quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Ares de boçalidade

Sou uma criatura do meu tempo, e o meu tempo, em que pesem todos os seus aspectos positivos, é um tempo estranho e depressivo, em que educação, civilidade e delicadeza são qualidades pouco reconhecidas, e um mínimo de equilíbrio político já é tido como defeito.
É difícil manter o ânimo vendo a qualidade humana de quem chega ao poder: há uma boçalidade triunfante nos palácios e nas ruas que transforma qualquer otimismo, por justificado que seja, num sentimento pueril e deslocado
Cora Rónai 

No governo Bolsonaro, crescimento e desigualdade social estarão no centro do debate

Steve Werner já votou no Partido Democrata, mas fez campanha para Donald Trump em 2016. Ele era um dos trabalhadores que, diante de dificuldades econômicas, entraram em greve numa fábrica de caminhões da Pensilvânia, em outubro. Sem ligar para os dados que indicavam um aumento da desigualdade nos EUA, o operário estava convencido de que era preciso dar mais quatro anos para o presidente americano.

Ele disse aos repórteres Marina Dias e Lalo de Almeida que, num segundo mandato de Trump, todos os americanos começariam a sentir os benefícios da melhora da economia.

Personagens da série “Os Americanos”, da Folha, mostram que o crescimento econômico e a distribuição de renda agem como vetores diferentes em determinados grupos do eleitorado. Num Brasil em recuperação, esses elementos também estarão no centro do debate político.

A oposição fez sua aposta. Lula e outros líderes de esquerda sabem que Jair Bolsonaro deve ser favorecido pela melhora gradual no PIB. Eles investem, então, na ponta da distribuição desse crescimento.

Para os rivais de Bolsonaro, a retomada sob um regime de aperto fiscal deve ser marcada pelo achatamento de gastos sociais e pela geração de empregos de menor qualidade. Os efeitos da recuperação, portanto, seriam mais lentos para os mais pobres e para a classe média.

O próprio ministro Paulo Guedes se antecipou, em entrevista à GloboNews na semana passada: “Não olhe para nós procurando o fim da desigualdade social. Nos dê um tempinho. Nossa tentativa é diferente”.

Ainda assim, o presidente pode tirar proveito de uma sensação de bem-estar quando os ponteiros da economia se mexerem com mais vigor. A comparação com a fase recente de recessão é seu principal trunfo.

Bolsonaro aprendeu com seu ídolo americano que pode mobilizar o eleitorado com pautas simbólicas enquanto os efeitos da economia não chegam a todos. Essa é sua estratégia para que os brasileiros lhe deem mais quatro anos no poder.

Fábula no MEC: A roupa nova do rei

Quem pesquisa a história do vasto reino de Santa Cruz, depara-se com um capítulo pouco convencional. O texto - totalmente apócrifo, porém não menos verossímil - nos conta sobre um rei inseguro que buscava se afirmar. Reproduzo aqui o que li.

"Numa manhã de Abril, bateu às portas do palácio real um alfaiate. Os arautos de sua majestade correram para anunciá-lo como o maior conhecedor de alta costura para monarcas. Houve quem afirmasse que o homem vinha de terras muito distantes, e por isso seu nome fora até então desconhecido; houve quem jurasse que o homem de nada entendia de agulha e linha.

Fato é que o rei apressou-se em convidar o desconhecido para ser seu costureiro real. Em troca, o homem deveria conceber até o final daquele ano as vestes mais luxuosas que um monarca poderia ter. No afã de parecer mais "real", o rei não desconfiou que o suposto alfaiate de fato nunca tocara num brocado ou cosido qualquer fio de classe. Tarde demais.

Jorge Cerqueira
Já na primeira semana, o rei deu a seu novo alfaiate palacete e poderes de ministro. Disse-lhe que pusesse para fora todo aquele que discordasse de suas criações e ideias. Ou melhor, que defenestrasse publicamente seus opositores. Passado um mês, o novo Ministro da Alfaiataria Real havia substituído grande parte dos antigos costureiros e tecelões do rei, e cancelado grandes projetos já em curso. Da tal veste que prometera, nada.

Os meses seguintes foram de destruição. Aliado ao Mago da corte - um desses rasputins que sopram ao ouvido de todo soberano - o Ministro resolveu derrubar todas as estátuas de um tal Paulo Freire, então patrono nacional da alfaiataria e falecido havia mais de duas décadas. Chamando de mau gosto o que via de mau gosto, vociferou que súditos mal vestidos só podiam ser obra do defunto em questão. Disse que o homem havia sido feio em vida, e que nem os pombos eram dignos de lhe pousar na efígie. Chamou-o de energúmeno, mas continuou sem produzir a veste que prometera.

Com mais poderes que nunca, o Ministro da Alfaiataria passou então a cortar recursos das universidades de todo o reino. Com bombons na mão, afirmava que estudantes tramavam contra o rei e usavam os campi para plantar ervas proibidas. Mérito seu, há que se admitir, o Ministro reintroduziu no reino expressões até então em desuso, como foi o caso de "balbúrdia" e "égua sarnenta", em referência à mãe de seus opositores. Entretanto, enquanto se ocupava com assuntos vocabulares, parecia não avançar nos trajes prometidos ao rei.

O caos que parecia não ter fim deu lugar à uma cerimônia solene. Em nome da moral, da ordem e do civismo, o Ministro instituiu as Alfaiatarias Militares, onde jovens aprendizes seriam tutelados por soldados da reserva. Afinal de contas, o que mais se deve aprender que não sejam os símbolos pátrios? Enquanto a ideologia grassava, nada de veste real.

Ao final daquele ano, ainda sem seus prometidos trajes, o rei resolveu convocar seu Ministro para uma audiência. Queria saber como andava a encomenda e, sobretudo, o que fora feito do ouro que havia sido empenhado. Ao chegar ao palácio, sem medo na face e carregando um imenso baú, o Ministro finalmente revelou a seu soberano a tão esperada vestimenta. Mas, a não ser por um punhado de ideologia e falação, o baú estava completamente vazio.

Sem querer provar-se ignaro, o rei apressou-se em dizer que nunca vira vestes tão estupendas, tão dignas de um monarca. E assim, como numa onda, todos os senescais, vizires e menestréis da corte de Santa Cruz passaram a ecoar as maravilhas da nova roupa do rei, feita de um tecido tão raro e por mãos tão habilidosas que apenas a gente sensível - e fiel - poderia ver. Quem nada visse, diziam, ou era rude ou rebelde.

Quando saiu em procissão pela grande esplanada da capital, o rei estava nu em pelo. Resoluto, marchava carregando um rifle e sua coroa, mas nada que lhe cobrisse as vergonhas. O povo ali presente aplaudia e gritava palavras de ordem àquele que passava então de homem a mito. O alfaiate-de-faz-de-conta já estava longe dali quando um menino, tomando coragem, resolveu gritar:

— O rei está nu! (versões alternativas, entretanto, afirmam que a fala foi "O MEC parou!").

Nunca se soube ao certo se o encanto realmente se desfez, e se o povo de Santa Cruz viu que não havia roupa qualquer a cobrir seu monarca. Há quem jure que o desfecho ainda esteja por escrever.

Moral da história: Ser rei não te desobriga a enxergar o vazio.

Pensamento do Dia


Um sonho para o Brasil de 2020

Quis, para esse final de ano e a chegada de 2020, lembrar alguma história de meu passado que, em um dia como esse, tivesse o sabor da esperança, após o ano vivido de tormento político e social, de sombras e temores e, o mais grave, de brigas entre amigos e até familiares, envenenados por ideologias sem sentido no mundo da comunicação universal, em que nunca estivemos todos tão próximos.

Encontrei a lembrança no arquivo de minha memória. Foi durante minha estadia na Itália. Em um final de ano como o que viverei novamente agora no Brasil, uma amiga me perguntou se queria acompanhá-la para visitar, em um hospital para pobres, uma jovem africana que vivia, já sem esperança de cura, com um pulmão artificial e que era um exemplo de esperança aos outros doentes.

Era em Gênova. A jovem que havia fugido da África para trabalhar na Itália tinha um sonho naquele final de ano. Um sonho pequeno, mas que a ajudava a continuar viva: que a manhã chegasse para que o sol que entrava pela janela pudesse acariciar seu corpo jovem e ferido, preso naquele pulmão de aço. Eu perguntei por que para ela era tão importante aquele raio de sol em sua pele. Me disse: “Sou africana e para nós o sol é Deus. Ele nos dá a vida e a conserva. Eu me sinto completa e viva quando o sol me abraça”.

Vou comemorar pela vigésima vez meu final de ano neste Brasil que me adotou.

E gostaria que 2020 trouxesse a todos os brasileiros, principalmente aos que mais sofrem a pobreza e a injustiça, um sonho de esperança. Aquele que permitia à jovem africana continuar viva. Não posso esquecer que pelas veias de milhões de brasileiros corre sangue africano e com ele a herança de uma cultura milenar rica em experiências de vida. O Brasil é também um país de sol, que é feliz quando deixam que viva a vida em liberdade sem impor mordaças que humilham sua história.

Tudo o que significa, como começa a acontecer no mundo, retroceder aos tempos do obscurantismo e das frustrações de esperanças e de liberdades já adquiridas é querer roubar o deus do sol ao Brasil, algo que espero ser impossível

E essa herança africana com tudo o que isso traz de luz e sombras, de elos de escravidão e de riqueza humana e espiritual, criou esse país, um dos mais multifacetados em suas crenças e mais próximo ao sol das antigas mitologias com seu simbolismo de vida e de felicidade.

Tudo o que significa, como começa a acontecer no mundo, retroceder aos tempos do obscurantismo e das frustrações de esperanças e de liberdades já adquiridas, com o perigo de recuperar os instintos mais primitivos de violência e de vingança de uns contra outros, dos horrores das guerras reais e verbais, é querer roubar o deus do sol ao Brasil, algo que espero ser impossível.

Vamos nos alegrar que no Ano Novo comecem a aparecer os primeiros sintomas de recuperação econômica dos anos difíceis de desemprego e da queda de milhões de pobres à miséria. Mas que essas melhoras da economia global cheguem também às mesas dos que mais sofreram o açoite da pobreza e não fiquem somente nas dos que menos precisam, porque eles nunca são afetados pelas crises e até as usam para crescer ainda mais.

Para que 2020 possa ser um ano diferente, em que comecem a abrir as portas da esperança de uma melhora para todos, junto com o sol desse sonho que nunca deve se perder de poder viver melhor, é preciso, com a dose de esperança, o alerta da resistência contra os bárbaros que tentam desestruturar esse país assim como contra os que, enquanto dormimos em nossa falta de reação à barbárie, constroem muros de novas escravidões sem que percebamos até nos encontrarmos presos e impotentes.

São dois alertas que vi refletidos em dois magníficos poemas de um dos maiores poetas do século XX, o grego Konstantínos Kaváfis. São os poemas Muros e Esperando os Bárbaros. O dos muros que nos levantam no silêncio da noite e o pecado de nossa falta de vigilância diante da chegada dos bárbaros que “tentam impor suas leis”. Uma boa leitura de alerta para o ano que se inicia.

No poema Muros, escreve o poeta:

Sem consideração,
sem piedade, sem
vergonha
construíram grandes e altos
muros ao meu redor…
E por que não os vi quando erguiam os muros?

E conclui:

Imperceptivelmente me trancaram fora do mundo.
No outro poema Esperando os Bárbaros, escreve:
Quando os bárbaros chegarem
eles farão as leis


E narra como no fundo as pessoas haviam se acostumado tanto a que os bárbaros decidissem sua vida, que, quando uma noite não haviam chegado porque, das fronteiras, diziam que “já não existiam bárbaros”, se sentiram perdidas. E o final do poema é uma pergunta e um alerta que balança todos nós hoje:

E o que será de
nós agora sem bárbaros?
Essas pessoas eram uma espécie de solução
Terrível nostalgia dos tempos da tirania.


A melhor resistência, efetivamente, à chegada dos bárbaros e ao perigo de acordarmos um dia encurralados sem saída é que o Brasil, como a jovem africana do pulmão de aço, não renuncie ao melhor de sua identidade e história que é o amor por esse raio de sol, símbolo da liberdade e da felicidade, aproveitada juntos, em harmonia, sem que o país possa continuar dividido. Das culturas mais antigas à cristã, a figura de Satanás sempre foi a que tenta dividir e separar os homens, de semear cizânia e impedir-lhes de viver como eles desejam e não como gostariam os bárbaros como símbolo de intolerância e divisão.

Feliz 2020, portanto, aos meus leitores. A todos. Aos que às vezes gostariam que eu partisse deste país e aos muitos mais que me acolheram e me acolhem com esse calor humano e essa capacidade de contagiar a alegria de viver, que aqui senti sobre minha pele como em nenhum outro país. A todos eles “sonhos dourados” de felicidade, como dizem os italianos. Aquele sonho que alongava a vida e fazia sorrir a jovem africana, crucificada em seu pulmão de aço.
Juan Arias

Cai apoio à democracia no Brasil

O apoio à democracia como melhor forma de governo caiu sete pontos percentuais durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, revelou uma pesquisa Datafolha divulgada nesta quarta-feira.

Entre os entrevistados, 62% consideram a democracia a melhor forma de governo. Na pesquisa anterior, realizada na semana do primeiro turno das eleições em outubro de 2018, o apoio a esse sistema político era maior, com 69%.

Houve, no entanto, um aumento de nove pontos percentuais em relação ao grupo para quem tanto faz se o governo é democrático ou ditatorial, passado dos 13%, em 2018, para 22%. Já o percentual dos que preferem uma ditatura permaneceu estável em 12%.

A pesquisa também revelou que houve um aumento na parcela da população que avalia que não há nenhuma chance de ocorrer uma nova ditadura, passando de 42% para 49%. Outros 46% disseram que acreditam que pode ocorrer uma ruptura democrática, o que representa uma queda de quatro pontos percentuais em relação ao levantamento anterior.

O Datafolha também questionou a avaliação do legado da ditadura militar (1964-1985). A pesquisa mostrou um aumento de oito pontos percentuais no grupo que considera que o regime deixou mais realizações negativas do que positivas, passando dos 51%, registrados em 2018, para 59% neste ano. Já 30% dos entrevistados consideram o legado positivo, outros 12% não souberam responder.

A pesquisa revelou ainda que a maioria dos brasileiros desconhece o Ato Institucional nº 5 (AI-5), –medida considerada o maior símbolo da repressão política durante a ditadura militar no Brasil. Editado em 13 de dezembro de 1968 pelo então presidente Artur da Costa e Silva, um dos cinco generais que governaram o país durante o regime militar, o decreto resultou no fechamento do Congresso Nacional e na suspensão de direitos políticos.

Durante o primeiro ano do governo de Bolsonaro, o AI-5 foi invocado em três ocasiões por pessoas do círculo do presidente. Além do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do general Augusto Heleno, que chefia o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o filho de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo, defendeu a aplicação da medida para eventualmente silenciar a oposição.

Entre os entrevistados pelo Datafolha, 65% disseram que desconhece o AI-5 e apenas 35% afirmaram ter ouvido falar do ato.

A pesquisa sobre a democracia ouviu 2.948 pessoas nos dias 5 e 6 de dezembro em 176 municípios de todas as regiões do Brasil. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

Maneira de viver carece de sentido

A tecnologia nos dá a falsa impressão de que podemos controlar o mundo físico e ditar os termos de nossa própria vida. Tudo, inclusive a imortalidade, parece estar a nosso alcance, mas é falso. A realidade é que em vez de aplacar nossos desejos e temores, a tecnologia os exacerba 
Richard Powers, Prêmio Pulitzer

Os cúmplices

Nenhum autoritarismo se instala ou se mantém sem a cumplicidade da maioria. É o que a história nos ensina. Não haveria nazismo sem a conivência da maioria dos alemães, os ditos “cidadãos comuns”, nem a ditadura militar no Brasil teria durado tanto sem a conivência da maioria dos brasileiros, os ditos “cidadãos de bem”. O mesmo vale para cada grande tragédia em diferentes realidades. Os déspotas não são alimentados apenas pelo silêncio estrondoso de muitos, mas também pela pequena colaboração dos tantos que encontram maneiras de tirar vantagem da situação. Em tempos de autoritarismo, nenhum silêncio é inocente —e toda omissão é ação. Esta é a escolha posta para os brasileiros em 2020. Diante do avanço autoritário liderado pelo antidemocrata de ultradireita Jair Bolsonaro, que está corroendo a justiça, destruindo a Amazônia, estimulando o assassinato de ativistas e roubando o futuro das novas gerações, cada um terá que se haver consigo mesmo e escolher seu caminho. 2020 é o ano em que saberemos quem somos —e quem é cada um.

Há várias ações em curso. E várias mistificações. Quem viveu a ditadura militar (1964-1985) conhece bem, guardadas as diferenças, como o roteiro vai se desenhando. No final de 2019, parte da imprensa, da academia e do que se chama de mercado começou a exaltar os sinais de “melhora econômica”. A alta da bolsa, a “queda gradual” do desemprego, a indicação de aumento do PIB em 2020 são elencados entre os sinais. Ainda que se esperasse mais, afirmam, “os inegáveis avanços do ponto de vista econômico”, entre eles a reforma da Previdência, “a inflação comportada” e os juros fechando 2019 “em patamar inimaginável” permitem —e aí vem uma das expressões favoritas deste seleto grupo de players— um “otimismo moderado”. Até a pesquisa de uma associação de lojistas divulgou uma incrível alta de 9,5% nas vendas de Natal, imediatamente contestada por outra associação de lojistas. É como se a “economia” fosse uma entidade separada da carne do país, é como se houvesse uma parte que pudesse ser isolada e sobre a qual se pudesse discorrer usando palavras enfiadas em luvas de cirurgião. É como se bastasse enluvar jargões técnicos para salvar os donos das mãos de todo o sangue.


Enquanto esse diálogo empolado e bem-educado do pessoal da sala de jantar, dos que sempre estão na sala de jantar, independentemente do governo, é estabelecido, bombas explodiram no prédio da produtora do programa de humor Porta dos Fundos, policiais matam como nunca nas periferias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, ampliando o genocídio da juventude negra, o antipresidente legaliza o roubo de terras públicas na Amazônia, ambientalistas são acusados de crimes que não cometeram, ONGs são invadidas sem nenhuma justificativa remotamente legítima, adolescentes pobres morrem pisoteados porque decidiram se divertir num baile funk numa noite de sábado, indígenas guardiões da floresta e agricultores familiares são executados, as polícias vão se convertendo em milícias como se isso fosse parte da normalidade, e são também os policiais e “agentes de segurança” condenados por crimes os únicos que são libertados no indulto de Natal. Os sinais estão por toda parte, mas membros respeitados de instituições da República que deveriam ser os primeiros a percebê-los —e combatê-los— seguem inflando a boca para assegurar que “a democracia no Brasil não está ameaçada”.

A qual Brasil se referem estes senhores bem-educados? De qual país estes luminares do presente falam? Certamente não do meu nem do de muitos, não o das favelas onde as pessoas se trancam sabendo que não há porta capaz de barrar a violência da polícia, não este em que os policiais já exterminam os pretos sem responderem por isso há muito, mas esperam mais já que o extermínio vai sendo legalizado pelas beiradas. Não este em que os templos de religiões afro-brasileiras são invadidos e destruídos apesar de o Estado ser formalmente laico. Não este em que as lideranças da floresta enxergam o Natal e o Ano-Novo como os piores momentos do ano porque é o tempo de deixar a família e fugir, pelo menos até que as capengas instituições voltem do recesso.

Neste país, pessoas da sala de jantar, há muita gente escondida neste exato momento para poder virar o ano vivo. Não esperam brindar, desejam apenas não ter o corpo atravessado por uma bala —ou por quatro na cabeça, como ocorreu com Marielle Franco, num crime não decifrado quase dois anos depois. Democracia onde? Os escondidos, os ameaçados, os parentes dos mortos querem saber. Todos nós queremos muito viver neste país em que vocês enxergaram “inegáveis avanços na economia em 2019” e “instituições que funcionam”. Não fiquem com o endereço só para vocês.

As pessoas da sala de jantar, porém, só podem seguir na sala de jantar ditando o que é a realidade porque a maioria assim permite, omitindo-se ou aproveitando-se das sobras. São as pessoas, no dizer da historiadora franco-alemã Géraldine Schwarz, “que seguem a corrente”. A questão é se você, que lê este texto, vai engrossar o rebanho dos que seguem a corrente.

Não o rebanho de ovelhas. Esta imagem evoca passividade, engano, uma obediência absolvida pela inocência. Não. Este rebanho, o dos que agem se omitindo, ou o dos que agem tirando pequenos proveitos, “porque afinal é assim mesmo e quem sou eu para mudar a realidade”, é um rebanho de lobos. Porque o ativismo de sua omissão é cúmplice do sangue das vítimas, estas que tombam, estas que vivem uma vida de terror. É cúmplice também das ruínas de um país. No caso da Amazônia, é cúmplice das ruínas da vida da nossa e de muitas espécies no único planeta disponível.

Géraldine Schwarz escreveu um premiado livro chamado Os amnésicos (Flammarion), infelizmente sem tradução no Brasil. A historiadora, cuja família foi uma dessas que obteve vantagens no nazismo, mas se considerava inocente do Holocausto, deu uma excelente entrevista ao jornalista Fernando Eichenberg, em O Globo. Ela aponta como a adesão aos déspotas do século 21 mantém a estrutura da adesão aos totalitarismos do século 20:

“No imaginário coletivo, temos tendência a dividir a sociedade em três categorias históricas no século 20: heróis, vítimas e carrascos. Na verdade, a maioria da população não se reconhece em nenhuma delas. É a via mais fácil não se incluir em nenhuma das três categorias, mas apenas seguir a corrente. Há o magnífico filme baseado no romance de Alberto Moravia [O conformista, de Bernardo Bertolucci], que mostra muito bem como o conformista acaba aceitando o que antes era inaceitável. No ensino da história, muitas vezes por meio da ficção ou de comemorações, temos uma visão um pouco distorcida do passado. Se tem a impressão de que a população não teve nenhum papel nessa história. E teve, muitas vezes, um papel de pilar e consolidador de ditaduras. É nisso que a democracia tem um papel importante, pois o povo tem os meios de impedir um golpe e a instalação de um regime criminoso. Eleger Bolsonaro, por exemplo, para mim, é brincar com o fogo, pois parece alguém capaz de tudo.”

A historiadora defende a memória como um dos principais instrumentos de defesa da democracia. “O importante é tomar consciência de nossa falibilidade e reconhecer que podemos nos transformar também em um bárbaro”, afirma. "A história não se repete, mas os métodos de manipulação, sim, porque a psicologia humana não muda. Em um contexto de crise, em meio a um grupo, o homem terá reações similares. Um dos métodos é difundir o medo, muitas vezes exagerado em relação à realidade. [...] Trata-se de confundir a fronteira entre o verdadeiro e o falso, desorientando totalmente as pessoas. Perde-se as referências, não se sabe mais no que acreditar. E, como dizia [a filósofa alemã] Hannah Arendt, quem não acredita em mais nada é manipulável à vontade. Ao ponto de inverter seus valores: o que era bom ontem já não o é mais hoje. É o que se observa em várias sociedades do mundo. As pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro, há dez anos provavelmente defendiam os direitos humanos. Por isso que o ensino do Terceiro Reich é capital. Na história há muito poucos exemplos de uma sociedade tão civilizada, moderna, intelectual, que derivou rapidamente para a barbárie. É um ensinamento universal, que serve de alarme a todo mundo.”

O problema é que países como o Brasil não produziram a memória da ditadura justamente para absolver os assassinos, sequestradores e torturadores de Estado. A condição da retomada da democracia foi o perdão ao imperdoável. Essa política de amnésia resultou, em 2018, na eleição de um presidente que tem como herói um torturador e assassino de civis. Diante de uma população desmemoriada, ao final do primeiro ano do governo do déspota eleito vimos um roteiro semelhante se repetir, com as necessárias adaptações a uma época impactada pela Internet. Ainda que a memória no Brasil seja frágil, porém, ela existe. Não há desculpa para omissão. Nem há qualquer inocência no suposto conformismo.

O problema, no Brasil e em outros países que vivem processos políticos semelhantes, é também de memória recente. Esta que está sendo construída agora, não só nas mentiras disseminadas nas redes sociais por Bolsonaro e sua familícia, mas também nas narrativas que isolam a economia da carne que sangra. Como se a evocação do AI-5 por Paulo Guedes não tivesse nada a ver com suas escolhas econômicas, como se o Posto Ipiranga fosse radicalmente diferente do dono do posto. Está em produção uma memória falsa, o que é pior do que desmemória. Pior do que não lembrar é lembrar de um acontecido que nunca aconteceu.

Entre as tantas perversões da ditadura, uma se mostrava particularmente enlouquecedora para aqueles que escolheram lutar contra o regime de opressão. Enquanto homens e mulheres eram vigiados e perseguidos dia e noite, afastados de seus postos, demitidos de seus empregos, transformados em párias e criminalizados, enquanto livros, jornais, filmes e peças de teatro eram censurados, enquanto brasileiros precisavam deixar o país para salvar a vida ameaçada pelo Estado, enquanto os que ficavam eram sequestrados, torturados e mortos por agentes do Estado, uma maioria fingia que nada estava acontecendo. Fingia tanto que acabava acreditando que não eram gritos de dor e de terror o que ouvia. Era o cidadão de bem que apenas seguia a corrente, protegendo os próprios interesses e avaliando o que poderia ganhar com o estado das coisas.

Começamos a testemunhar hoje o mesmo mecanismo perverso. Com todas as desculpas possíveis, auxiliadas pela polarização que desloca o perigo para uma falsa oposição. Com todos os erros e os crimes do PT no poder, o antipetismo não é justificativa aceitável para alguém seguir a corrente. Não tem mais clima para se fingir de iludido. Basta ter vergonha na cara para perceber que não se trata mais do PT. Se trata da corrosão do que ainda resta de democracia no Brasil. Se trata da autorização para roubar enormes pedaços de floresta, desmatá-los e botá-los no nome dos autores do crime. Se trata da conversão das forças de segurança em milícias com autorização para matar. Se trata da criminalização de quem defende os mais frágeis, usando para isso o aparato do Estado. Se trata de genocídio de negros —e também de indígenas.

Há muita gente se fingindo de ovelha para lavar as mãos diante do que vive o Brasil. Mas há também gente angustiada perguntando o que fazer diante do que já não consegue deixar de ver. A estes, respondo que ninguém vai dar a resposta. Esta resposta terá que ser criada, coletivamente, por iniciativa dos que fazem a pergunta. Em cada profissão há o que fazer. Este é um momento em que precisamos fazer melhor o que sabemos fazer, mas também precisamos fazer bem o que não sabemos. Apenas o que sabemos já não é suficiente. O que somos já não é suficiente. Temos que ser melhores do que somos para enfrentar este tempo em que já não há tempo. E temos que ser juntos, fazendo laços e tecendo redes entre nós.

Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo.
Eliane Brum

Crônica de Natal

Em memória de Alba Zaluar

Vários amigos do coração me perguntaram como seria esta escrita de Natal. Um dia no qual no nosso mundo nominalmente cristão deveríamos —honrando a invenção dos Reis Magos — nos presentear mutuamente porque o “dar com o receber” — o reciprocar — é o berço do amor e a manjedoura da paz solidária que tanto procuramos.

É trégua, porque a vontade — com seus desejos, projetos, fantasias, calúnias, traições, doenças e sonhos — está em febril movimento e sempre nos traz de volta a frustração da nossa humanidade.

O acontecimento mais marcante do ano tem sido a continuidade do desmascaramento em todos os níveis, incluindo a presidência desempenhada por um péssimo ator. Mas há um claro desmonte do poder à brasileira. Um modo de dominação pessoal que hoje enfrenta uma implacável crítica aberta e, principalmente, a lei impessoal inerte para com os poderosos, mas que passou a ser tenazmente implementada, desmascarando partidos populares e aristocráticos, gente grande e comum, bem como magos, atletas, ateus e escovados malandraços.


O que tem ocorrido no Brasil — e, também nos países que os subsociólogos julgavam resolvidos ou “adiantados” — é o insólito presente do desmascaramento. Realmente, num planeta globalizado, movido a Facebooks e fake news —bem como true news! —, repleto de câmaras com onipotência divina, criou-se a contragosto e a despeito da malandragem como um valor uma inexorável demanda coletiva de transparência e honestidade. Um desejo coletivo de desmascarar e desmistificar tanto de um lado quanto do outro, tanto de cima quanto de baixo.

Antigamente, as aristocráticas “boas maneiras”determinavam jamais discordar, mas negacear, dissimular ou, em caso extremo, falar uma mentirinha, sacanear, intrigar ou enganar com razoável sutileza. Em face de casos flagrantemente negativos — sempre ligados ao poder e às famílias no poder! —, partia-se para o uso da lei que, com suas brechas desenhadas a confirmar a superioridade por meio de um bom advogado e dos inesgotáveis recursos, anulavam o ideal da justiça como um valor imprescindível numa democracia.Nesse soterrar do conflito e da discordância, jaz a raiz da “malandragem”, cujo símbolo vivo é Pedro Malasartes. Em suma: a norma social era jamais “bater de frente”, porque o bate-boca, além de ser feio e público, tem um motivo profundo. Ele mistura e igualda, ofuscando ou pondo em risco a hierarquia. Os inferiores não devem reclamar; e os superiores não podem descer ao nível dos subordinados, permitindo — exceto no futebol — trocas emocionadas de pontos de vista que sinalizam uma patente igualdade.

Seguindo o ideal de imobilidade dos regimes aristocráticos — o qual, no Brasil, foi duplamente repleto de alteridade porque os escravos eram africanos e tão estrangeiros quanto a realeza igualmente vinda de fora —, um inferior não ousava desafiar e enfrentar um superior. Como um negro rebateria um branco, um moço um velho, um aluno um professor, uma mulher um homem, um leigo um clérigo, um cidadão comum um baronete? Virava-se o rosto, ficava-se com os rituais da casa e do compadrio e da toga. Hoje, tenta-se cobrar os fatos com todas as letras.

Estamos separando os fatos de suas versões. Começamos a enxergar a nossa alergia — como disse em vários livros — à igualdade e ao respeito pelos desconhecidos.

Um olhar natalino e fraterno diria que neste ano de 2019 tornamos reais nossas duas mãos, embora esteja viva em nós a matriz do superior e do inferior (cabeça e pé), mais do que a simetria do lado esquerdo e direito.

Há quem suspeite de que toda a polaridade escamoteia uma hierarquia. Uma hegemonia da esquerda opera em alguns lugares; em outros, ocorre o oposto. Não há um centro, a não ser no bom senso de concordar em discordar, essa arte de articular simetrias racionais; e envergonha-se com a miséria e a incúria malandra. Não há como dispensar a simetria, exceto suprimindo um dos lados, como acontece quando a alternância é reprimida e ocorre a mutilação do nazi-fascismo, que não hesita em cortar cabeças e braços.