terça-feira, 17 de outubro de 2017

Indecências

Discursos raivosos contra a nudez em exposições de arte ecoam no Parlamento. Eles anunciam o “fim dos tempos”, as maquinações diabólicas, o Brasil trilhando o caminho de Sodoma e Gomorra. Roguei ao mestre Houaiss, no seu Dicionário da Língua Portuguesa, e ele me revelou vários sinônimos para a “satânica indecência” condenada pelos furiosos inquisidores, arautos “da moral e dos bons costumes”: indignidade, obscenidade, descaramento, escândalo, indecorosidade, cupidez, dissipação, luxúria, torpeza, despudor, sem-vergonhice.

Não consegui ficar no universo da arte – que existe para fazer pensar. E comove, inquieta ou desagrada, a critério de quem voluntariamente a contempla. Lembrei, isso sim, de indecências a que somos obrigados a assistir diariamente, sem direito de escolha – como a de entrar ou não em um museu. Basta dar uma olhada nas ruas ou no noticiário recente para ver que a indignidade campeia!


É uma obscenidade termos os 10% mais ricos abocanhando 55% da renda nacional, enquanto a fatia dos mais pobres é de 12%, em “extrema e persistente desigualdade”, como disse o economista Thomas Piketty. Não é um descaramentoexistirem milhares de crianças dormindo sob as marquises de nossas principais cidades? E termos um modelo econômico que deixa mais de 13 milhões de brasileiro(a)s adultos sofrendo o flagelo do desemprego? Não escandaliza um país com tanto potencial ser a terra dos sem-teto, dos sem-terra, dos sem-escola de qualidade, dos sem-direitos elementares à vida digna?

Não é uma indecorosidade a ausência de políticas básicas, condenando quase 50% dos domicílios, em pleno 2017, a não ter rede de água e esgoto? No primeiro semestre deste ano, o governo temerário investiu 69% menos no saneamento básico que no mesmo período do ano passado. Agregue-se a isso o fato vergonhoso de 60% das cidades vazarem seu lixo a céu aberto, contaminando o solo e as águas e gerando doenças de todo o tipo – que atingem sobretudo os mais pobres de seus habitantes.

Há cupidez nos lucros extraordinários e indecentes dos bancos e dos grandes rentistas, para quem a crise jamais chega. E na injustiça tributária que faz com que quem recebe dois salários mínimos comprometa 53% da sua renda com pagamento de impostos, enquanto quem ganha 30 salários ou mais compromete 29%.

As colunas sociais retratam a dissipação de milhões da casta privilegiada em seus banquetes e convescotes, com recursos muitas vezes originários dos fundos públicos e da sonegação, pelos quais não há zelo, e sim voracidade. A luxúria norteia os que estão a léguas de distância da “austeridade moral” pregada pelo papa Francisco, ao condenar o “apego ao dinheiro, às mansões, aos trajes refinados, aos carros de luxo”.

É uma torpeza a movimentação atual de tacanhos que querem tirar do mestre Paulo Freire (1921-1997) o título de “patrono da educação brasileira”. A ignorância perdeu a modéstia! É um despudor defender uma escola sem pensamento crítico, disfarçada de “Escola Sem Partido”.

Por fim, mas não por último, aí está a sem-vergonhice de cada dia: compra de votos para parar investigação, negação de evidências de corrupção, proteção aos da corporação. Descarado e indecente movimento para “estancar a sangria” do desvendamento da roubalheira que, além de histórica, parece ser eterna.

Os bonecos e os ventríloquos

A sucessão de escândalos é tanta que já nada escandaliza e o absurdo desfila à nossa frente como rotina do cotidiano. Mais que perigoso, isso é deformante. Além de nos fazer perder a visão crítica, leva-nos a não saber distinguir o preto do branco, o amargo do doce ou o sal do açúcar.

É deformante porque, ao ver tudo igual e confuso, perdemos a ideia concreta do mundo e facilmente assimilamos a maldade para entronizá-la na vida como algo mais atraente e mais atrativo que a bondade. O Brasil talvez resista, pois – ao longo de séculos, desde a existência – tem resistido à sanha predatória dos donos do poder.

Mas, e se pudéssemos construir e somar (tal qual outros povos), e não apenas resistir, como se nosso destino fosse a defesa por sermos assediados, atacados, invadidos e desmantelados por nós próprios?

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Como compreender, porém, que a ideia inicial de construir um futuro comum nasce sempre de uma elite, mas é tarefa de todo o povo? Como fazer? Não temos elites. E com as elites que temos, fúteis ou corrompidas, por acaso podemos ter povo? Se as elites se portam como chusma ávida e ignorante, podemos pretender que o povo (ignorado e levado à ignorância) se porte como nobre e altruísta elite?

Isso, porém, não é nosso “pecado original” por sermos brasileiros, nem marca congênita, como a cor dos olhos. De fato, é algo imposto pelo uso e pelo hábito. Ou, mais do que tudo, imposto por nossa inércia, preguiça ou medo de gritar “não” quando há que dizer “não”. Ou dizer “sim” quando assim há que dizer.

Nos últimos anos, um quadro estarrecedor veio à tona no Brasil. Passamos a descobrir tudo aquilo de que já desconfiávamos há décadas ou séculos – os grandes atos não são decididos pelos governantes, que mais parecem bonecos de ventríloquos. Quando abrem a boca, quem em verdade diz o que pensa é o antigo ventríloquo, que maneja uma cordinha e fala pela comissura dos lábios, acionando o esôfago.

Na era eletrônica, esses bonecos de antes já não alegram a criançada. Passaram a ser de carne e osso e, com nosso voto, ocupam postos de governo. Os ventríloquos, porém, subiram na vida e, hoje, governam em vez dos governantes.

Alguma dúvida?

Quem, entre nós, mandava ou talvez ainda continue a mandar? Os governantes ou gente alheia aos governos? Os Odebrechts, pai e filho, a OAS e outras grandes empreiteiras de obras públicas? As montadoras, comprando “medidas provisórias”? Os irmãos da Friboi, de estranhos nomes e mil habilidades, que (com dinheiro do BNDES) transformaram um açougue num império industrial com reinos espalhados pela Europa e Norte América?

Mais estarrecedoras são as somas de centenas de milhões de dólares, ou bilhões de reais, distribuídos pelos ventríloquos a governantes e políticos. Que não haja surpresa, porém! Os bilhões do suborno e das propinas não pesam no bolso dos ventríloquos, pois não vêm deles. São recursos públicos, carreados e distribuídos pelo BNDES. Ou seja, vêm do FGTS, o fundo de garantia de quem trabalha.

Por isso os ventríloquos são dadivosos e facilmente repassam milhões aos bonecos que exigem suborno para continuar bonecos.

A Procuradoria-Geral da República vem demonstrando que tanto a organização criminosa montada pelo PMDB, e encabeçada por Temer, Eliseu Padilha e Moreira Franco, quanto a similar que Lula da Silva, Palocci e seus asseclas montaram no PT (ou as incrustadas no PSDB, no PP e noutros partidos) têm com os corruptores uma intimidade absoluta. Mais do que uma relação “de pai para filho”, o comportamento se assemelha ao das gangues, em que todos têm consciência do crime e da bandidagem, mas agem como nobres cavalheiros.

Se, porém, um dos lados arranha o acordo, o outro se vinga com crueldade. Assim parece ter ocorrido com o que Joesley Batista e o doleiro Funaro revelaram sobre Temer, Eduardo Cunha e o PMDB. Ou no que Palocci, em ansiosa busca de benefícios na prisão, contou sobre Lula, seu chefe e guia de ontem.

A prática é antiga e proliferou escondida na ditadura militar. Mas só pôde ser desnudada há pouco, quando tivemos consciência de viver num regime de liberdade, com um Judiciário independente e uma imprensa sem travas e sem medo.

O Brasil, porém, prescinde de interpretações. Entre nós, as análises pouco valem e as previsões são apenas uma forma de comentar o passado, nunca de antever o amanhã. A razão principal é que nosso futuro é decidido pelo suborno.

E não só no conluio entre os grandes do setor público e privado. Entre os pequenos, e no dia a dia, quem não terá, pelo menos, pensado em subornar o guarda de trânsito para que a multa não suje a carta de motorista? Ou o instalador da antena de TV, telefone e internet, para “navegar” rápido pelo mundo?

O pequeno deslize é a miniatura do delito maior. Nos últimos tempos, a orgia da sociedade de consumo faz com que tudo se permita. A permissividade manda e desmanda. A realidade passou a ser tão rica em absurdos que o fato de ontem é superado pelo de hoje, o qual – por sua vez – será ultrapassado pelo de amanhã, como se um revogasse o outro. É difícil, quase impossível, sequer interpretar o presente, quanto mais o futuro.

Aqui, as ciências sociais (que já têm pouco de ciência e muito de pitonisa) falham completamente. Sociólogos, politólogos, economistas (também jornalistas) podem analisar e prever apenas o passado. E mesmo assim com dificuldade, pois tudo se esconde e a realidade se oculta.

Tal qual, por anos a fio, exímios ventríloquos esconderam o horror bilionário do PMDB de Sérgio Cabral, no Rio, ou o que o PP de Maluf comandou na Petrobrás por indicação do PT de Lula. E centenas de outros já descobertos ou a descobrir, todos na mão dos ventríloquos.

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Lake Palace on Lake Picola in Udaiphur, India
Palácio do Lago em Udaiphur (Índia)

Poder a todo custo

A política mineira estará exposta hoje e amanhã em Brasília. No centro das atenções, herdeiros de clãs dominantes no estado há mais de um século e com sobrenomes familiares inscritos nos livros de História.

O senador Aécio Neves vai à luta pelo seu mandato no tapete azul do Senado. O deputado federal Bonifácio José Andrada tenta salvar Michel Temer no tapete verde da Câmara.

O presidente será defendido por Bonifácio José, 87 anos, tataraneto de José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Ele nasceu na velha UDN e cresceu na Arena, esteio do regime militar. Foi candidato do PDS, em 1989, a vice na chapa presidencial de Paulo Maluf — para quem Temer é um político “101% honesto”.

Expoente do conservadorismo, o deputado Bonifácio José está completando 20 anos de militância no PSDB liderado pelo senador Aécio — cujo avô, Tancredo, governou Minas e derrotou Maluf na eleição indireta de 1985 (morreu sem tomar posse na Presidência.)

Três décadas de vida separam Aécio de Bonifácio. Eles partilham sempre o mesmo objetivo: mudar para que tudo continue como está. Cultuam a tradição da afinidade com o poder, não importa o custo.

Hoje, por exemplo, Aécio depende do auxílio de Temer no Senado. O presidente da República precisa de Bonifácio José na Câmara. E o tataraneto do Patriarca necessita das conexões de Aécio no poder central, essencial para continuar atendendo às necessidades de Aécio no colégio eleitoral da região de Barbacena, onde os Andrada influem há mais de 180 anos.

Num breve passeio pela capital, pode-se entender como a geografia política molda biografias. O torcedor que sai do centro de Belo Horizonte para assistir a um jogo no Mineirão atravessa a “avenida Antonio Carlos”, homenagem ao Andrada terceiro chefe do clã de Barbacena. O turista desembarca no Aeroporto Tancredo Neves (Confins) e no caminho à cidade é surpeendido pelo mastodôntico Centro Administrativo Tancredo Neves.

Aécio e Bonifácio José são conservadores até no estilo. Quando discursa, o neto de Tancredo macaqueia o avô, e fala como se vivesse no mundo em preto e branco do antigo PSD mineiro. Quem se der ao trabalho de ler as três dezenas de páginas de Andrada no voto a favor de Temer vai encontrar a estética da velha UDN. Primeiro, injuria-se e desqualifica-se quem ataca seu aliado. Assim, ele atribui ao Ministério Público, Polícia Federal e Judiciário — “macomunados” — uma conspiração para derrubar o presidente da República.

Em seguida, dedica-se à denúncia contra Temer de formação quadrilha para corrupção. Classifica a lei como vaga na definição de organização criminosa, e, logo, acusa a procuradoria de “amplo abuso sistemático” da suposta imprecisão legal.

Bonifácio José está no fim de um ciclo de 40 anos de mandato em Brasília. A defesa de Temer amanhã — por encomenda de Aécio, que será julgado hoje no Senado —, é parte de sua função de patriarca em Barbacena: a preservação do clã no círculo do poder é seu legado aos descendentes, iniciantes na política.

Políticos de gerações diferentes, Bonifácio José, Aécio e Temer têm um problema comum: a falta de sintonia com a sociedade que se modernizou.

José Casado

The Hot Sardines

Fétido centrão sanitário

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Um monte de gente agora quer ser de centro no Brasil, macaqueando o francês Emmanuel Macron.
A questão é que centro, aqui, sempre acaba no centrão.
Para falar a verdade, esquerda e direita também sempre terminam no centrão.
O abismo brasileiro é um fétido centrão sanitário.
O Antagonista

Haja estômago

Em outubro de 2014, manhã de domingo do segundo turno das eleições presidenciais, vimos disparar uma das campanhas mais asquerosas da política brasileira. Espalhados com rapidez impressionante pelas redes sociais, posts publicados, sem qualquer constrangimento, diziam que o doleiro Alberto Youssef havia sido assassinado na prisão. Queima de arquivo.

A boataria foi desmentida imediatamente pela Policia Federal, pela filha do doleiro e pelo então ministro da Justiça. De nada adiantou. Os rumores continuaram até a noite, quando se deu o anúncio da reeleição de Dilma Rousseff. Candidatos adversários de Dilma, obvia e lamentavelmente, também não foram poupados.

Campanhas ardilosas foram e são lançadas contra tudo e contra todos, a todo momento, pela internet. Fake news disseminam ainda mais ódio entre grupos, confundem eleitores, transtornam e distorcem processos que poderiam ser limpos e legais. A temperatura dessa febre certamente vai subir em 2018.

Não, não será nada fácil.

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No Brasil, estudos feitos pelo Grupo de Pesquisas em Politicas Públicas para o Acesso à Informação, da Universidade de São Paulo, apontam que 12 milhões de pessoas espalham noticias falsas sem a menor cerimonia. O Grupo monitorou 500 páginas digitais de conteúdo politico falso ou distorcido. Esse mal, às vezes, está muito mais perto de nós do que a gente imagina. Conheço pessoas que se animam com qualquer noticia contra a "esquerda" ou a "direita" e contra "eles", publicam qualquer noticia sem checar.

Estranho comportamento para um público que se diz atento às noticias falsas. Pesquisa realizada em janeiro deste ano, para a BBC, pela respeitada GlobeScan/Sustainability Surveys com internautas de 18 países, concluiu que os brasileiros são o povo mais preocupado em separar o joio do trigo. Será?

Depois do Brasil, vem França, Russia, China e Estados Unidos. Não cabe duvidar da pesquisa, mas, sinceramente, pode sobrar algum ceticismo. Barbas de molho. Todo cuidado é pouco ao replicar noticias. Feitiço contra o feiticeiro, tiro no pé, tudo pode acontecer. Nas redes, a campanha eleitoral de 2018 ja começou. Não é oficial, nem legal, mas a maldade já toma corpo.

Em 2018, as notícias falsas, mesmo sendo falsas, ficarão no ar durante toda a campanha eleitoral, ou o tempo que seus autores quiserem. A reforma aprovada por Temer garantiu que os provedores não terão obrigação de tirar do ar informações denunciadas como inverídicas. É recomendável que a gente duvide um pouco de tudo. Sob pena de pagarmos todos o mesmo pato.

Paisagem brasileira

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Cumbuco (CE)

Programado para estragar

A frase foi publicada em 1928 na Printer’s Ink, revista do setor publicitário norte-americano: “Um artigo que não estraga é uma tragédia para os negócios.” Para que vender menos se você pode vender mais projetando produtos com um defeito incorporado? Por que não abandonar esse afã romântico de fabricar produtos bem feitos, consistentes, duradouros, e ser logo prático? Não será melhor para o business fazer com que o cliente tenha de abrir a carteira mais vezes?

Essa é história de uma ideia que ganhou força como salvação dinamizadora nos anos da Grande Depressão, transformou-se num mantra da sociedade de consumo – comprar, usar, jogar fora, voltar a comprar – e se tornou, já na atualidade, uma séria ameaça ao meio ambiente. É uma história escrita aos poucos, capítulo por capítulo. O último e mais importante deles é o destaque que a questão ganhou nos debates da Europa, sinal de que existe uma crescente conscientização: em 4 de julho, o Parlamento Europeu aprovou (por 622 votos a favor e 32 contra) o Relatório sobre Produtos com Uma Vida Útil Mais Longa: Vantagens para os Consumidores e as Empresas, pedindo que a Comissão Europeia adote medidas.

Não só isso. A França, país com a legislação mais dura da Europa contra a obsolescência programada, acaba de registrar a primeira denúncia de um coletivo de consumidores contra os fabricantes de impressoras. O fato ocorreu em 18 de setembro: a associação Halte à l' Obsolescence Programmée (HOP, Contra a Obsolescência Programada) acusou marcas como Epson, HP, Canon e Brother de práticas destinadas a reduzir deliberadamente a vida útil de impressoras e cartuchos.

O truque não é novo. Começou a ser usado no final do século XIX na indústria têxtil (quando os fabricantes começaram a utilizar mais amido e menos algodão) e se consolidou em 1924, quando General Electric, Osram e Phillips se reuniram na Suíça e decidiram limitar a vida útil das lâmpadas a 1.000 horas, tal como aponta o festejado documentário espanhol Comprar, Tirar, Comprar (“comprar, jogar fora, comprar”), de Cosima Dannoritzer. E assim foi assinado o atestado de óbito da durabilidade.


Hoje, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento são usados para reduzir a durabilidade do que compramos
Benito Muros
Lixão de Agbogbloshie em Accra (Gana), onde
 se amontoa  o descarte de Europa e EUA
Até então, as lâmpadas duravam mais. Como a que brilha ininterruptamente desde 1901 na central dos Bombeiros de Livermore, na Califórnia. De filamento grosso e intensidade menor que a de suas sucessoras (o que impede o alto aquecimento), essa lâmpada foi concebida para perdurar. E continua lá, brilhando, mostrando que a obsolescência programada está longe de ser um mito.

Desde a sensação causada nos anos trinta pelas meias de náilon Du Pont, que não rasgavam, até o telefone inteligente que fica burro sem razão aparente – e só um ano e meio depois de ser adquirido –, muita água passou debaixo da ponte. A obsolescência programada (OP) foi aprimorada. E a intenção de fraude por parte do fabricante não é algo fácil de demonstrar.

“Hoje, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento são para ver como reduzir a durabilidade dos aparelhos, mais do que para melhorá-los ao consumidor”. Quem se expressa de forma tão contundente é Benito Muros, um ex-piloto de 56 anos que há anos denuncia a OP. Presidente da Fundação Energia e Inovação Sustentável Sem Obsolescência Programada (Feniss), ele afirma que a OP está presente em todos os dispositivos eletrônicos que compramos, “até mesmo nos carros”.

Muros lidera uma empresa que desenvolve lâmpadas, semáforos e projetos de iluminação pública para Prefeituras da Espanha, conta que hoje é possível observar muitas formas de OP no mercado: dispositivos com carcaças que não permitem a dissipação do calor, e cujo aquecimento gera falhas prematuras; componentes como os condensadores eletrolíticos, cujas dimensões determinarão a vida do produto (perdem líquido com as horas de uso; quanto menor for a capacidade de armazenamento de líquido eletrolítico, menos vai durar); baterias que não podem ser retiradas (como foi o caso do iPhone) e que obrigam o usuário a comprar um novo aparelho; chips que agem como contadores e que estão programados para que o sistema pare de funcionar após certo número de utilizações, como ocorreu com algumas impressoras (o consumidor que ousar tentar consertar uma logo escutará que é mais barato comprar outra).

Muros, que diz ser alvo de campanhas de difamação na imprensa por se opor à OP – e que fabricou uma lâmpada que foi objeto de controvérsia, – afirma inclusive que atualizações enviadas para os nossos smartphones escondem uma mudança de software que os torna mais lentos.

“Eles te enviam uma espécie de vírus que serve para preparar o telefone para o seu final”, diz. Outro aparelho jogado no lixo, e outro resíduo eletrônico que, mais cedo ou mais tarde, vai parar nos tóxicos (e sinistros) lixões que o mundo rico alimenta em lugares remotos, como a África.

Cerca de 215.000 toneladas de aparelhos eletrônicos, procedentes sobretudo dos Estados Unidos e da Europa, desembarcam todo ano em Gana, segundo a Motherboard, uma plataforma multimídia de longa trajetória sobre trabalhos de pesquisa. Acabam gerando 129.000 toneladas de resíduos em lugares como Agbogbloshie, um dos maiores lixões tecnológicos do mundo, situado em Accra, a capital do país.

Pré-sal, cleptocracia e a nova aposta suicida do Brasil

O pré-sal é uma “maldição” e os petrodólares que compram “a tudo e a todos” deixaram o Governo brasileiro “entorpecido”. Por mais que me desse gosto ser o autor dessas colocações, elas não são minhas: provêm justamente de uma das pessoas que mais fizeram para que o país mergulhasse de cabeça no poço escuro da economia do petróleo, o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci Filho.

Numa carta de desfiliação partidária que já nasceu um clássico, Palocci, o outrora gênio político responsável pelo sucesso do Governo Lula e atualmente persona non grata do petismo, fez alertas graves sobre a obsessão dos donos do poder no Brasil pelos hidrocarbonetos. Tais alertas passaram batidos no noticiário, dado o teor de nitroglicerina do restante do texto. Mas é fundamental que eles sejam relidos e compreendidos, à direita e à esquerda.

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Ao dizer que a descoberta das reservas supostamente fabulosas do pré-sal transformou o Governo brasileiro numa cleptocracia, Palocci revela um segredo de polichinelo. A chamada “maldição dos recursos naturais” é um fenômeno conhecido e bem estudado pelos economistas: países que encontram dinheiro fácil no subsolo começam a deixar de fazer investimentos produtivos em outros setores da economia. Acabam dependentes de uma única commodity e primarizados. Em geral, esse mesmo dinheiro cria uma casta política corrupta, mina a democracia e, quando ele acaba, ou quando o preço da commodity despenca, deixa em seu lugar um Estado falido e uma população na miséria.

O exemplo mais recente é a Venezuela, mas pense na Rússia dos anos 1990, no Iraque devastado, no Irã linha-dura, na corrupta Nigéria e na feudal Arábia Saudita, onde as mulheres acabam de conquistar o direito de... dirigir. A civilizada Noruega, que guardou num porquinho o dinheiro dos royalties do petróleo, o Canadá e os até recentemente democráticos EUA são exceções que confirmam a regra.

Nem é preciso ir muito longe atrás de exemplos. Basta olhar para o Rio de Janeiro, onde a riqueza petroleira alimentou um Governo cujo chefe está na cadeia – e, quando as receitas começaram a despencar, deixou atrás de si um Estado em frangalhos e uma janela aberta para a ressurgência do poder dos traficantes de drogas.

Palocci se esqueceu de dar esse aviso, mas a situação vai piorar. O petróleo enquanto mola-mestra da economia mundial está com os dias contados. Os veículos elétricos estão entrando no mercado nos países desenvolvidos a uma velocidade muito maior do que indicavam as projeções, constatação que fez a revista The Economist decretar em agosto em sua capa “a morte do motor a combustão interna”. De acordo com alguns estudos, os carros elétricos podem levar a demanda por petróleo ao pico já na próxima década e adquirir domínio do mercado em 2035. Para quem e por quanto tempo o Brasil espera vender petróleo?

Outro fator que ameaça encurtar o sonhado futuro petroleiro do país é a realidade climática. Mesmo sem El Niño, 2017 se encaminha para ser o segundo ou terceiro ano mais quente da história. Num intervalo de três meses assistimos a uma onda de calor brutal na Europa, monções assassinas na Ásia e três superfuracões no Atlântico. A capital do Brasil raciona água e as hidrelétricas estão mais uma vez a perigo. A única forma de mitigar essa realidade é uma implementação rápida e ambiciosa do acordo do clima de Paris. Só que a matemática de Paris é implacável: a maior parte das reservas de hidrocarbonetos do mundo terá de ficar no subsolo para que o objetivo final do tratado (salvar a humanidade) seja cumprido.

O Governo do Brasil parece ainda não ter entendido isso. Depois que a turma do Palocci deixou o poder, o país dobrou a aposta no petróleo e virou o novo queridinho das petroleiras estrangeiras. No próximo dia 27, o país realizará um aguardado leilão de blocos do pré-sal que, aventa-se, poderá render até US$ 36 bilhões (ironicamente, no mesmo dia, o Itamaraty estará discutindo com a sociedade civil a atuação do Brasil na próxima conferência do clima.) Também em outubro poderá ser promulgado um plano de eficiência energética em veículos, o Rota 2030, que dá passe livre aos veículos de carga a diesel. O atual presidente mantém a mesma proporção de investimentos em fósseis que sua antecessora: 70,5% do total de investimentos em energia. Ao mesmo tempo, e na contramão de nações como China e França, cortou investimentos em ciência, educação e inovação, reduzindo a chance de diversificar a economia no médio prazo.

O plano parece suicida. Enquanto a transição para economia descarbonizada acontece de Pequim a Palo Alto, o Brasil vai despejar bilhões em infraestrutura pesada para extrair e processar combustíveis fósseis e incentivar uma indústria automobilística para fabricar as carroças do século 21.

Em sua cela, no Paraná, Antonio Palocci pode ter o consolo de não fazer parte dele desta vez.

Carlos Rittl

Esquizofrenias do TF

Em artigo intitulado "Pantomima do STF fere a Lava Jato", reproduzido pelo G1 em 12 deste mês, Helio Gurotivz comenta o voto da ministra Carmem Lucia que delegou ao Senado decidir sobre o retorno ou não do senador Aécio Neves à sua cadeira naquela Casa. Extraio desse texto o seguinte trecho:

"Apesar de todos os cuidados para preservar sua autonomia, o STF abriu mão da prerrogativa de instância maior na decisão de questões constitucionais, aquela que tem o direito a ‘errar por último’, como afirmou Ruy Barbosa, citado por Celso de Mello em seu voto. Evitou, é verdade, uma crise maior com o Congresso. No próximo dia 17, um Senado feliz deverá livrar Aécio das punições previstas no CPP.
Mas o STF abriu também uma avenida para livrar a cara dos políticos acusados na Lava Jato. O relator da operação, ministro Fachin, se vê limitado na possibilidade de impor punições aos corruptos. Sob o manto de preservar a imunidade garantida pela Constituição aos parlamentares, o Supremo acabou por ampliar a (já ampla) esfera da impunidade.”
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Para compreender as pantomimas em que o Supremo permanentemente se envolve, suas fraturas e animosidades internas, seus frequentes votos de Minerva em que questões seriíssimas são definidas por um voto, e seus pedidos de vistas que hibernam no aconchego das gavetas, é preciso estar ciente das funções que aquelas 11 pessoas exercem ao deliberar.

Ora como plenário completo, ora como grupos em que periodicamente 10 dos 11 se repartem, ora monocraticamente, os ministros integram um poder que acumula quatro importantíssimas funções:
• Tribunal Constitucional,
• última instância do Poder Judiciário,
• Tribunal Penal para autoridades com privilégio de foro e
• Poder Moderador.

Qualquer possibilidade de segurança jurídica e coerência entre decisões sucessivas esbarra nessa pluralidade de atribuições, notadamente quando - e sempre que - o dispositivo constitucional a ser custodiado esbarra com o bem comum ou com a melhor conveniência nacional num determinado momento. Nesses casos, se estabelece a esquizofrenia. Ora é o Direito que fala mais alto no Tribunal Constitucional, ora é a Política que se faz mais audível no Poder Moderador.

Enquanto as questões constitucionais e o bem do país, a cada feito, disputam entre si a atenção do plenário, a impunidade se espreguiça na rede da lassidão e do mais tarde a gente vê isso. Não tem como dar certo.
Na calçada oposta, o Congresso Nacional vive suas alucinações entre a PF que pode bater à porta e o pleito de 2018. Caberia e ele, Congresso, pôr ordem na casa retificando o modelo institucional para maior racionalidade. Afinal, o Congresso é o poder que representa o povo na Câmara dos Deputados e os Estados no Senado Federal. Mas qual!

Percival Puggina

Gente fora do mapa

stevemccurrystudios:  This child is a member of the Suri tribe.NEW BLOG IS LIVEhttp://stevemccurry.wordpress.com/2014/02/24/children-of-the-omo/ Exhibition at Kunsthalle Erfurt, Germany, Opens February 21,2014 Beetles & Huxley Fine PhotographsLondon, UKOpens May 12, 2014Afghanistan
Steve McCurry

Olimpíadas de sangue do povo sem saúde, educação e segurança

Fernando Martins, jornalista, diretor da ANJ (Associação Nacional de Jornais) no Rio, conhecia o Salgueiro de “Chão de Estrelas” de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Ia passando na boca do morro, um velho e um rapaz carregavam uma moça.

– O que é que ela tem?

– Está passando mal. Vamos levar para o hospital do INSS em Andaraí.

– Entrem aqui no meu carro.

E Fernando Martins saiu em disparada para o Hospital de Andaraí.

Branca como uma nuvem, os olhos enormes saltando das pálpebras roxas, a moça tossia desesperadamente. O rapaz apertava a cabeça dela contra o peito e pedia baixinho:

– Calma, Gracinha, calma.

Trânsito ruim, Fernando furava o sinal, dava contramão, guardas apitando, anotando.

Ligou o rádio para distrair a moça. Elisete Cardoso cantava “Chão de Estrelas”:

– “Minha vida era um palco iluminado / Eu vivia vestido de dourado / Palhaço das perdidas ilusões.”

E a moça tossindo, sufocada. E Elisete cantando:

– “Cheio dos guizos falsos da alegria / Andei cantando minha fantasia / Entre as palmas febris dos corações.”.

A moça deu um gemido fundo, grunhiu forte. O rapaz, desesperado, o rosto lavado de sangue que saia do peito dela, golfadas esguichando, ensopando o tapete do carro.

E Elisete cantando: – “A porta do barraco era sem trinco / e a lua furando nosso zinco / Salpicando de estrelas nosso chão. / Tu, tu pisavas nos astros distraída / sem saber que a ventura desta vida / é a cabrocha, o luar e o violão.”


O velho apenas bateu com a cabeça. E passou os dez dedos calosos na testa da filha. O rapaz ficou soluçando baixinho, contido, beijando as pálpebras roxas. Tinha nos olhos o espanto dos loucos. E Elisete cantando:

– “Meu barraco no Morro do Salgueiro / Tinha o cantar alegre de um viveiro. /Foste a sonoridade que acabou./ E hoje, quando do sol a claridade / Forra meu barracão sinto saudade / Da mulher, pomba-rola que voou.”

Depois da correria, Fernando Martins chega ao hospital do INSS, em Andaraí. A moça tinha recebido alta algum tempo antes naquele mesmo hospital. Voltava morta. Apenas 21 anos, uma filha de dois meses. Comida pela tuberculose, a doença da fome.

Elisete já não cantava “Chão de Estrelas”.

O jogo tem que mudar. O relativo sucesso esportivo e cultural das Olimpíadas e das Paralimpíadas no Rio de Janeiro, de 2016, não pode apagar os desmandos e as roubalheiras de autoridades e dos dirigentes das federações esportivas brasileiras. A governança das entidades e de muitos clubes no Brasil é um desastre. Uma vergonha!

Pelo menos duas ações devem ser imediatamente apoiadas diante de tão grande número de escândalos no COI, na CBF e outras entidades: primeiro a apuração total e irrestrita da malversação dos recursos financeiros. E, segundo, buscar uma lei que limite ao máximo em dois mandados cada cargo de dirigente de federação e de time de futebol. Nada melhor para a gestão do que alternância de poder.

É hora de fechar o ralo do desperdício e da roubalheira para realizar as Olimpíadas da Saúde, da Educação, da Segurança, do Saneamento e da Pobreza. A vida do povo está em jogo.

Temer levou a sensibilidade humana ao balcão

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O governo de Michel Temer baixou portaria para dificultar a punição do trabalho escravo no país. Pense nisso sem pensar no resto. Esqueça a crise econômica e a crise moral. Pense só nisso. O trabalho análogo à escravidão, cuja existência em pleno século 21 já era um escândalo, virou um escárnio. Temer atende a uma exigência da bancada ruralista, que ameaçava votar a favor da denúncia contra o presidente na Câmara.

A pretexto de salvar o que lhe resta de mandato, Temer desdenha da posteridade para, conscientemente, criar embaraços para os fiscais do trabalho escravo. É como se o presidente da República, para preservar o próprio pescoço, se tornasse escravo dos interesses mais mesquinhos. O governo alcançou o estágio da banalidade do mal. Assume sua vilania, sua crueldade gratuita, com hedionda naturalidade.

Experimente colocar a portaria que cria embaraços à fiscalização do trabalho escravo nas suas circunstâncias. Pense na reunião em que o presidente discutiu com seus auxiliares o atendimento às demandas dos deputados ruralistas. Não ocorreu a ninguém dizer ‘quem sabe no combate ao trabalho escravo a gente não mexe!’ Ou ‘vamos oferecer mais cargos e emendas para essa gente’. Nada disso. Não ocorreu a ninguém dizer ‘gente, trabalho escravo pode pegar mal’. O mais trágico não é nem a crueldade. A tragédia está na percepção de que, para salvar Temer, até a sensibilidade humana foi levada ao balcão.

Surpresas

Vocês devem ter ficado tão “surpresos” quanto eu com o parecer do deputado Bonifácio Andrada sobre a segunda denuncia contra o presidente Michel Temer e seus ministros mais chegados, Moreira Franco e Eliseu Padilha. Teria sido melhor que nos tivesse poupado de mais esta pantomima, que ainda vai se arrastar alguns dias, fazendo com que as atenções do Planalto fiquem focadas na sobrevivência do governo, às expensas do Brasil.

Vocês também devem ter ficado “surpresos” com a criação do bilionário fundo para campanhas eleitorais. Afinal, como fariam os ínclitos parlamentares sem esta grana toda, que está fazendo falta para a saúde, a educação, os transportes e a segurança, entre outras tantas funções que o Estado deveria cumprir e que não cumpre porque diz que não tem dinheiro? E como ficariam os coitados dos marqueteiros que têm vivido à tripa forra em todas as eleições desde a redemocratização, agora vendo boa parte das fortunas dos políticos, com as quais se locupletavam, sendo direcionadas para advogados como Kakay e outros assemelhados? Na opinião deles, trata-se de uma injustiça em nome da justiça...


Todos nós sabemos que os deputados e senadores que se aboletaram no parlamento teriam muita dificuldade de se reeleger sem muito dinheiro no bolso, os pobrezinhos. No Brasil, onde o voto é obrigatório para quase 150 milhões de pessoas, ainda se compra voto. Hoje mais caro do que antes, é claro, por causa da inflação acumulada. Conheço muito bem uma pequena cidade do interior de Minas, com cerca de 3 mil habitantes, onde o voto duplicou de preço: era 10 reais, agora é 20. O prefeito da cidade acaba de ser preso.

Nós, que vivemos numa ilha economicamente mais desenvolvida, nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, não temos ideia do que seja o Brasil real e que, na prática, existem dois "Brasis". Quase a metade da população das regiões Norte e Nordeste é da classe D, onde 20 reais são importantes. Lá estão 50 milhões de eleitores que deram vitória folgada e decisiva para a Dilma em 2014. Sacaram porque eles precisam de um fundo bilionário?

Ficaram “surpresos” quando a nova “reforma política” deu anistia aos partidos políticos? A multa imposta pela Lava Jato ao PP – Partido Popular - vai poder ser paga em até dois mil anos!

Uma coisa boa desta tal “reforma” é o fim da propaganda eleitoral na TV nos anos nos quais não há eleição. Pelo menos nestes curtos interregnos, já que temos eleições a cada dois anos, vamos ficar livres do lixo que nos é imposto: ter que ver figuras patéticas e na sua maioria desconhecidas invadindo nossos lares apregoando as virtudes de 35 partidos que não têm nenhuma virtude.

Vocês ficaram “surpresos” com o resultado apertado da votação no Supremo Tribunal Federal na sessão plenária de quinta-feira? Esqueceram que a Presidente Carmen Lúcia tinha feito um acordo com o Presidente do Senado? Para legalizar o motim parlamentar que pretendia livrar a cara do Aécio Neves e dos outros 30 senadores e 90 deputados denunciados, seis ministros derrotaram o parecer do Ministro Luiz Edson Fachin, que até parece o meu Grêmio: não ganha uma. Enfim, permitiram que o Parlamento descumpra decisões do Supremo.

Assistindo os votos dos Ministros nessa sessão que ficará inesquecível, tem-se a nítida impressão de que existem pelo menos duas Constituições diferentes no Brasil.

Será que esta duplicidade acrescenta algo à segurança jurídica que o país tanto necessita?

Senti pena ao ver o constrangimento de Carmen Lucia ao proferir o seu voto de desempate. Parecia que o que ela queria mesmo era seguir o voto do relator, que tanto elogiou, e não ter que sair pela tangente buscando uma solução alternativa e conciliatória: um voto médio, bastante confuso, como aconteceu. O Supremo terá que “encaminhar”, e não “submeter”, à respectiva casa legislativa qualquer ato que signifique restrição ao mandato de parlamentares. Não terá mais a última palavra. Segundo os Ministros Fachin e Celso de Mello, a imunidade virou impunidade.

O que não surpreende, no país do foro privilegiado, que protege até ministro do TSE que bate na mulher.

Aliás, é bem possível que o Supremo venha a perpetrar a nossa grande desilusão não condenando ninguém e consagrando que foro privilegiado é mesmo sinônimo de impunidade. O primeiro processo contra Renan Calheiros deu entrada em 2007. Ou vai prescrever ou ele terá morrido de velho antes da promulgação da sentença. Renan, que goza de boa saúde, poderá viver pelo menos até os 100 anos, como está acontecendo amiúde com a raça humana, cujo envelhecimento é um fato concreto que representa um dos maiores desafios para a civilização moderna, que não está preparada para enfrentar este fenômeno biológico. Será que dará tempo para o STF julgá-lo e condená-lo?

De “surpresa” em surpresa, “la nave va”, como diria Federico Fellini.

Iria melhor se fosse mais previsível e não aprontasse tantas surpresas.

Faveco Corrêa