária diante das ameaças que o Peru encarava naquela época ― sobretudo a atuação dos grupos guerrilheiros Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) e Sendero Luminoso. 

Não surpreende, portanto, que o golpe de Fujimori seja objeto de inspiração e admiração para líderes políticos com ambições autoritárias até hoje ― enquanto a maioria dos presidentes autoritários, como Chávez, Ortega e Erdogan, precisam de anos no poder para erodir a democracia, o peruano o conseguiu em apenas dois. 



O caso do Peru mostra que a resistência popular contra golpes é menor quando existe uma ameaça, real ou imaginária, assustadora para a população a ponto de ela estar disposta a abrir mão dos seus direitos políticos para livrar-se dela. O presidente peruano soube magistralmente alimentar o medo do caos para poder justificar o golpe como medida estabilizadora. 

A arte do golpismo, portanto, consiste em convencer a maioria da população de que alguma ameaça é tão séria que medidas excepcionais ― leia-se, uma ruptura constitucional ― torna-se necessária, mesmo quando, como no caso peruano, há pouca evidência de que a dissolução do Congresso facilitou o combate contra o terrorismo. Pelo contrário. Por meio do golpe, Fujimori destruiu sua maior fonte de poder no combate às guerrilhas: sua legitimidade constitucional. Como o golpe nunca pode ser visto como uma iniciativa motivada pelo desejo de concentrar o poder, mas sempre como uma reação a algum problema supostamente grave, o primeiro passo de qualquer líder autoritário é a invenção e a promoção de ameaças. 

Ao redor do mundo, líderes com ambições autoritárias adotam a mesma estratégia. Nos Estados Unidos, Donald Trump não se cansa de evocar as ameaças da China, do Islã e dos imigrantes. Na Hungria, Viktor Orbán há anos promove o medo na população em relação aos imigrantes, à União Europeia, aos gays e a George Soros. Na Venezuela, Chávez sempre alertava para a ameaça imperialista. No Brasil, o presidente Bolsonaro induz os seguidores a protestar contra as medidas de distanciamento social que, segundo ele, representam uma ameaça contra a liberdade, a economia ou mesmo a democracia. Por isso, os protestos contra as medidas de distanciamento social não são uma coincidência.

Pelo contrário, são produto de uma estratégia sofisticada de indução de medo constante e mobilização contra um inimigo ― os governadores, o STF, a China, a OMS e o comunismo, como recentemente escreveu o chanceler Ernesto Araújo. Ante qualquer desafio que surgir em um país ― a imigração, a mudança global do clima, o desemprego, a globalização, uma pandemia, o aprendiz de autoritário se perguntará como ele poderá transformar a dificuldade em algo realmente assustador para grande parte da população. 

A incitação da insegurança coletiva pela indução do medo é, portanto, tarefa básica de qualquer autoritário, para poder se projetar, no final das contas, como o salvador da pátria que protege a população das muitas ameaças, e justificar medidas excepcionais para supostamente defender o país. O maior medo de qualquer líder autoritário é ficar sem ameaça ou inimigo: sem circunstâncias excepcionais, não haverá apoio para medidas excepcionais. 

É por isso que a pandemia é uma grande oportunidade para muitos líderes com ambições autoritárias ao redor do mundo ― como na Hungria, onde o presidente aproveitou da crise sanitária para instaurar uma ditadura. Afinal, como Fujimori compreendeu há quase 30 anos, pessoas assustadas sentem mais necessidade de direção, proteção e ordem. Quando a população está profundamente insegura em relação ao futuro, tende a apoiar medidas que acredita, com ou sem razão, que a salvarão ― mesmo que isso signifique abrir mão dos seus direitos políticos.

Memorial à corrupção é coisa nossa

 


O dia em que atendi um morto ao telefone

Esta é uma história real. Os eventos descritos aconteceram no Rio em 1976. Para não ferir suscetibilidades dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Mas, em respeito à História, o episódio está sendo relatado exatamente como aconteceu.

O aparelho de telefone tocou no fundo da redação. Na época, as redações eram quase inteiramente ocupadas por aparelhos de telefones. Um repórter atendeu e gritou, tapando o bocal:

— Quem tá fazendo o Funéreo?

Aqui é preciso explicar. Naquele tempo, todos os jornais publicavam uma coluna de falecimentos do dia. No matutino em questão, a seção era feita sempre pelo mesmo repórter, Astênio Rosário, um setorista de mortos anônimos. Ele ganhou o apelido de Funéreo. Por extensão, a coluna passou a chamar-se Funéreo também. Funéreo, o repórter, gostava de ser o responsável pelo Funéreo, a coluna. O problema é que, como todos nós, Funéreo também tirava férias. No caso, o repórter Funéreo. A coluna Funéreo nunca tirava férias. Alguém tinha que redigi-la na ausência do titular. O substituto, geralmente, era o estagiário mais inexperiente da equipe. Naquele momento, eu mesmo.

— Sou eu! — respondi.

Como já disse, alguém, atendendo ao telefone, tinha perguntado quem estava fazendo o Funéreo.

— Tem um morto aqui querendo falar contigo.


Imaginei que fosse piada. Um daqueles trotes que infernizavam a vida dos estagiários, do tipo “vá até a oficina pegar a calandra”. Ah, o leitor não conhece o trote da calandra? Outro dia eu explico. Agora, tenho que atender o telefonema de um morto.

— Aqui é o general Olímpio Cerqueira.

Gelei! Generais, em 1976, metiam medo. Aquele general tinha sido o meu morto principal do dia. Confesso que era um pouco relapso na minha tarefa funérea. Deveria frequentar velórios, pegar informações com a família do defunto. Mas eu fazia tudo burocraticamente. Ia na secretaria do cemitério, pedia para ver os atestados de óbito do dia, anotava os dados e estava pronta a coluna. Torcia para encontrar algum atestado com muitas informações para ter meu personagem principal. Era o caso do general. O atestado dizia até que a causa mortis fora um acidente no qual a vítima tinha perdido um dedo.

— O senhor me matou hoje.

— Mas um general Olímpio Cerqueira morreu mesmo. Eu li o atestado de óbito. Morreu num acidente de carro. Tinha 65 anos. O senhor deve ser um homônimo. O meu general tinha três filhos.

— Ainda os tenho.

— Era casado com uma dona Honorina.

— É a minha mulher, que o senhor enviuvou precipitadamente.

— Então, vai me desculpar, general, mas o senhor está enterrado no São João Batista.

—O que está enterrado é meu dedo amputado no acidente.

Alguns impropérios depois, entendi que o documento lido por mim não era um atestado de óbito, mas uma declaração de sepultamento parcial. Pois é, isso existe! No dia seguinte, o jornal publicou a única correção de toda a história do Funéreo: “Dado como morto na edição de ontem, o general Olímpio Cerqueira está vivo e passa bem.”

O saldo positivo é que eu fui deslocado de função. Passei a cobrir o cotidiano do Jardim Zoológico. Meu chefe me passou uma lição: com general não se brinca.
Artur Xexéo 

Sobre guerras

As guerras não têm memória e ninguém se atreve a decifrá-las, até não restarem mais vozes para contar o que aconteceu, até que chega o momento em que não as reconhecemos mais e elas retornam, com outra cara e outro nome, para devorar o que restou
Carlos Ruiz Zafón, 1964-2020

 

As ondas, as ondas

Talvez não dê para vê-las no horizonte ou talvez muitas pessoas simplesmente tenham optado pela cegueira. Contudo, elas espreitam o Brasil despeitado que finge não existir pandemia. Nesse Brasil despeitado, o mal que aflige o mundo acabou como que por milagre e não haverá de voltar, porque, afinal, Deus é brasileiro independentemente da fé. As ondas, as ondas. "O mar, o mar", o livro de Iris Murdoch que li repetidas vezes na adolescência. Divago.


As ondas existem, como já era previsível no início do início. O vírus é novo, a pandemia é jovem — tem menos de dez meses, quiçá ainda não tenha aprendido a andar sem bambolear. Mas na cabeça de muitos nós estamos “no meio da pandemia”, tal qual se escuta por aí. Na cabeça de muitos já estamos no fim da pandemia porque a vacina está logo ali, e quando a vacina vier tudo se resolve porque é assim que acontece nos filmes sobre pandemias imaginárias. Na cabeça daqueles que lotam as praias e os bares sem o uso de máscaras, que se aglomeram com parentes pois todos estão tomando muito cuidado e não vai acontecer nada, ora, vão a festas ou organizam eles próprios tais eventos em ambientes fechados, pouco ventilados, quem é o vírus? Quem o vírus pensa que é? Somos todos imunes, estamos todos protegidos, nada nos atinge, quanta gente histérica a fazer birra com o resfriado alheio. Mortes? Ah, não vamos falar sobre isso. Que assunto mórbido, que pessoa amarga você é, como ousa tirar a alegria da liberdade recém-conquistada. Veja, fulano teve Covid e está super bem, já até voltou a trabalhar, o vizinho me contou. A sicrana então, teve foi nada, nem um espirrozinho. Estamos livres! Vamos viver a vida!

Mas, as ondas, as ondas. Elas aí estão. Na Europa, é possível enxergá-las com nitidez pois nesses países houve controle da epidemia, o número de casos caiu e o de mortes também. Logo, o recrudescimento é demasiado nítido. Por esse motivo, governos reagem com novas medidas restritivas. A França com seu toque de recolher entre as 21 horas e as 6 horas da manhã, algo feito apenas durante as duas guerras do século passado. Disso alguns fazem troça e perguntam, “mas será que o vírus só circula durante a noite?”. Acham muita graça e têm nas redes sociais a confirmação de que de fato saíram-se com uma tirada genial. Que lacrada fabulosa. Enquanto isso, pessoas morrem e as sequelas se amontoam. Encefalopatias, problemas vasculares, disfunções neurológicas, fibroses pulmonares.

Nos EUA, onde jamais houve um término da primeira onda antes que chegasse a segunda, agora se convive com o espectro da terceira.

Ainda assim, já foi determinado pelo presidente que o vírus é nada, ele o venceu. Pouco importa que tenha tido acesso a tratamentos que sequer foram aprovados pela agência de vigilância sanitária, a Food and Drug Administration. Importa menos ainda que esses tratamentos não estejam ao alcance da população. A economia não pode parar, as pessoas têm de aproveitar a vida, ninguém deve ser submisso ao vírus. Pouco a pouco os hospitais voltam a encher em várias localidades que, inclusive, trataram o vírus com o devido respeito. Mas, como ocorre no Brasil, quando as pessoas viram estatística — mais um caso de Covid-19, mais uma internação, mais um falecimento — elas são rapidamente esquecidas. A não ser, é claro, se forem parentes ou amigas de alguém. E as pessoas sempre são parentes ou amigas de alguém. Qualquer pessoa, inclusive aquelas que se julgam imbatíveis e que acreditam que as tragédias só atingem os outros.

Querendo ou não, as novas ondas haverão de afetar as economias. Não à toa, nessa semana das reuniões anuais do FMI e do Banco Mundial não se fala sobre outra coisa. Como ficarão os cenários à frente para a economia mundial? O que fazer com um mundo de dívidas, e como fazer em um mundo de dívidas? E a desigualdade, como vamos freá-la? Há alguma chance de freá-la?

“Existe hoje uma tendência a criticar e rebater de modo quase instintivo tudo o que soa inconveniente”. Esta frase está no primeiro parágrafo do décimo capítulo de "Ruptura", meu mais novo livro. De que trata o capítulo? Das quarentenas intermitentes. Das ondas, das ondas.

Oração pela pátria

Pai nosso que estás no Céu, santificado seja o vosso nome!

Pedimos as suas bênçãos, Senhor, nesse tormentoso ciclo em que nosso país registra mais de 150 mil mortos de uma pandemia que contaminou até agora 5,1 milhões de pessoas.

Ouça nossa prece, Senhor, antes que seja maior a mortandade.


Senhor, habitamos um belo território com a maior reserva de água doce do mundo, mas nossos biomas terrestres – Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado, Caatinga e Campos do Sul – padecem de secas e queimadas provocadas por espíritos maldosos. Nunca se viu tanta destruição.

Pero Vaz de Caminha tinha razão, Senhor, na carta ao rei Dom Manuel sobre a terra descoberta por Pedro Álvares Cabral: “em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Na verdade, Senhor, mãos sorrateiras também surrupiam parcelas das nossas riquezas.

Agradecemos, Senhor, pela extrema generosidade dessa terra tão rica, de gente assentada em “processo de equilíbrio de antagonismos”, como ensina Gilberto Freyre: as culturas europeia, indígena e africana; o católico e o herege; o jesuíta e o fazendeiro; o bandeirante e o senhor de engenho; o paulista e o emboaba; o pernambucano e o mascate; o bacharel e o analfabeto; o senhor e o escravo”.

Essa convivência formou um caráter cordial, embora também carregue traços negativos, como falta de iniciativa, de decisão e de firmeza.

Que venha a nós o vosso Reino!

Que venha logo, Senhor. Antes que o nosso Pantanal seja tragado pelo fogo e que a boiada passe com a ilicitude de gente sem escrúpulo. Antes que a extrema pobreza massacre a base da pirâmide social. Que se derrube para sempre esse muro que separa “nós e eles”.

A velha luta de classes, Senhor, foi aposentada após a queda do muro de Berlim, em 1989, mas figuras populistas ainda defendem a litigiosidade social, a “revolução”, o fim das elites e do ideário progressista.

Dai-nos, Senhor, bom-senso para evitar a intolerância, condenação e até morte de quem discorda de métodos como invasão de propriedades, depredação de patrimônios, incitação à violência. Queremos paz, nem devastação de patrimônio nem morte.

Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.

Que a vossa vontade, Senhor, chegue para elevar os menos favorecidos e dar aos ricos nobreza de espírito para minorar desigualdades.

Perto de 15 milhões de brasileiros estão desempregados, Senhor, e outros milhões não têm comida nos lamacentos espaços das periferias das grandes cidades onde se desenha a estética da miséria.

O pão nosso de cada dia nos daí hoje. Pão que é farto para uns e escasso para outros.

Rogamos, Senhor, que injete na cabeça dos homens públicos o dever sagrado de cumprir sua missão sem manchas. Na eleição de novembro, Senhor, ilumine a consciência dos candidatos.

Perdoai as nossas ofensas. Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.

Perdão, Senhor, para as ofensas do nosso cotidiano, na deselegância da interlocução, nas palavras e gestos mal-educados. Mas assaltantes do Estado, das milícias do poder invisível, precisam prestar contas à Justiça.

E não nos deixei em tentação, mas livrai-nos do mal.

Amém!

Gaudêncio Torquato

Dinheiro nas nádegas, a pátria no coração

Convivi cordialmente com Chico Rodrigues na Câmara. Assim como convivi com Bolsonaro e o próprio Severino Cavalcanti, inclusive depois de sua derrubada.

Uso pouco a expressão “baixo clero” ou mesmo “vale dos caídos” para designar aquelas fileiras numa zona de sombra no final do plenário.

Aprendi na cadeia, como se não bastassem outras experiências, a conviver sob o mesmo teto com pessoas que não escolhi. E aprendi também que alguns deputados simples e discretos tinham muito a me ensinar, como era o caso do piauiense Mussa Demes, que sabia tudo sobre política fiscal.

Bolsonaro nunca foi genuinamente contra a corrupção. Ele integrava o partido em que Paulo Maluf era um dos expoentes. Sua luta era basicamente contra a esquerda, e a corrupção só se tornou interessante para ele quando a percebeu como o ponto fraco do governo petista.

Chico Rodrigues de uma certa forma sabia disso. Num encontro com Bolsonaro, ele declara que o presidente soube encarnar o espírito do tempo, preencher essa lacuna de liderança, defender a família, dar exemplos para a juventude.

Traduzindo o discurso de Chico, ele estava dizendo para Bolsonaro: “Vamos nessa, irmão, é por aí que devemos seguir”.

O resultado não custou a aparecer. Chico era um grande companheiro. Elogiava Bolsonaro, empregou em seu gabinete o primo e amigo de Carlos e ganhou o cargo de vice-líder.

Quando o condecorou, Bolsonaro teve a preocupação de lembrar que Chico estudou num colégio militar. Ambos sabem que existe uma aura de seriedade em torno dos militares e querem tirar todo o proveito dela.

Bolsonaro e Chico são o novo poder. No passado, havia dólares na cueca; agora, a moeda na roupa íntima é o real.



Não sei se seria correto invocar Freud para explicar tanto dinheiro nas nádegas. De fato, o sábio austríaco associava o dinheiro a pulsões anais, mas o fazia de uma forma sofisticada. Freud tentava explicar relações obscuras, apontar as bases essenciais de relações que as aparências escondiam.

No caso de Chico Rodrigues, o exemplo é grosseiro e, por que não admitir?, até malcheiroso. Não se trata de uma substituição simbólica do dinheiro pelas fezes, mas sim de uma fusão concreta de uma equivalência metafórica.

O resultado é que Bolsonaro ficou com a retaguarda descoberta. Já estava após a prisão de Fabrício Queiroz. Fica cada vez mais evidente que subiu ao poder apenas um novo e caseiro método de desviar dinheiro público.

O episódio acontece uma semana depois que Bolsonaro afirmou que acabara com a Lava-Jato porque não há corrupção no seu governo. Na semana em que André do Rap foge para o Paraguai montado numa lei que Bolsonaro sancionou, apesar de, na campanha política, ter se declarado o único comprometido com a segurança pública.

A lei parte de boas intenções, mas foi elaborada pelos políticos, pensando apenas neles, sobretudo em ter um horizonte temporal de prisão preventiva para não caírem na tentação de delatar seus esquemas.

Disse que o André do Rap está no Paraguai porque é um lugar para refletir sobre o Brasil. Projetamos uma carga negativa sobre o Paraguai; uísque e cigarros falsificados, até os cavalos que disparam na largada e param subitamente chamamos de cavalos paraguaios.

Os deputados fizeram uma lei imprecisa, o presidente sancionou, um ministro do Supremo a aplicou cegamente, juízes deixaram de opinar, e a própria polícia, diante da libertação de um preso importante, não soube monitorar.

Esse episódio em si já bastaria para que se tivesse uma visão crítica do Brasil, a partir do Paraguai, que tanto subestimamos.

O que surgiu depois, para completar a semana, é chocante: um nobre senador, literalmente, enchendo o rabo de dinheiro.

Seria engraçado se o dinheiro não fosse destinado a atender às vítimas da Covid-19 e se este governo metido a sério não estivesse destruindo nossos recursos naturais num ritmo alucinante.

Isso só reforça o que escrevi há algum tempo: não há nada mais importante para todos do que combater Bolsonaro. Não estou propondo amar uns aos outros. Vamos sair dessa, depois conversamos, ou brigamos, se preferirem.