quarta-feira, 10 de abril de 2024

Promotores apuram envolvimento de agentes públicos no megaesquema de lavagem de dinheiro do PCC

Um espectro ronda o Brasil: o espectro do crime organizado. Trabalhadores, policiais, empresários, religiosos, ateus, brancos, negros ou índios têm vivido uma guerra ininterrupta ora franca ora disfarçada; uma guerra que sempre terminou pela derrota de uma das partes nesse conflito: o Estado ou a criminalidade organizada.

O acento deslocado aqui das lutas sociais para a paz e segurança pública não significa renúncia à civilização em defesa de soluções de força. Poder não se confunde com violência, como ensinava Hannah Arendt; ela só se estabelece onde o poder é fraco ou está em crise. É o que vivemos na Segurança Pública do País. O alerta agora vem da Operação Fim da Linha, executada ontem pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e pela Receita Federal. Ela mostra o grau da captura do sistema público de transporte pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Foram cumpridos dezenas de mandados de busca e decretado bloqueio de bens até o limite de R$ 680 milhões, além de prisões.


Mas não deve parar por aí. Um esquema assim não se circunscreve à maior cidade do País. Ele se espraia como uma metástase pelo interior, por municípios sem estrutura para lidar com a sofisticação cada vez maior dos esquemas de fraudes e lavagem de dinheiro de organizações criminosas, que, evidentemente, não teriam se estabelecido sem a incompetência e a desídia de quem devia combatêlas ou simplesmente sem a corrupção de agentes públicos. Essa é a certeza compartilhada pelos promotores responsáveis pela operação: há ainda um longo caminho para desentocar do Legislativo e do Executivo os que foram corrompidos pelo dinheiro das organizações criminosas.

A lição que Gaeco e Receita deixam aos adeptos do estilo Rambo de policiamento é a do fracasso de quem acha que vai derrotar o crime organizado na base da bala. O coronel José Vicente da Silva Filho usa o exemplo da comunidade do Jacarezinho, no Rio, ao tratar do fiasco dessa tática. “De 2007 a 2020 foram feitas ali 289 operações com 186 mortes. Não era para ter resolvido o problema de segurança nas primeiras ações?” A pergunta é pertinente. Ações como a Operação Escudo não arranharam a unha do PCC.

Normalmente, truculência da polícia só encarece o acerto e a venda de segurança privada. Os suspeitos de sempre são baleados pelo populismo policial, que só interessa aos deputados policiais e aos que aplaudem a barbárie como se estivessem no coliseu romano. Não faltará bandido pé de chinelo para substituir os mortos. Enquanto isso, o crime se enriquece nas barbas de políticos que, atrás dos tiros, enxergam apenas votos.

Para onde vai Israel?

O chef espanhol José Andrés, fundador da World Central Kitchen (WCK), especializada em distribuir ajuda alimentar a vítimas de conflitos armados, acusou o Exército israelense de ter assassinado deliberadamente sete funcionários da organização. Segundo Andrés, o atual governo de Israel trava uma guerra contra a Humanidade.

Andrés não é a única pessoa a pensar assim. Um pouco por todo o mundo cresce a percepção de que Israel está em vias de se transformar num estado terrorista.

Nos últimos dias, além do assassinato dos funcionários da WCK, Israel atacou a embaixada iraniana em Damasco, causando 11 mortes. Por outro lado, em mais uma manobra que confirma a deriva totalitária em curso, o Knesset, parlamento israelense, aprovou legislação que visa a silenciar a Al-Jazeera e outros canais noticiosos internacionais críticos do regime. Tudo isto enquanto prossegue a matança em Gaza.


Mais tarde ou mais cedo, a pressão interna e externa culminará no afastamento de Benjamin Netanyahu e do seu governo extremista. A grande questão não é saber se o primeiro-ministro cairá, mas quando. Muito mais importante: quem o substituirá?

Dezenas de milhares de judeus israelenses que vêm exigindo nas ruas a saída de Netanyahu não parecem muito incomodados com o dramático destino da população palestina. Os judeus israelenses estão zangados com o atual governo porque este não foi capaz de prever e de se antecipar ao ataque terrorista do Hamas, a 7 de outubro de 2023. Estão zangados porque Netanyahu é indiferente ao destino dos reféns. Estão zangados com a incompetência política, diplomática e militar dos seus governantes, que não conseguem nem eliminar o Hamas, nem contrariar o processo de isolamento do país.

A crueldade e a arrogância dos dirigentes israelenses — muitos dos quais defendem, sem o menor vestígio de vergonha, a expulsão dos palestinos de Gaza — horrorizam o mundo, e uma larga parte das comunidades judaicas fora de Israel. Contudo, dentro das fronteiras do país são raras as vozes judias que se erguem para se solidarizar com o sofrimento do povo palestino.

Aprendi a amar Israel através da sua literatura, lendo as obras de escritores lúcidos e corajosos, capazes de olhar o outro, como quem se olha ao espelho, e de erguer pontes de afeto e de empatia entre as diferentes comunidades. Não sei onde estão agora esses escritores. Não sei onde estão as pessoas, os movimentos, as instituições, que possam servir de referência moral, em meio à tempestade de ódio e de bruta irracionalidade que varre o país.

Sim, Netanyahu cairá. Já está caindo. Cairão com ele, muito provavelmente, algumas das personalidades mais repugnantes que constituem o atual governo israelense. Nessa altura, ficaremos a conhecer todo o horror em curso na Faixa de Gaza. O pouco que sabemos hoje já nos permite intuir a imensidão do desastre. Israel levará gerações para reconquistar a simpatia do mundo.

Este é o vaticínio otimista. Implicaria uma insurgência pacifista, um amplo movimento de reflexão da sociedade civil israelense, que se atrevesse a colocar em causa muitos dos fundamentos do próprio estado de Israel. Infelizmente, não vejo sinais de que essa insurgência venha algum dia a emergir.

O declínio e a questão da razão

Em seu discurso de 1838 no Young Men’s Lyceum, o jovem Abraham Lincoln demonstrou preocupação com o fato de que, à medida que as lembranças da Revolução ficavam para trás, a liberdade da nação era ameaçada por um desprezo pelas instituições governamentais, que protegiam as liberdades civis e religiosas deixadas como legado pelos Fundadores. Para preservar o Estado de direito e evitar a ascensão de um pretenso tirano que poderia “surgir entre nós”, seria necessária uma razão sóbria — “uma razão fria, calculada, imparcial”. Para permanecer “livre até o último dos homens”, ele incitou o povo norte-americano a abraçar a razão, junto com uma “moralidade sólida e, em particular, uma reverência pela constituição e pelas leis”.

Como Lincoln sabia, os fundadores dos Estados Unidos haviam baseado sua jovem república nos princípios iluministas da razão, da liberdade, do progresso e da tolerância religiosa. E a estrutura constitucional que haviam arquitetado se fundamentava num sistema racional de separação dos poderes para evitar a possibilidade, nas palavras de Alexander Hamilton, do surgimento de “um homem sem princípios em sua vida privada”, “de temperamento insolente”, que talvez “viesse montado no cavalinho de pau da popularidade” e “exaltasse e se alinhasse com o disparate propagado pelos extremistas de sua era”, de modo a constranger o governo, “lançando ainda mais coisas nessa confusão para dominar a tempestade e direcionar o furacão”.


Esse sistema estava longe de ser perfeito, mas resistiu por mais de dois séculos graças à sua resiliência e à capacidade de acomodar mudanças essenciais. Líderes como Lincoln, Martin Luther King Jr. e Barack Obama viam os Estados Unidos como uma obra em progresso — um país em processo de autoaperfeiçoamento. E eles tentaram acelerar essa obra, cientes, nas palavras do Dr. King, de que “o progresso não é automático nem inevitável”, mas algo que necessita de esforços e dedicação contínuos. O que fora conquistado desde a Guerra Civil e o movimento dos direitos civis eram lembretes do trabalho que ainda havia por fazer, mas também um tributo à crença do presidente Obama de que os norte-americanos “podem se reinventar constantemente para se adaptar a sonhos cada vez maiores”, e à crença iluminista no que George Washington chamou de “o grande experimento confiado às mãos do povo norte-americano”.

Junto a essa visão otimista dos Estados Unidos como uma nação que poderia se tornar uma reluzente “cidade edificada sobre um monte” também existe uma contranarrativa irracional e sombria na história do país, que se reafirmou com uma vingança — a tal ponto que a razão não apenas está sendo minada, mas ao que parece foi simplesmente defenestrada junto com os fatos, com o debate bem informado e com a criação de políticas deliberativas. A ciência está sendo atacada, bem como a autoridade de especialistas de todos os campos — seja em política internacional, segurança nacional, economia ou educação.

Philip Roth chamou essa contranarrativa de “selvageria nativa americana”, e o historiador Richard Hofstadter notoriamente a descreveu como “estilo paranoide” — uma visão alimentada por “fervorosos exageros, desconfiança e fantasia conspiratória” e focada na percepção de ameaças a “uma nação, uma cultura, um modo de vida”. O ensaio de 1964 de Hofstadter foi inspirado pela campanha de Barry Goldwater e pelos movimentos de direita ao seu redor, assim como seu livro de 1963, Anti-Intellectualism in American Life, concebido em resposta à notória caça às bruxas promovida pelo senador Joseph McCarthy e também ao panorama político e social mais amplo dos anos 1950.

Goldwater perdeu a eleição presidencial, e o macarthismo se autodestruiu depois que um advogado do Exército norte-americano, Joseph Welch, teve a coragem de enfrentar McCarthy: “Afinal de contas, o senhor não tem nenhum senso de decência?”, perguntou Welch. “Não lhe sobrou nenhum senso de decência?”

O malicioso McCarthy, que havia acusado pessoas de deslealdade por todos os cantos de Washington (“o Departamento de Estado abriga um ninho de comunistas e simpatizantes dos comunistas”, avisou ao presidente Truman em 1950), foi admoestado pelo senado em 1954. E, com o lançamento do Sputnik pelos soviéticos, em 1957, o alarmante movimento antirracionalista começou a recuar, dando lugar a uma corrida espacial e a uma série de esforços orquestrados para aprimorar os programas científicos dos Estados Unidos.

Hofstadter notou que o estilo paranoico tende a se manifestar em “ondas episódicas”. O movimento anticatólico e anti-imigrante Know Nothing atingiu seu auge em 1855, quando 43 membros do Congresso admitiram abertamente defender suas próprias ideias. A força do movimento começou a se dissipar rapidamente no ano seguinte, depois que o partido se fragmentou em várias dissidências. No entanto, a intolerância que ele incorporava permaneceu, como um vírus, incubado no sistema político esperando para emergir outra vez.

Hofstadter argumenta que a direita moderna tende a ser mobilizada por um sentimento de ressentimento e desapropriação: “Os Estados Unidos, em grande parte, foram tomados dessas pessoas”, escreveu ele, e elas podem acabar achando que “não têm acesso à barganha política ou à tomada de decisões”.

No caso dos Estados Unidos dos millenials (e de grande parte da Europa Ocidental também), esse ressentimento é exacerbado pelas mudanças demográficas e pelos costumes sociais que fizeram alguns membros da classe operária branca se sentirem cada vez mais marginalizados; por conta de desigualdades de renda cada vez maiores, aceleradas pela crise financeira de 2008; e por forças como a globalização e a tecnologia, que estão acabando com os trabalhos de manufatura e injetando uma nova dose de incerteza e angústia na vida cotidiana.

Trump e outros líderes nacionalistas e anti-imigrantes da direita europeia, como Marine Le Pen na França, Geert Wilders na Holanda e Matteo Salvini na Itália, inflamavam esses sentimentos de medo, ódio e privação de direitos, oferecendo bodes expiatórios em vez de soluções; enquanto liberais e conservadores, preocupados com a ascensão do nativismo e de agendas políticas preconceituosas, alertaram para o fato de que as instituições democráticas estavam cada vez mais ameaçadas. “A segunda vinda”, poema que Yeats escreveu em 1919 em meio aos escombros da Primeira Guerra Mundial, passou por um tremendo revival em 2016 — citado mais vezes em matérias na imprensa durante o primeiro semestre do que ao longo das últimas três décadas, uma vez que articulistas políticos evocaram seus famosos versos: “Tudo se parte, o centro não sustenta./ Mera anarquia avança sobre o mundo.”

O ataque à razão e à verdade atingiu seu ápice nos Estados Unidos durante o primeiro ano de mandato do presidente Trump, mas vinha sendo incubado havia anos pela extrema direita. Durante a campanha de 2016, opositores de Clinton que fabricavam acusações delirantes sobre a morte de Vince Foster na década de 1990 se uniram a membros paranoicos do Tea Party que afirmaram que os ambientalistas queriam controlar a temperatura das casas e as cores dos carros. A eles se juntaram blogueiros do Breitbart e trolls da direita alternativa. Quando Trump ganhou a indicação dos republicanos para concorrer à presidência, as ideias extremistas dos seus apoiadores mais radicais — sua intolerância racial e religiosa, seu ódio pelo governo anterior e sua aceitação das teorias da conspiração e das notícias falsas — chegaram ao grande público.

De acordo com um levantamento feito em 2017 pelo The Washington Post, 47% dos republicanos erroneamente acreditam que Trump venceu no voto popular; 68% acreditam que milhões de imigrantes ilegais votaram em 2016; e mais da metade dos republicanos afirmaram não ver problemas em adiar as eleições presidenciais de 2020 até que se resolvam problemas como a votação dos imigrantes ilegais.19 Outro estudo, conduzido por cientistas políticos na Universidade de Chicago, demonstrou que 25% dos norte-americanos acreditam que a quebra da bolsa em 2008 foi secretamente orquestrada por um pequeno grupo de banqueiros; 19% acreditam que o governo tem algum envolvimento com os ataques terroristas do 11 de Setembro; e 11% acreditaram numa teoria que os próprios pesquisadores inventaram, que dizia que lâmpadas fluorescentes faziam parte de um plano do governo para tornar as pessoas mais passivas e fáceis de serem controladas.

Trump, que lançou sua carreira política promovendo descaradamente o nascimentismo (birtherism) e já falou positivamente sobre o radialista e teórico da conspiração Alex Jones, preside uma administração que se tornou, em seu primeiro ano, a própria personificação dos princípios anti-iluministas, repudiando os princípios do racionalismo, da tolerância e do empirismo tanto nas políticas quanto no modus operandi — um reflexo do estilo impulsivo e errático de seu comandante em chefe em tomar decisões, baseado não em conhecimento, mas no instinto, em caprichos e em ideias preconcebidas (e frequentemente delirantes) a respeito do funcionamento do mundo.

Trump não fez nenhum esforço para acabar com sua ignorância a respeito das políticas interna e externa quando se mudou para a Casa Branca. Seu ex-estrategista chefe, Stephen Bannon, disse que o presidente só “lê o que reafirma suas crenças” e sempre negou, minimizou ou desconsiderou qualquer informação a respeito da interferência russa nas eleições de 2016. Como menções a esse assunto costumavam provocar a ira do presidente e podiam atrapalhar o andamento dos relatórios diários de inteligência, funcionários do governo contaram em entrevista ao The Washington Post que, às vezes, incluíam esse tipo de material somente na versão impressa do PDB (President’s Daily Brief, o relatório diário do presidente), que todos sabiam que ele raramente lia.

Em vez disso, ao que parece o presidente prefere obter suas informações na Fox News, sobretudo no programa matinal bajulador Fox & Friends e em veículos como o Breitbart News e o National Enquirer. De acordo com relatos, ele costuma passar até oito horas por dia vendo TV — um hábito que deve fazer com que muitos leitores se recordem de Chauncey Gardiner, o jardineiro viciado em TV que virou celebridade e estrela política em ascensão no romance O Videota, de Jerzy Kosiński, publicado em 1970. A Vice News também relatou que Trump recebe, duas vezes por dia, uma pasta contendo um clipping elogioso, incluindo “tuítes de admiradores, trechos de entrevistas bajuladoras na TV, matérias jornalísticas repletas de elogios e, de vez em quando, apenas fotos de Trump na TV parecendo poderoso”.

Esse tipo de detalhe absurdo é mais preocupante do que apenas cômico, porque não estamos falando de um mero episódio de Além da imaginação sobre um lunático morando numa enorme casa branca em Washington. A propensão de Trump para o caos não só não foi contida pelos mais próximos a ele, como contaminou toda a sua administração. Ele garante ser “o único que importa” quando o assunto é a criação de políticas e, dado o seu desprezo pelo conhecimento institucional, ignora com frequência os conselhos de membros do gabinete e de agências, isso quando não os exclui por completo da discussão.
Michiko Kakutani, "A morte da verdade"