domingo, 1 de outubro de 2023

Pensamento do Dia

 


O passado presente

Nos idos de 1983, o senador Roberto Campos, avô do nosso Campos Neto, prolatou suas sabedorias na Ordem dos Economistas do Estado de São Paulo. Entre outras pérolas do conhecimento, afirmou que o Brasil “é uma sociedade criptossocialista, apesar do sistema privado teoricamente praticado no País”. Então parlamentar mato-grossense, o vovô Campos fundava sua escatológica denúncia na constatação de que o governo, no Brasil, era responsável por em torno de 45% do dispêndio total e 60% dos gastos em investimento.

Se aceitarmos os critérios do ilustre senador, vamos chegar à conclusão de que não só o Brasil, como a totalidade dos países do Ocidente, passou-se para o outro lado, sem se dar conta do que estava ocorrendo. Éramos todos socialistas e não sabíamos.


Senão vejamos. Apesar das políticas soi-disant liberais e antiestatizantes praticadas pela maioria dos governos ocidentais, a participação dos gastos públicos no dispêndio agregado cresceu consideravelmente na década de 70, superando as marcas, já elevadas, registradas nos anos 50 e 60. Na Alemanha Ocidental da Economia Social de Mercado, a participação dos gastos públicos nos gastos totais foi, em média, de 44% no período que vai de 1974 a 1982. Na Grã-Bretanha, esta cifra atingiu 44,5%, na França 41,6%, na Itália 43,1%, nos Estados Unidos 35,1% e no Canadá 39,40%. Os dados mencionados acima são de fácil acesso. Basta compulsar com competência os relatórios da OCDE. O senador Campos não poderia, a qualquer título, justificar a omissão dessas informações numa palestra pública, sob pena de estar destilando pura “ideologia” e armando jogo de palavras.

Estamos curiosos para saber qual seria a reação dos economistas da Faria Lima diante dessa burla escandalosa e grosseira dos cânones de procedimento científico. Os sábios da Crematística vêm reclamando seguidamente a adoção de posturas mais “científicas” e menos “ideológicas” no debate sobre a política econômica. Nada haveria de reprovável nisso, não fosse a flagrante contradição entre as palavras e as atitudes, entre o gesto e a intenção. Mas deixemos nossos pequenos sabichões entregues às suas grandes contradições. O grande Campos era coerente em suas omissões, porque persistente em seus propósitos. Vendia suas idéias, a bon marché, neste país onde são precárias as defesas do consumidor. Declarar guerra à intervenção do Estado na economia é uma forma cômoda de evitar uma análise mais circunstanciada das seguidas crises estruturais que atravessam as economias contemporâneas. Só o caos ideológico em que mergulhou o pensamento conservador pode explicar a identificação entre intervenção estatal e estatização. Ou entre estatização e planejamento.

Os anos da ditadura brasileira são o exemplo acabado de como a estatização nasce, exatamente, da falta de planejamento. A intervenção do Estado foi desordenada, casuística e, por isso mesmo, incontrolável. Esse “padrão” absurdo de interferência estatal na economia banqueteou-se no rega-bofes autoritário do regime, sem que o liberalismo do senador Campos se tenha manifestado sequer através da eructação. A ignorância cevada no obscurantismo e na literatura de segunda classe incentivou a ideia de que há uma oposição irredutível entre planejamento e democracia. Qualquer cidadão medianamente informado – e o senador Roberto Campos está acima desta categoria – sabe que um dos debates mais importantes deste século tratou do problema de como submeter a inevitável intervenção do Estado ao controle democrático. Estão aí as contribuições de Karl Mannheim, Schumpeter, Keynes e, mais recentemente, de Norberto Bobbio, Claus Offe, Herbert Marcuse e outros menos votados. Só figuras antediluvianas como Hayek e Milton Friedman acreditam nas funções alocativas do “livre-mercado”.

Essa metafísica do mercado se torna ainda mais ridícula quando confrontada com uma situação de crise estrutural, em que os preços sinalizam na direção contrária àquela desejável para a reconstrução da economia. Basta olhar o que está acontecendo, hoje, no Brasil e no mundo.

Eugênio Gudin passou boa parte de sua vida pregando contra a irracionalidade dos nacionalistas, ou comuno-nacionalistas, que pretendiam impor restrições ao capital estrangeiro ou que advogavam medidas intervencionistas para promover o desenvolvimento do País. O liberalismo à brasileira sempre combinou a rejeição (de todos os liberais) às intromissões da política na economia com uma profunda e dissimulada desconfiança na capacidade local de alcançar por conta própria as conquistas da sociedade industrial e seus padrões modernos de convivência.

Também neste capítulo, a atualidade de Gudin é notável. É a recorrência do tema da abertura comercial, do estímulo à entrada do capital estrangeiro, das ineficiências da indústria nacional que deve ser eliminada através da maior exposição à concorrência externa.

Agora, outra vez, a vulgata do pensamento dominante proclama a queda das fronteiras, a internacionalização dos mercados, os formidáveis movimentos de capitais. Isto, como o demonstra a obra de Gudin, não tem nada de novo. Vem de longa data a atitude basbaque da fração majoritária das camadas dominantes, da classe média para cima, com o que vem de fora para dentro. Os endinheirados, os letrados e os bem-postos na vida cultivam o cosmopolitismo avant la lettre, o que, na realidade, expressa uma secular e singular repugnância pelas condições reais do ­País, especialmente pelas condições miseráveis das classes subalternas.

Apesar disso, nos 50 anos que terminaram no início da década de 1980, a economia brasileira cresceu de forma acelerada e sofreu notáveis transformações, transitando do modelo primário exportador para a etapa industrial. O ethos do desenvolvimento nasceu da percepção – das camadas empresariais nascentes, do estamento burocrático-militar, de algumas lideranças intelectuais e do proletariado em formação – de que o objetivo de aproximar o País das formas de produção e de convivência não poderia ser alcançado através da simples operação das forças naturais do mercado.

É inteiramente falso, no entanto, atribuir um papel hegemônico a estas forças ditas progressistas na definição dos rumos do desenvolvimento. O projeto de industrialização foi sendo construído através de alianças políticas, regionais e de classe, que não só atraíram os interesses mais retrógrados e reacionários para o bloco desenvolvimentista, mas também selaram compromissos com as forças reais do internacionalismo capitalista.

Algumas características mais marcantes do desenvolvimento brasileiro decorreram da repactuação continuada desse compromisso: a espantosa persistência da estrutura agrária, a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade, o patrimonialismo da empresa industrial, o rentismo do sistema bancário, a eterna revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados. Daí a dependência do financiamento externo, a desordem financeira do Estado, o protecionismo excessivo, a passividade tecnológica, o atraso organizacional, a posição subordinada da grande empresa privada nacional e o crescimento desmesurado do estatismo.

Durante 50 anos de industrialização acelerada, particularmente no pós-guerra até a crise da dívida externa em 1982, esse compromisso foi sendo continuamente renovado, apesar dos sucessivos conflitos entre os grupos dominantes, sempre acompanhados de agudas crises políticas. O fiador desse pacto instável foi a manutenção, ao longo de muitas décadas, de elevadas taxas de crescimento da economia.

A desorganização dos anos 80 não deve ser interpretada como uma crise que ocorre apenas no interior desse arranjo oligárquico. Desta vez, apesar das aparências, o estrago foi maior. Por um lado, caducou o consenso das camadas dominantes em torno do objetivo comum do desenvolvimento e, de outro, aumentaram as pressões das classes subalternas pelo reconhecimento integral de seus direitos políticos, sociais e econômicos.

Não é por outra razão que o ideário do liberalismo se transformou, outra vez, na força ideológica dominante. Diante da dificuldade de se reconstituir em novas bases um objetivo compartilhado, do visível enfraquecimento financeiro e da capacidade coordenadora do Estado, o liberalismo ressurge. Reaparece como a expressão imaginária e mágica do reconhecimento do interesse particular de cada grupo no interior das camadas dominantes e, ao mesmo tempo, como força política destinada a bloquear o avanço das classes subordinadas na conquista dos seus direitos.

O que vemos é a reiteração da crença no naturalismo do mercado, na rejeição da política, no cosmopolitismo. As possibilidades de crescimento estão todas depositadas no recuo do Estado, no ímpeto empreendedor do setor privado e, antes de mais nada, na força criadora do investimento estrangeiro. Roberto Campos parece ter razão quando diz que, finalmente, Gudin venceu. Ninguém sabe quanto tempo vai durar essa vitória.

Até hoje, o apocalipse foi desmentido 100% das vezes

Queria começar por descansar as jovens ambientalistas que acham que vão ver o mundo entrar em colapso durante as suas vidas: não vão. Podem voltar a respirar. Sim, o planeta está a aquecer. Sim, a acção humana está relacionada com isso. E, sim, temos de poluir menos, consumir menos, reciclar mais. Mas nada – repito: nada – indica que as meninas que lançam tinta verde a ministros ou sopa de tomate a pinturas estejam impedidas de um dia vir a brincar com os seus netos. E agora que cheguei aos 50 anos, permitam-me um conselho de velho: todos os discursos apocalípticos tendem invariavelmente para o ridículo. A razão é muito simples: foram desmentidos 100% das vezes.


Dir-me-ão que as alterações climáticas são um desafio como a humanidade nunca enfrentou antes. Será? Se andassem por cá no tempo da “peste negra”, tenho dúvidas que pensassem assim: estima-se que ela terá dizimado pelo menos um terço da população europeia no século XIV. Todos precisamos de um sentido para as nossas vidas, e por isso é natural que cada um de nós acredite que algo de absolutamente decisivo está em jogo na sua geração. A ideia de que a civilização como a conhecemos vai acabar, e que a culpa dessa tragédia incide sobre nós, parece, à primeira vista, desprovida de consolo. Mas não é. Ela tem um poder escondido extraordinário – transforma-nos em very important people à escala planetária.

Somos a plateia VIP do Armagedão. Reparem naquilo que os ambientalistas mais fervorosos nos dizem: temos, como os deuses de Homero, o destino do planeta Terra nas nossas mãos. É um poder destruidor? Com certeza. Mas é um superpoder. Significa que nós contamos. Fazemos a diferença. Não estamos condenados a ser aquilo que foram os nossos pais, avós e trisavós – simples pó da História.

A tinta verde derramada sobre o Cordeiro é um banho lustral, que ajuda a limpar os pecados do mundo. Estes discursos apocalípticos e milenaristas são uma constante ao longo dos tempos, e com isto não estou a negar o problema das alterações climáticas – estou a sublinhar, isso sim, a nossa absoluta incapacidade de prever o futuro, o que nos convida à modéstia no que diz respeito aos excessos de fatalismo.

Em 1798, Thomas Malthus lançou o famoso Ensaio sobre o Princípio da População, que demonstrava com inabalável certeza que a melhoria das condições de vida iria conduzir a um crescimento insustentável da população, que, por sua vez, daria origem a fomes, guerras e à miséria generalizada. Os argumentos eram tão convincentes que as teses malthusianas atravessaram todo o século XIX. Em 1800, a população mundial rondava os mil milhões de pessoas. Hoje vai a caminho dos oito mil milhões. E, no entanto, a percentagem de população com fome nunca foi tão baixa. Malthus enganou-se não porque não soubesse fazer contas (é o pai da demografia e influenciou economistas respeitáveis), mas porque foi incapaz de prever tudo aquilo que o futuro traria: novas terras, novas tecnologias, fertilizantes, o brain power da espécie humana e a sua infinita capacidade de inovação, que fez disparar a produção alimentar.

A História é um cemitério de previsões tontas. Um exemplo entre milhares: há 20 anos, um relatório secreto do Pentágono afirmava que por volta de 2020 – cito um artigo do The Guardian de 2004 – “grandes cidades europeias estariam abaixo do nível do mar e a Grã-Bretanha mergulhada num clima siberiano”. Preocupação com o clima? Com certeza. Histeria e tinta verde? É de evitar.

O chamado Brasil brasileiro

Comecemos por opiniões antigas, como esta de uma carta de Capistrano de Abreu a João d’Azevedo: O jaburu… a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas for nidas, e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste…

Paulo Prado abre seu livro Retrato do Brasil com esta afirmação: Numa terra radiosa vive um povo triste.

Tão triste que em 1925, em Petrópolis, Manuel Bandeira, que tinha “todos os motivos menos um de ser triste”, resolveu “tomar alegria”.

Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda. Ninguém se lembra de política… Nem dos oito mil quilômetros de costa… O algodão do Seridó é o melhor do mundo?…

Que me importa?


Não há malária nem moléstia-de-chagas nem ancilóstomos.

A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca. Eu tomo alegria!

E Sérgio Buarque de Holanda, na primeira página de suas Raízes do Brasil:

…Somos ainda hoje desterrados em nossa terra.

O consolo é lembrar aquela coisa de Euclides da Cunha em Os Sertões: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Enchemos o peito de orgulho. Mas Euclides prossegue dizendo: Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

Viram? Para falar bem do homem do sertão ele desmerece o homem da praia.

Mas o próprio sertanejo, embora possa se transformar em “um titã acobreado e potente”, não é figura muito boa: … É desgracioso, desengonçado, torto… reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos…

E mais adiante Euclides proclama: Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma…

Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.

Este dilema me faz lembrar um outro que me assustava quando eu era menino. Não sei se era frase de homem célebre ou propaganda de algum formicida: Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil.

Isto me dava aflição; eu me perguntava por que é que nós todos não íamos urgentemente matar saúvas.

Não matamos. Não morremos. Convivemos. Oswald de Andrade exclama, no seu “Manifesto Antropofágico”, de 1928: Tupi or not tupi that is the question.

E é outro paulista Andrade, Mário, que faz uma comovente confissão brasileira.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu…

Essa fundamental solidariedade me impressionou quando uma lavadeira que eu tinha aqui no Rio, Sebastiana, me disse que não tinha podido dormir aquela noite: uma chuva com vento invadira o seu barraco no morro do Cantagalo. Seu menino amanhecera doente, e ela também sentia uma dor no peito.

“Mas enfim”, disse, “isso é bom para a lavoura.”

A velha Sebastiana viera de Carangola e não tinha mais lavoura nenhuma; e até a casinha que ela fizera lá em Minas, “perto do comércio”, fora registrada em nome do seu marido, que não era seu marido porque era casado com outra. E ela descia os caminhos perigosos, escorregadios, do morro, com a trouxa de roupa na cabeça, e me dizia: “É bom para a lavoura.”

É uma maneira de dizer na roça. Pode ser maneira de pensar. O Brasil é, principalmente, uma certa maneira de sentir.
Rubem Braga

Catástrofes recentes são mesmo culpa do aquecimento global?

Desde incêndios florestais de costa a costa no Canadá até grandes ciclones e inundações no Sul do Brasil e a catastrófica cheia na Líbia, passando por ondas de calor no Hemisfério Norte, fortes eventos climáticos dominaram as manchetes nos últimos meses.

À medida que o planeta aquece por causa das ainda crescentes emissões de gases de efeito de estufa, as mudanças climáticas têm, em grande parte, levado a culpa por um aparente aumento de desastres climáticos.

"Os dias de cão do verão não estão apenas latindo: eles já estão mordendo. O colapso climático já começou", disse António Guterres, secretário-geral da ONU, reagindo à notícia de que entre junho e agosto de 2023 estiveram os meses mais quentes já registrados no Hemisfério Norte.

Mas até que ponto uma onda de calor ou uma tempestade violenta pode ser atribuída ao aquecimento global, e quanto isso se deve apenas à variabilidade natural do clima?

Agardi Sugdub, ilha panamenha superpovoada,
 começou remoção de moradores

A atribuição climática, uma ciência relativamente nova, procura responder essa questão. Seu objetivo é avaliar até que ponto as alterações climáticas causadas pelo ser humano, impulsionadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis, aumentam a probabilidade e a intensidade de um evento climático extremo.

"Nenhum furacão é 100% causado pelas mudanças climáticas, mas é impactado por elas de muitas maneiras diferentes”, explica Delta Merner, cientista-chefe do centro científico para litígios climáticos da organização Union of Concerned Scientists (União dos Cientistas Preocupados). "A ciência da atribuição pode nos ajudar a realmente descobrir o papel das alterações climáticas nesses diferentes eventos.”

Quando se espalharam da costa leste para a oeste, em meados de 2023, os incêndios florestais do Canadá queimaram quase o dobro da área do recorde anterior.

Em resposta, os investigadores da iniciativa World Weather Attribution (WWA), sediada no Reino Unido, realizaram um estudo tipicamente rápido para determinar até que ponto as alterações climáticas de origem humana aumentaram a probabilidade de um incêndio sem precedentes.

Focado na província do Quebec, o levantamento concluiu que as mudanças ajudaram a criar um clima seco e entre 20% a 50% mais "propenso a incêndios" do que a média, mais do que dobrando a probabilidade de incêndios extremos no leste do Canadá.

O clima mais quente e seco fez fez a neve derreter-se mais rápido, por exemplo, antecipando o início da temporada de incêndios e aumentando sua duração.

A WWA afirma que os avanços na modelagem climática e o melhor acesso aos dados meteorológicos aumentaram a confiabilidade e a precisão dos estudos para avaliar a probabilidade de eventos climáticos extremos com ou sem mudanças climáticas.

A crise climática nem sempre pode ser diretamente responsabilizada por fenômenos meteorológicos extremos. Em maio de 2023, na região de Emília-Romagna, no norte de Itália, três tempestades provocaram deslizamentos de terra generalizados e inundações consideradas as piores em um século.

Mas embora a subida das águas se alinhe com a maior incidência, em nível mundial, de condições meteorológicas extremas provocadas pelo clima, os pesquisadores concluíram ter-se tratado de um evento isolado.

Depois de analisar os registros de precipitação na Emília-Romagna, datando desde 1960, cientistas, incluindo Friederike Otto, climatologista do Imperial College London e cofundadora da WWA, concluíram que as chuvas da primavera na região não estão se tornando nem mais nem menos intensas com as mudanças climáticas.

Ou seja: esse período específico de chuva de 21 dias – único num período de 200 anos e com apenas 0,5% de probabilidade de acontecer anualmente – poderia ter ocorrido com ou sem mudanças climáticas.

As inundações foram causadas por condições climáticas únicas e incomuns, "impulsionadas por uma sequência sem precedentes de três sistemas de baixa pressão no Mediterrâneo central”, explicou o autor do estudo Davide Faranda, pesquisador do Instituto Pierre-Simon Laplace.

Depois da tempestade Daniel ter desencadeado inundações que causaram o rompimento de duas barragens e mataram milhares na Líbia no início de setembro, um estudo da WWA descobriu que o aquecimento planetário de causas humanas aumentou em até 50 vezes a probabilidade de chuvas torrenciais. As enormes inundações no centro da Grécia provocadas pela mesma tempestade eram até 10 vezes mais prováveis.

Após um verão de ondas de calor e incêndios florestais recordes com "uma impressão digital muito clara das mudanças climáticas, quantificar a contribuição do aquecimento global para estas inundações revelou-se mais desafiador”, ressalta Otto.

Para descobrir se o aumento da temperatura provocara chuvas mais intensas na região, os cientistas compararam os dados meteorológicos do clima anterior à década de 1880 com o clima atual,1,2ºC mais quente.

O relatório registra que a análise inclui "grandes incertezas matemáticas”, uma vez que os padrões climáticos cobriam áreas relativamente pequenas e "a maioria dos modelos climáticos não representa bem as chuvas nessas pequenas escalas”.

No entanto, "os estudos projetam chuvas mais intensas na região à medida que as temperaturas sobem”, e os dados da estação meteorológica local na Grécia, por exemplo, mostram uma tendência para chuvas mais intensas. Uma atmosfera mais quente retém mais umidade, então, com apenas 1,2ºC de aquecimento "esperaríamos um aumento de 10%” da intensidade das chuvas, exemplifica Otto.
Ondas de calor recorde em 2023

A conexão entre temperaturas extremas e aquecimento global costuma ser muito mais clara do que no caso das chuvas. A WWA publicou um estudo mostrando que o calor extremo em julho de 2023 em regiões dos EUA, do México e no sul da Europa "teria sido virtualmente impossível de ocorrer se os humanos não tivessem aquecido o planeta com a queima de combustíveis fósseis".

No mês em questão, mais de 6,5 bilhões de indivíduos – ou cerca de 80% da população mundial – foram expostos a um ou mais dias de calor pelo menos três vezes mais prováveis de ocorrer por causa das mudanças climáticas, de acordo com a análise de atribuição da Climate Central, um think tank climático com sede nos EUA.

A análise avaliou 4.700 cidades em 200 países, tendo descoberto que os residentes de 15 grandes cidades com populações acima de 6 milhões foram expostos a temperaturas médias mensais elevadas tornadas mais prováveis pelo aquecimento global. Entre elas, estão Cidade do México, Cairo, Calcutá, Lagos, Hong Kong, Miami e Cartum.

"As mudanças climáticas causadas pelos humanos influenciaram as temperaturas de julho para a grande maioria da humanidade”, disse Andrew Pershing, vice-presidente de ciência da Climate Central. "Em todo o planeta, o ser humano médio esteve exposto a 11 dias em que a poluição por carbono tornou a alta da temperatura local pelo menos três vezes mais provável. Praticamente nenhum lugar da Terra escapou à influência das mudanças climáticas."