Quis, para esse final de ano e a chegada de 2020, lembrar alguma história de meu passado que, em um dia como esse, tivesse o sabor da esperança, após o ano vivido de tormento político e social, de sombras e temores e, o mais grave, de brigas entre amigos e até familiares, envenenados por ideologias sem sentido no mundo da comunicação universal, em que nunca estivemos todos tão próximos.
Encontrei a lembrança no arquivo de minha memória. Foi durante minha estadia na Itália. Em um final de ano como o que viverei novamente agora no Brasil, uma amiga me perguntou se queria acompanhá-la para visitar, em um hospital para pobres, uma jovem africana que vivia, já sem esperança de cura, com um pulmão artificial e que era um exemplo de esperança aos outros doentes.
Era em Gênova. A jovem que havia fugido da África para trabalhar na Itália tinha um sonho naquele final de ano. Um sonho pequeno, mas que a ajudava a continuar viva: que a manhã chegasse para que o sol que entrava pela janela pudesse acariciar seu corpo jovem e ferido, preso naquele pulmão de aço. Eu perguntei por que para ela era tão importante aquele raio de sol em sua pele. Me disse: “Sou africana e para nós o sol é Deus. Ele nos dá a vida e a conserva. Eu me sinto completa e viva quando o sol me abraça”.
Vou comemorar pela vigésima vez meu final de ano neste Brasil que me adotou.
E gostaria que 2020 trouxesse a todos os brasileiros, principalmente aos que mais sofrem a pobreza e a injustiça, um sonho de esperança. Aquele que permitia à jovem africana continuar viva. Não posso esquecer que pelas veias de milhões de brasileiros corre sangue africano e com ele a herança de uma cultura milenar rica em experiências de vida. O Brasil é também um país de sol, que é feliz quando deixam que viva a vida em liberdade sem impor mordaças que humilham sua história.
Tudo o que significa, como começa a acontecer no mundo, retroceder aos tempos do obscurantismo e das frustrações de esperanças e de liberdades já adquiridas é querer roubar o deus do sol ao Brasil, algo que espero ser impossível
E essa herança africana com tudo o que isso traz de luz e sombras, de elos de escravidão e de riqueza humana e espiritual, criou esse país, um dos mais multifacetados em suas crenças e mais próximo ao sol das antigas mitologias com seu simbolismo de vida e de felicidade.
Tudo o que significa, como começa a acontecer no mundo, retroceder aos tempos do obscurantismo e das frustrações de esperanças e de liberdades já adquiridas, com o perigo de recuperar os instintos mais primitivos de violência e de vingança de uns contra outros, dos horrores das guerras reais e verbais, é querer roubar o deus do sol ao Brasil, algo que espero ser impossível.
Vamos nos alegrar que no Ano Novo comecem a aparecer os primeiros sintomas de recuperação econômica dos anos difíceis de desemprego e da queda de milhões de pobres à miséria. Mas que essas melhoras da economia global cheguem também às mesas dos que mais sofreram o açoite da pobreza e não fiquem somente nas dos que menos precisam, porque eles nunca são afetados pelas crises e até as usam para crescer ainda mais.
Para que 2020 possa ser um ano diferente, em que comecem a abrir as portas da esperança de uma melhora para todos, junto com o sol desse sonho que nunca deve se perder de poder viver melhor, é preciso, com a dose de esperança, o alerta da resistência contra os bárbaros que tentam desestruturar esse país assim como contra os que, enquanto dormimos em nossa falta de reação à barbárie, constroem muros de novas escravidões sem que percebamos até nos encontrarmos presos e impotentes.
São dois alertas que vi refletidos em dois magníficos poemas de um dos maiores poetas do século XX, o grego Konstantínos Kaváfis. São os poemas Muros e Esperando os Bárbaros. O dos muros que nos levantam no silêncio da noite e o pecado de nossa falta de vigilância diante da chegada dos bárbaros que “tentam impor suas leis”. Uma boa leitura de alerta para o ano que se inicia.
No poema Muros, escreve o poeta:
Sem consideração,
sem piedade, sem
vergonha
construíram grandes e altos
muros ao meu redor…
E por que não os vi quando erguiam os muros?
E conclui:
Imperceptivelmente me trancaram fora do mundo.
No outro poema Esperando os Bárbaros, escreve:
Quando os bárbaros chegarem
eles farão as leis
E narra como no fundo as pessoas haviam se acostumado tanto a que os bárbaros decidissem sua vida, que, quando uma noite não haviam chegado porque, das fronteiras, diziam que “já não existiam bárbaros”, se sentiram perdidas. E o final do poema é uma pergunta e um alerta que balança todos nós hoje:
E o que será de
nós agora sem bárbaros?
Essas pessoas eram uma espécie de solução
Terrível nostalgia dos tempos da tirania.
A melhor resistência, efetivamente, à chegada dos bárbaros e ao perigo de acordarmos um dia encurralados sem saída é que o Brasil, como a jovem africana do pulmão de aço, não renuncie ao melhor de sua identidade e história que é o amor por esse raio de sol, símbolo da liberdade e da felicidade, aproveitada juntos, em harmonia, sem que o país possa continuar dividido. Das culturas mais antigas à cristã, a figura de Satanás sempre foi a que tenta dividir e separar os homens, de semear cizânia e impedir-lhes de viver como eles desejam e não como gostariam os bárbaros como símbolo de intolerância e divisão.
Feliz 2020, portanto, aos meus leitores. A todos. Aos que às vezes gostariam que eu partisse deste país e aos muitos mais que me acolheram e me acolhem com esse calor humano e essa capacidade de contagiar a alegria de viver, que aqui senti sobre minha pele como em nenhum outro país. A todos eles “sonhos dourados” de felicidade, como dizem os italianos. Aquele sonho que alongava a vida e fazia sorrir a jovem africana, crucificada em seu pulmão de aço.Juan Arias