sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Resistir à podridão
A escolha da palavra do ano 2024 pela Oxford University Press pode parecer, à partida, estranha e de tradução pouco intuitiva, mas constitui, como poucas vezes no passado, um poderoso grito de alerta em relação à realidade em que mergulhámos, coletivamente, nos últimos anos. Na verdade, a palavra que passará a figurar no dicionário de inglês de Oxford não é bem uma palavra, mas antes duas palavras. Resulta, por isso, numa expressão, enfática, que define bem o sintoma do estado a que chegámos, desde que as nossas mentes passaram a ser inundadas por um dilúvio, constante, de mensagens, textos, sons e imagens: brain rot, o que, em português, pode ser lido como “podridão do cérebro”, ou seja, a deterioração ou até mesmo putrefação das nossas capacidades racionais, devido ao consumo excessivo de conteúdos online, pouco ou nada estimulantes, mas que nos prendem a atenção, predominantemente nos muitos ecrãs em que vamos saltitando ao longo de cada dia.
A expressão brain rot, segundo os responsáveis da Universidade de Oxford, ganhou proeminência ao longo dos últimos meses como a melhor forma de descrever o impacto negativo provocado pelo “consumo excessivo de conteúdo online de baixa qualidade, especialmente nas redes sociais”.
O problema, no entanto, é que esta podridão cerebral – que todos, de alguma maneira, já nos autodiagnosticámos em algum momento – não deriva apenas da baixa qualidade dos conteúdos. Ela é fruto também do tsunami avassalador de imagens, textos, sons e informações que banalizam o nosso quotidiano, sem qualquer hierarquia de importância e sem nos dar, sequer, espaço e tempo para avaliarmos aquilo a que devemos dedicar maior atenção, e ignorar o resto.
É preciso recuperar o poder de fazer escolhas. Não deixar que as redes sociais as façam por nós, com base nos algoritmos que não se preocupam connosco ou com as nossas vidas – apesar de supostamente conhecerem os nossos impulsos, a nossa curiosidade básica ou até as situações que nos fazem perder a cabeça e arrastar-nos para uma discussão. Os algoritmos servem precisamente para nos “apodrecer” o cérebro e, nessa condição, com os cliques que podemos gerar. E servem também para criar sempre novas e melhores artimanhas para capturarem o nosso cada vez mais reduzido tempo de atenção.
O problema já nem é o de deixarmos de saber distinguir entre o bom e o mau, entre o conteúdo de qualidade e o de lixo. É também, cada vez mais, a dificuldade que temos de saber distinguir entre o verdadeiro e o falso – aquilo de que se aproveitam tanto aqueles que só querem ganhar dinheiro com cliques como os que procuram, dessa forma, espalhar o caos e a desinformação.
“As redes sociais modificaram, de forma sub-reptícia, a nossa relação com a vida”, avisa Bruno Patino em Submersos, um livro com poucas páginas, mas muitas lições. “O seu modelo económico, principalmente publicitário, leva-as a extraírem-nos uma parte crescente do nosso tempo por todos os meios possíveis”, adverte, indicando o resultado: “dependência individual e polarização coletiva”, ou seja: “dependência para cada um de nós, conversa de combate para todos nós”.
Neste tempo, é cada vez mais importante e decisivo o papel de quem tem por função ser mediador de informação, sem estar dependente da ditadura dos algoritmos. O jornalismo tem essa função. E é precisamente por permitir fazer escolhas, fornecer algo que o público nem sequer sabia que existia ou dar visibilidade ao que estava escondido, que o jornalismo e a comunicação social livre e independente estão hoje sob a maior ameaça de sempre. É preciso acreditar, no entanto, que não estão condenados à “podridão cerebral”. Só há uma forma de a contrariar: restaurar a confiança na sua missão, nos seus métodos e no seu trabalho. E, até onde for possível, continuar a resistir.
A expressão brain rot, segundo os responsáveis da Universidade de Oxford, ganhou proeminência ao longo dos últimos meses como a melhor forma de descrever o impacto negativo provocado pelo “consumo excessivo de conteúdo online de baixa qualidade, especialmente nas redes sociais”.
O problema, no entanto, é que esta podridão cerebral – que todos, de alguma maneira, já nos autodiagnosticámos em algum momento – não deriva apenas da baixa qualidade dos conteúdos. Ela é fruto também do tsunami avassalador de imagens, textos, sons e informações que banalizam o nosso quotidiano, sem qualquer hierarquia de importância e sem nos dar, sequer, espaço e tempo para avaliarmos aquilo a que devemos dedicar maior atenção, e ignorar o resto.
A nossa atenção é hoje disputada de forma permanente, por diversos canais e das mais diferentes formas. Vivemos na era da abundância da informação, mas estamos limitados na escolha. Por uma razão, que precisamos de encarar de frente: raramente temos mesmo liberdade de escolha. Estamos, isso sim, dependentes da procura, mas condicionados por aquilo que os algoritmos nos põem à frente dos olhos. Todos sabemos como é: podemos ter 300 canais de televisão, mas fazemos zapping sempre pela mesma dúzia deles. Assinamos um serviço de streaming que anuncia ter um catálogo de milhares de títulos, mas raramente vamos além das sugestões que nos exibem no ecrã inicial. No fundo, o mesmo que acontece no Spotify ou no YouTube, como também na rede social que sabemos ter milhares de milhões de membros, mas onde as nossas interações raramente ultrapassam as do grupo restrito do costume.
É preciso recuperar o poder de fazer escolhas. Não deixar que as redes sociais as façam por nós, com base nos algoritmos que não se preocupam connosco ou com as nossas vidas – apesar de supostamente conhecerem os nossos impulsos, a nossa curiosidade básica ou até as situações que nos fazem perder a cabeça e arrastar-nos para uma discussão. Os algoritmos servem precisamente para nos “apodrecer” o cérebro e, nessa condição, com os cliques que podemos gerar. E servem também para criar sempre novas e melhores artimanhas para capturarem o nosso cada vez mais reduzido tempo de atenção.
O problema já nem é o de deixarmos de saber distinguir entre o bom e o mau, entre o conteúdo de qualidade e o de lixo. É também, cada vez mais, a dificuldade que temos de saber distinguir entre o verdadeiro e o falso – aquilo de que se aproveitam tanto aqueles que só querem ganhar dinheiro com cliques como os que procuram, dessa forma, espalhar o caos e a desinformação.
“As redes sociais modificaram, de forma sub-reptícia, a nossa relação com a vida”, avisa Bruno Patino em Submersos, um livro com poucas páginas, mas muitas lições. “O seu modelo económico, principalmente publicitário, leva-as a extraírem-nos uma parte crescente do nosso tempo por todos os meios possíveis”, adverte, indicando o resultado: “dependência individual e polarização coletiva”, ou seja: “dependência para cada um de nós, conversa de combate para todos nós”.
Neste tempo, é cada vez mais importante e decisivo o papel de quem tem por função ser mediador de informação, sem estar dependente da ditadura dos algoritmos. O jornalismo tem essa função. E é precisamente por permitir fazer escolhas, fornecer algo que o público nem sequer sabia que existia ou dar visibilidade ao que estava escondido, que o jornalismo e a comunicação social livre e independente estão hoje sob a maior ameaça de sempre. É preciso acreditar, no entanto, que não estão condenados à “podridão cerebral”. Só há uma forma de a contrariar: restaurar a confiança na sua missão, nos seus métodos e no seu trabalho. E, até onde for possível, continuar a resistir.
Na Chapada Diamantina, mineração ameaça paraíso natural
Muitos brasileiros conhecem a Chapada Diamantina como um paraíso natural. Centenas de milhares de turistas já visitaram suas espetaculares cachoeiras, tiraram selfies, passearam pelo Parque Nacional e conheceram localidades pitorescas como Igatu ou Lençóis.
Quem já esteve na Chapada Diamantina é maravilhado por ela. Lá parece ser um lugar onde se pode respirar livremente, um Brasil sem estresse, destruição ambiental, ou os – de resto, onipresentes – montes de lixo.
O que poucos sabem é que, enquanto o nordeste da Chapada mantém sua imagem de paraíso turístico, o sudoeste está sob maciça ameaça de destruição, pois suas consideráveis jazidas de minério de ferro, ouro e quartzo a colocaram na mira dos conglomerados internacionais de mineração.
Passei vários dias no sul da Chapada. Toda a região já está dividida em lotes a serem leiloados para exploração. Uma grande extensão dos morros cobertos de matas será detonada, os destroços despejados nos vales. Serão construídas estradas em que caminhões pesados trovejarão 24 horas por dia.
As mineradoras e seus defensores na política argumentam que as riquezas do solo trarão postos de trabalho e bem-estar. Contradizendo-os, está o fato de que todo o planejamento transcorreu sem qualquer participação da população local, sobretudo dos numerosos quilombolas residentes na Chapada Diamantina.
Eles não foram nem informados, nem consultados, conforme exige a lei. Como sempre, os pobres são atropelados, o processo de colonização e exploração prossegue inabalável faz 500 anos.
Poeira e barulho da Brazil Iron
O Quilombo Bocaina, localizado na comunidade Piatã, dá um gostinho do que está por vir. Ele já existe há cerca de 200 anos, sendo reconhecido pela Fundação Palmares. O caminho de carro até lá passa por estradas de terra, pontuadas por casas de fazenda tradicionais e uma natureza exuberante, explodindo com buganvílias, ipês amarelos, flamboyants vermelhos em flor e mangueiras carregadas de frutos.
Cerca de 250 lavradores moram em Bocaina, espalhados por pequenas fazendas, onde cultivam cana-de-açúcar, abacaxi, maracujá, mandioca, batata, feijão e muito mais, além de criar gado. Eles praticam agricultura de subsistência.
No entanto, em 2011, a empresa britânica Brazil Iron começou a operar uma mina de minério de ferro no local, que se expandiu gradualmente nos anos seguintes.
De sua casa, Catarina Oliveira da Silva, de 52 anos, consegue ver a mina, que já demoliu meio morro e parece um enorme abismo cinzento na vegetação verde. Sexta geração de quilombolas de Bocaina, ela é agricultora, apicultora e líder da resistência contra a Brazil Iron.
Ela denuncia o impacto da mina que supostamente deveria trazer progresso: "As constantes explosões deixaram as nossas casas cheias de rachaduras." Mas o pior de tudo era a poeira que caía em tudo: casas, jardins, campos.
"Embora a minha casa esteja a vários quilômetros da mina, a poeira penetrou por cada abertura, se depositou nos móveis, cobriu o chão, emporcalhou as roupas", além de prejudicar as plantas e poluir as águas. "A mina estava em funcionamento 24 horas por dia, o barulho não parava. Os caminhões pesados pareciam um trovão passando pela estrada."
Mas aí chuvas fortes começaram a arrastar os rejeitos da mina, soterrando as fontes do rio Bebedouro, um afluente do importante Rio de Contas. Esse foi o principal motivo da vitória que os quilombolas de Bocaina festejaram em 2022: acusando-a de, pelo menos, 15 transgressões, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) decidiu fechar temporariamente a mina. "Desde então, a gente tem um pouquinho de tranquilidade", relata Catarina Oliveira.
Contudo, a Brazil Iron já está se movimentando para retomar suas operações – com a aquiescência tanto do governo petista da Bahia quanto do federal de Lula. Mais uma vez, é só durante a campanha eleitoral que o Partido dos Trabalhadores (PT) se coloca do lado dos quilombolas e dos indígenas. Mais precisamente: quando não custa nada e é possível levar até as lágrimas os acadêmicos e esquerdistas das cidades, com uma retórica romântica sobre os pobres e reprimidos. Lula é mestre nisso.
"Se a Brazil Iron retomar as atividades, a gente vai ter que ir embora daqui", antecipa Catarina Oliveira. "O Quilombo Bocaina deixaria de existir." A empresa nega qualquer tipo de infração, alegando praticar "mineração verde". Segundo a BBC, já tem na gaveta pelo menos 30 outros requerimentos para expandir suas atividades na região.
Os quilombolas contam com um aliado inusitado: Dom Vicente de Paula Ferreira, o novo bispo de Livramento de Nossa Senhora, situada no extremo sul da Chapada. Ele era bispo auxiliar de Brumadinho em 2019, quando se rompeu a barragem de rejeitos de uma mina de ferro da gigante Vale. A avalanche de lama que se precipitou sobre a área causou 272 mortes, destruiu casas, campos e rios.
Na época, Dom Vicente se colocou ao lado das vítimas, exigindo justiça, apoiando os atingidos e condenando a Vale "pelo crime". No entanto seu engajamento resultou numa revolta da elite de direita de Brumadinho: apareceram faixas afirmando que a Igreja Católica não era para fazer política, mas "só rezar".
Essa experiência deixou marcas profundas em Dom Vicente – e reforçou seu engajamento, como revelou a mim. Ele me contou que considera a luta pelos quilombos e contra a destruição da Chapada Diamantina como ponto central de sua atuação: "Os pobres e o meio ambiente nunca valeram nada para o Estado brasileiro. A Justiça decide no interesse dos conglomerados, dos latifundiários, do capital. Ela coloca o lucro na frente da vida. No Brasil existe um Judiciário, mas não há justiça."
Há perigo real de que seja destruída justamente uma das regiões mais belas e ecologicamente valiosas do Brasil. A Chapada Diamantina e suas comunidades tradicionais estão seriamente ameaçadas. Todos aqueles, que, no futuro, queiram fazer seus selfies tendo como pano de fundo belas cachoeiras e natureza supostamente intocada devem pensar sobre isso.
Quem já esteve na Chapada Diamantina é maravilhado por ela. Lá parece ser um lugar onde se pode respirar livremente, um Brasil sem estresse, destruição ambiental, ou os – de resto, onipresentes – montes de lixo.
O que poucos sabem é que, enquanto o nordeste da Chapada mantém sua imagem de paraíso turístico, o sudoeste está sob maciça ameaça de destruição, pois suas consideráveis jazidas de minério de ferro, ouro e quartzo a colocaram na mira dos conglomerados internacionais de mineração.
Passei vários dias no sul da Chapada. Toda a região já está dividida em lotes a serem leiloados para exploração. Uma grande extensão dos morros cobertos de matas será detonada, os destroços despejados nos vales. Serão construídas estradas em que caminhões pesados trovejarão 24 horas por dia.
As mineradoras e seus defensores na política argumentam que as riquezas do solo trarão postos de trabalho e bem-estar. Contradizendo-os, está o fato de que todo o planejamento transcorreu sem qualquer participação da população local, sobretudo dos numerosos quilombolas residentes na Chapada Diamantina.
Eles não foram nem informados, nem consultados, conforme exige a lei. Como sempre, os pobres são atropelados, o processo de colonização e exploração prossegue inabalável faz 500 anos.
Poeira e barulho da Brazil Iron
O Quilombo Bocaina, localizado na comunidade Piatã, dá um gostinho do que está por vir. Ele já existe há cerca de 200 anos, sendo reconhecido pela Fundação Palmares. O caminho de carro até lá passa por estradas de terra, pontuadas por casas de fazenda tradicionais e uma natureza exuberante, explodindo com buganvílias, ipês amarelos, flamboyants vermelhos em flor e mangueiras carregadas de frutos.
Cerca de 250 lavradores moram em Bocaina, espalhados por pequenas fazendas, onde cultivam cana-de-açúcar, abacaxi, maracujá, mandioca, batata, feijão e muito mais, além de criar gado. Eles praticam agricultura de subsistência.
No entanto, em 2011, a empresa britânica Brazil Iron começou a operar uma mina de minério de ferro no local, que se expandiu gradualmente nos anos seguintes.
De sua casa, Catarina Oliveira da Silva, de 52 anos, consegue ver a mina, que já demoliu meio morro e parece um enorme abismo cinzento na vegetação verde. Sexta geração de quilombolas de Bocaina, ela é agricultora, apicultora e líder da resistência contra a Brazil Iron.
Ela denuncia o impacto da mina que supostamente deveria trazer progresso: "As constantes explosões deixaram as nossas casas cheias de rachaduras." Mas o pior de tudo era a poeira que caía em tudo: casas, jardins, campos.
"Embora a minha casa esteja a vários quilômetros da mina, a poeira penetrou por cada abertura, se depositou nos móveis, cobriu o chão, emporcalhou as roupas", além de prejudicar as plantas e poluir as águas. "A mina estava em funcionamento 24 horas por dia, o barulho não parava. Os caminhões pesados pareciam um trovão passando pela estrada."
Mas aí chuvas fortes começaram a arrastar os rejeitos da mina, soterrando as fontes do rio Bebedouro, um afluente do importante Rio de Contas. Esse foi o principal motivo da vitória que os quilombolas de Bocaina festejaram em 2022: acusando-a de, pelo menos, 15 transgressões, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) decidiu fechar temporariamente a mina. "Desde então, a gente tem um pouquinho de tranquilidade", relata Catarina Oliveira.
Contudo, a Brazil Iron já está se movimentando para retomar suas operações – com a aquiescência tanto do governo petista da Bahia quanto do federal de Lula. Mais uma vez, é só durante a campanha eleitoral que o Partido dos Trabalhadores (PT) se coloca do lado dos quilombolas e dos indígenas. Mais precisamente: quando não custa nada e é possível levar até as lágrimas os acadêmicos e esquerdistas das cidades, com uma retórica romântica sobre os pobres e reprimidos. Lula é mestre nisso.
"Se a Brazil Iron retomar as atividades, a gente vai ter que ir embora daqui", antecipa Catarina Oliveira. "O Quilombo Bocaina deixaria de existir." A empresa nega qualquer tipo de infração, alegando praticar "mineração verde". Segundo a BBC, já tem na gaveta pelo menos 30 outros requerimentos para expandir suas atividades na região.
Os quilombolas contam com um aliado inusitado: Dom Vicente de Paula Ferreira, o novo bispo de Livramento de Nossa Senhora, situada no extremo sul da Chapada. Ele era bispo auxiliar de Brumadinho em 2019, quando se rompeu a barragem de rejeitos de uma mina de ferro da gigante Vale. A avalanche de lama que se precipitou sobre a área causou 272 mortes, destruiu casas, campos e rios.
Na época, Dom Vicente se colocou ao lado das vítimas, exigindo justiça, apoiando os atingidos e condenando a Vale "pelo crime". No entanto seu engajamento resultou numa revolta da elite de direita de Brumadinho: apareceram faixas afirmando que a Igreja Católica não era para fazer política, mas "só rezar".
Essa experiência deixou marcas profundas em Dom Vicente – e reforçou seu engajamento, como revelou a mim. Ele me contou que considera a luta pelos quilombos e contra a destruição da Chapada Diamantina como ponto central de sua atuação: "Os pobres e o meio ambiente nunca valeram nada para o Estado brasileiro. A Justiça decide no interesse dos conglomerados, dos latifundiários, do capital. Ela coloca o lucro na frente da vida. No Brasil existe um Judiciário, mas não há justiça."
Há perigo real de que seja destruída justamente uma das regiões mais belas e ecologicamente valiosas do Brasil. A Chapada Diamantina e suas comunidades tradicionais estão seriamente ameaçadas. Todos aqueles, que, no futuro, queiram fazer seus selfies tendo como pano de fundo belas cachoeiras e natureza supostamente intocada devem pensar sobre isso.
Oriente Médio. Ódios incuráveis?
Muito se tem escrito, e discutido, sobre a atual situação no Oriente Médio, sem que se perceba a presença de opiniões realmente construtivas necessárias para a pavimentação do caminho do diálogo e do entendimento em direção à paz. Apresentações e textos sectários destrutivos, que apenas estimulam o aumento dos ódios, dificultam ainda mais a possibilidade de acordos equilibrados para ambos os povos. Para piorar, as vozes fanáticas estão muito presentes, criando solos férteis para fundamentalismos que afetam o mundo todo, e que só aceitam a destruição do outro.
Os países e organizações que têm o poder de interferir ou se acovardaram ou, por interesses outros, se mantêm distantes da questão dizendo, de forma hipócrita, que o problema é intratável e insolúvel. Líderes corajosos deveriam surgir para construir caminhos melhores que esses, minados pela incompreensão, e há o medo de se tornar um novo Rabin, ou de serem taxados de traidores.
Não há problema bélico, social ou territorial que as sociedades não tenham condições de resolver construtivamente pelo diálogo. A história já nos deu inúmeras vezes essa lição. Mesmo assim, os fanatismos estão aumentando, todos pregando aniquilações tal e qual a filosofia nazista antes da Segunda Guerra Mundial.
O ódio é um sentimento humano que habita todos nós, sendo despertado facilmente. Mas acreditamos que fomos criados com a capacidade de dominá-lo. Ao longo da História o ser humano fugiu algumas vezes dessa característica, e todos sabemos quais foram os resultados. Cito o Oriente Médio como exemplo atual, com fatos desumanos ocorrendo diariamente, como se a humanidade estivesse perdendo a capacidade de construir sociedades saudáveis. Criamos tecnologias impressionantes, mas às vezes fica nítida a impressão que ética e humanamente não estamos avançando.
O Oriente Médio, berço de civilizações admiráveis, encontra-se hoje refém de radicalismos sectários e religiosos que nada devem aos regimes totalitários mais destrutivos dos últimos tempos. Assistimos à execução de barbáries realizadas por pessoas e sociedades cultas, mas fanatizadas por um deus raivoso e vingativo criado na mente de grupos movidos a ódio. É um ser humano criando um deus à sua imagem. Quanta arrogância. Estudantes de nossa psique levantaram a hipótese de que a gênese de radicalismos e ideologias fanáticas seria sempre a mesma. Idealistas frustrados se tornam revolucionários, com a intenção de impor, de forma não democrática, suas opiniões radicais. Não aprenderam a dialogar. Muito colaborou para essa situação o imperialismo que outros povos lhes impuseram, com todas as consequências das agressões culturais profundas sofridas. Sistemas políticos construtivos necessitam de educação e tempo para serem implantados, sem revoluções, que levam povos a enormes sofrimentos. Isso gera evolução.
O Estado de Israel foi criado de forma impositiva, truculenta, sem que tenha havido preparo para o deslocamento de multidões da Europa para a região, com invasões em terras previamente habitadas por povos pacíficos e com culturas milenares. Ao invés de estabelecer uma migração gradativa pacífica e construtiva, avançaram agressivamente, destruindo vilas e expulsando povos que lá viveram por milênios, criando uma situação que os palestinos chamam de Nakba. Na sua fundação, a forma escolhida foi profundamente traumática e supremacista, como está muito bem documentado na história.
Em textos prévios, comentamos que o povo judeu, que lá habitava, poderia agregar os seus valores e costumes com as sociedades seculares e religiosas lá existentes, e não impor uma política exclusivista, com a eliminação de outros que têm raízes profundas na região, e instalando grupos humanos que mal conheciam aquelas terras e habitantes. Por ordens “divinas”, criou-se um novo país. O choque consequente é vivido até hoje. Erros após erros, deram origem a um ambiente explosivo. Como consequência, houve aumento brutal do antissemitismo, que está piorando dia a dia. Aquela região deveria ser um modelo de convivência entre diferentes, ecumênica, e servir de norte para a humanidade, sem sectarismos, racismos e exclusivismos.
O tempo passa, e as perspectivas não são otimistas. Se essa situação persistir, com o mundo assistindo sem interferir, o problema aumentará e ultrapassará fronteiras, o que já está ocorrendo. Julgamos que essa região seja hoje a mais perigosa para a desestabilização do planeta. Os povos que representam o Oriente Médio estão nos quatro cantos do mundo, e acompanham o desenrolar dos fatos com grande ansiedade. Deixou, portanto, de ser um problema regional, que está necessitando de um posicionamento forte, construtivo e imparcial para a solução, antes que esse barril de pólvora venha a explodir, atingindo a todos nós.
Disputa das ideias
Depois de todos os esforços do passado, entrámos num período de retrocesso. Vê bem como as coisas se passam hoje: quando um homem importante lança uma nova ideia no mundo, ela é imediatamente apanhada por um mecanismo de divisão, constituído por simpatia e repulsa. Primeiro vêm os admiradores e arrancam grandes bocados, os que lhes convêm, a essa ideia, e despedaçam o mestre como as raposas a presa; a seguir, os adversários destroem as partes fracas, e em pouco tempo o que resta de um grande feito mais não é do que uma reserva de aforismos de que amigos e inimigos se servem a seu bel-prazer. O resultado é uma ambiguidade generalizada. Não há Sim a que se não junte um Não. Podes fazer o que quiseres, que encontras sempre vinte das mais belas ideias a favor e, se quiseres, vinte que são contra. Quase somos levados a acreditar que é como no amor e no ódio, ou na fome, em que os gostos têm de ser diferentes, para que cada um fique com o seu bocado.
Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"
Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"
Quando começou o fim do mundo?
Foi exatamente em 16 de julho de 1945, no dia da primeira explosão ainda experimental de uma bomba atômica (no Novo México, EUA). O fim do mundo começou naquele instante, porque, pouco antes do experimento, vários cientistas ainda temiam que aquela única explosão nuclear produzisse uma “fornalha atmosférica” global, numa reação em cadeia que incendiaria a atmosfera do planeta, exterminando em questão de horas grande parte das espécies vivas no mundo todo. Mesmo assim, o teste aconteceu.
Depois de cálculos e discussões acaloradas, o pessoal do Projeto Manhattan chefiado por Robert Oppenheimer apostou que aquela bomba de laboratório não cozinharia o planeta inteiro. O governo americano, então, arriscou e autorizou o teste (que poderia ter destruído o mundo). A humanidade não pegou fogo, mas o que restava do nosso censo de sobrevivência e razoabilidade foi carbonizado ali.
O episódio inaugurou a era da banalização do extermínio da vida no planeta – ao simples apertar de um botão – como um efeito colateral aceitável para qualquer outro empreendimento humano, principalmente para os projetos do mercado, mais sutis (e lucrativos) do que uma explosão atômica.
Não bastasse a alavancagem da produção industrial e da emissão de poluentes e gases efeito estufa, proporcionada diretamente pela II Guerra Mundial propriamente dita, seu “gran finale” nuclear foi o sinal verde para o vale-tudo industrialista puxado pelas grandes corporações da nova potência econômica mundial, os EUA, e pela indústria estatal soviética.
Nesse novo mundo – no qual o apocalipse atômico passou a fazer parte das “coisas da vida” – nenhum argumento ambientalista conseguiria concorrer com os encantos publicitários do consumismo, que prometem, ainda hoje (e cada vez mais), status e prazer. Não admira que a mudança climática decorrente da expansão industrial seja tratada pelos mercados e autoridades como um fenômeno natural, sobre o qual nosso cotidiano prosaico não teria qualquer influência ou responsabilidade (tampouco os governos e empresas).
A rigor, desde o início do século XX grandes corporações americanas e europeias, como GM, Ford, Renault, Standard Oil, Firestone, Bayer, Krupp, Siemens, Du Pont, Monsanto e tantas outras já investiam seu capital e suas relações políticas na disseminação do consumo de massa. Nesse contexto, o petróleo desempenhou papel central (ainda mais lucrativo do que o carvão mineral), com desdobramentos na produção de plásticos, cimento, farmacêuticos, pesticidas, química, munições e no boom da indústria automobilística, naval, aeronáutica e espacial, para fins militares e pacíficos. Mas, nada parecido com o ritmo e as oportunidades do pós-guerra.
Por outro lado, curioso é que o presidente americano Jimmy Carter, do Partido Democrata, chegou a instalar painéis de energia solar na Casa Branca e fazer discursos contra o consumismo e pela transição energética (quem sabe, por isso mesmo, não foi reeleito). Ele conhecia o estudo do MIT que, em 1971, já apontara 13 cenários possíveis de colapso global em consequência da poluição, escassez de recursos e superpopulação.
Resta saber se agora, no ápice do antropoceno, quando o mundo alcançou uma produção diária de um milhão de barris de petróleo, ainda há vontade, tempo e viabilidade para o estabelecimento de um modelo econômico sustentável. Se a humanidade não se intimidou há 80 anos diante da possibilidade de ser assada em minutos pela bomba do Novo México, dificilmente será detida apenas pela ameaça de automóveis, árvores caídas e air fryers.
Felipe Sampaio
Depois de cálculos e discussões acaloradas, o pessoal do Projeto Manhattan chefiado por Robert Oppenheimer apostou que aquela bomba de laboratório não cozinharia o planeta inteiro. O governo americano, então, arriscou e autorizou o teste (que poderia ter destruído o mundo). A humanidade não pegou fogo, mas o que restava do nosso censo de sobrevivência e razoabilidade foi carbonizado ali.
O episódio inaugurou a era da banalização do extermínio da vida no planeta – ao simples apertar de um botão – como um efeito colateral aceitável para qualquer outro empreendimento humano, principalmente para os projetos do mercado, mais sutis (e lucrativos) do que uma explosão atômica.
Não bastasse a alavancagem da produção industrial e da emissão de poluentes e gases efeito estufa, proporcionada diretamente pela II Guerra Mundial propriamente dita, seu “gran finale” nuclear foi o sinal verde para o vale-tudo industrialista puxado pelas grandes corporações da nova potência econômica mundial, os EUA, e pela indústria estatal soviética.
Nesse novo mundo – no qual o apocalipse atômico passou a fazer parte das “coisas da vida” – nenhum argumento ambientalista conseguiria concorrer com os encantos publicitários do consumismo, que prometem, ainda hoje (e cada vez mais), status e prazer. Não admira que a mudança climática decorrente da expansão industrial seja tratada pelos mercados e autoridades como um fenômeno natural, sobre o qual nosso cotidiano prosaico não teria qualquer influência ou responsabilidade (tampouco os governos e empresas).
A rigor, desde o início do século XX grandes corporações americanas e europeias, como GM, Ford, Renault, Standard Oil, Firestone, Bayer, Krupp, Siemens, Du Pont, Monsanto e tantas outras já investiam seu capital e suas relações políticas na disseminação do consumo de massa. Nesse contexto, o petróleo desempenhou papel central (ainda mais lucrativo do que o carvão mineral), com desdobramentos na produção de plásticos, cimento, farmacêuticos, pesticidas, química, munições e no boom da indústria automobilística, naval, aeronáutica e espacial, para fins militares e pacíficos. Mas, nada parecido com o ritmo e as oportunidades do pós-guerra.
Por outro lado, curioso é que o presidente americano Jimmy Carter, do Partido Democrata, chegou a instalar painéis de energia solar na Casa Branca e fazer discursos contra o consumismo e pela transição energética (quem sabe, por isso mesmo, não foi reeleito). Ele conhecia o estudo do MIT que, em 1971, já apontara 13 cenários possíveis de colapso global em consequência da poluição, escassez de recursos e superpopulação.
Resta saber se agora, no ápice do antropoceno, quando o mundo alcançou uma produção diária de um milhão de barris de petróleo, ainda há vontade, tempo e viabilidade para o estabelecimento de um modelo econômico sustentável. Se a humanidade não se intimidou há 80 anos diante da possibilidade de ser assada em minutos pela bomba do Novo México, dificilmente será detida apenas pela ameaça de automóveis, árvores caídas e air fryers.
Felipe Sampaio
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