terça-feira, 29 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


'Uma pátria feita de palavras': o léxico do deslocamento em Gaza

Em Gaza, os deslocados criam uma linguagem de memória, perda e sobrevivência em meio ao genocídio em curso.

Na jornada do deslocamento, as famílias não carregam apenas seus pertences, elas carregam novas palavras, frases tecidas a partir da dor, do choque e do medo, e uma geografia que transborda da linguagem.

Em Gaza, o deslocamento não foi apenas um movimento físico, mas uma transformação linguística, emocional e existencial. Deu origem a um novo vernáculo — um Léxico dos Deslocados — não ensinado nas escolas, mas falado em tendas, sob escadas e nas beiradas das calçadas.


Em Gaza, onde as letras desmoronam sob o peso do sangue, os deslocados forjam uma linguagem paralela. Suas palavras são facas que rompem o muro do silêncio global. Seu vocabulário são rios fluindo sob os escombros das cidades, irrigando as raízes de árvores arrancadas.

Como escreveu certa vez o poeta Fadwa Tuqan:

Eu carreguei minha terra natal no meu coração…
E assim o coração se tornou uma pátria.


O exílio aqui não é uma jornada para terras estrangeiras, mas um estado onde a própria terra natal se torna irreconhecível: o exílio não acontece apenas fora, mas dentro de cada canto da nossa terra natal, onde a distância do familiar transforma a dor em lições e histórias.

É um lembrete de que, mesmo dentro do próprio país, o deslocamento forçado pode lançar uma sombra sobre a alma.

O exílio nem sempre é cruzar fronteiras, embarcar em um avião em um aeroporto distante ou esperar em um centro de processamento de refugiados.

Às vezes, o exílio é se deslocar de rua em rua, de bairro em bairro, do norte de Gaza para o sul. Um exílio dentro da terra natal, porém mais severo, porque obriga a pessoa a pisar em suas próprias memórias para sobreviver, a arrancar seu nome da porta de casa só para sobreviver.

A ironia é que os deslocados de Gaza nunca deixaram a Palestina; eles permaneceram presos em uma faixa de terra não mais larga que seis quilômetros.

E, no entanto, eles sussurram para si mesmos:

"Onde estou? Este não é o meu lugar."
“Esta rua não é minha… Estes não são os rostos que conheço.”
“Até o chamado para a oração aqui soa estranho… O ar em si é diferente.”


Lugares se tornam familiares apenas no nome, são vazios de pertencimento. Paredes que não ecoam seu riso não lhe pertencem.

O exílio dentro da pátria pode ser mais cruel do que no exterior, pois força você a se perguntar: "Onde fica meu lar? Onde fica minha verdadeira pátria?" Quando o lugar onde você nasceu lhe é roubado, o exílio se torna uma ferida que nunca cicatriza — uma lanterna que ilumina uma escuridão sem fim.

Exílio não é estar longe da sua terra natal, mas ver sua terra natal se distanciar de você, pedra por pedra, memória por memória.

Uma mala nunca é apenas um recipiente para pertences — é a prova do que não pode ser substituído. Tudo o que podíamos levar conosco era uma mala de saudade, cheia de fotos, memórias e fragmentos que simbolizam nossa terra.

É um testemunho da preservação de pedaços de um passado que o tempo não ousa apagar, onde cada objeto carrega um significado que vai além do espaço e do tempo.

Cada pessoa deslocada tem uma "mala da saudade", medida não pelo tamanho, mas pelo peso dos seus símbolos: uma fotografia, um terço, um livro, um cachecol, um perfume antigo. São pequenas coisas que não salvam o corpo, mas salvam a memória.

A mala da saudade não é uma mala comum abarrotada de roupas e papéis. É um museu móvel da existência. Cada item dentro dela carrega um significado mais pesado do que sua forma: uma chave enferrujada, uma fotografia desbotada, um pingente cheio de terra natal, talvez um pedaço de tecido do vestido de uma mãe, agora desaparecido.

Aqui, onde o valor é medido pela memória, não pelo ouro, a mala se torna uma pátria em miniatura — carregada no ombro enquanto a realidade é saqueada.

O mar é frequentemente mencionado nas palavras dos deslocados, não como um lugar para passeios, mas como uma solução final. A fuga em direção ao mar não era um desejo de nadar, mas de alcançar o mais distante possível de céu, ar e a mínima chance de vida.

Em Gaza, onde a terra encolhe e os muros explodem com tiros, o mar se torna o último limiar da vida, não uma fuga dela. Não é mais a vastidão azul cantada pelos poetas; agora, é um muro aquático que cerca a cidade por três lados, enquanto a morte se aproxima pelo quarto.

No léxico do deslocamento, “não há nada além do mar”.

O mar é a nossa última fronteira. Quando uma criança pergunta ao pai: "Para onde vamos se bombardearem a barraca?", a resposta é sempre: "O mar... Não há lugar além dele."

É a nossa única direção: nos mapas dos deslocados, não há setas apontando para o norte ou para o sul — apenas uma, apontando para o oeste, onde as ondas se recusam a servir de refúgio.

Este léxico é o novo batimento cardíaco de Gaza: uma pátria feita de palavras que se recusa a morrer.

Dificuldade de governar


1

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2

E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3

Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

Bertolt Brecht

Vamos escolher aliados, adversários e inimigos

Antes de escolhermos com quem nos aliaremos, conversaremos e mediremos o tamanho daqueles com quem iremos brigar. Precisamos, antes de tudo, resolver um pequeno detalhe interno: quem somos nós nessa guerra de quem tem grana, e para qual dos brigões essa grana está faltando para grandes investimentos? Porque, cá entre nós, o Brasil não é nem o Velociraptor, e muito menos o Tiranossauro-Rex. A gente é mais um tatu-canastra ou tatu-bola: blindado, pacato, mas cheio de dribles e surpresas quando cutucado. E com uma vantagem: nós temos comida, água, terra, minério, floresta… e paciência. Muita paciência e tempo para produzi-la em larga escala. Na última guerra, dos outros, e que entramos, deixamos milhares de brasileiros plantados no Cemitério de Pistóia, na Itália. Se decidirmos, agora, pelo lado errado, os nossos irmãos ficarão enterrados, aqui mesmo, e de fome…cheios de comida ao lado.

Mas agora querem que a gente entre numa guerra que não é nossa. E nós? Nós estamos aqui com a maior reserva de água doce do mundo, com o agro que alimenta mais da metade do planeta e com minérios estratégicos que fazem qualquer iPhone tremer de desejos. Pra que se meter na briga de cachorro grande? Os nossos embaixadores, diplomatas e cônsules estarão à altura de um Vinícius de Morais para empurrar com a barriga esses monstros, na base da música e da simpatia?

Aliado bom é aquele que não manda e-mail em caixa alta nem exige fidelidade canina. A gente precisa de parcerias que respeitem a nossa biodiversidade sem querer patentear o açaí e o guaraná. O agro brasileiro é robusto, resiliente, e aprendeu a dançar conforme a chuva, o sol e a geada. E não tem tempo pra guerra fria gourmet. Ele quer vender carne, soja, café, suco de laranja, manga, ferro, nióbio, e se bobear, até pra Marte. Para que isso aconteça, nos aliaremos até com Vênus. Desde que paguem em dia, claro.

Temos também o subsolo mais cobiçado desde que inventaram o lítio, o nióbio, cassiterita, terras raras, ouro, petróleo — e tudo isso misturado com floresta de plantinhas com noventa metros de altura. Um pesadelo logístico para quem quer extrair sem sujar os sapatos. E ainda vêm, uns e outros, dizendo que querem “proteger a Amazônia” com exércitos verdes, para evitar a morte de elefantes, zebras, leões, gorilas, girafas e outros bichinhos que os nossos índios não viram nem em zoológicos. Vai ver, continuam achando que as nossas enormes árvores crescem em solo pobre e crescem tanto que tocam o Céu. As nossas árvores não entendem esse inglês.

Adversário bom é aquele que te faz pensar, te desafia com respeito e até compra o que você vende. Com ele, dá pra negociar, pechinchar, até fingir que briga enquanto fecha contrato. E se der certo, vira até aliado. O problema é quando o adversário começa a impor sanções com a mesma cara de quem dá bom dia. Aí a coisa entorta. Nós temos que entrar nas mesas de negociações, com cara de tatu-bola mas sabedores que além de produzir para o mundo comer, também somos 300 milhões de vorazes consumidores. Isso é um baita mercado para os brigões lamberem os beiços.

Eles também sabem que nós podemos comprar e trocar.

Inimigo mesmo é o que sorri enquanto tenta comprar seu país em prestações. Ou que quer te transformar em quintal produtivo, desde que você aceite tecnologia de segunda mão e preços de banana (sem nem consultar o agricultor). Inimigo é quem tenta ditar com quem você pode ou não fazer negócio — e ainda quer aplauso, tudo isso com a borduna nas mãos. Dizem, dizem, que os nossos antigos aliados, produziam, no FED, DUAS TONELADAS DE NOTAS DE CEM DÓLARES e mandavam para o Brasil, dezenas de tratores e leite para a merenda escolar, remédios em estoque e vacinas para grandes campanhas. O dinheiro recebido por trabalho a ser efetuado, já dizia o Professor Simonsen, não gera inflação, desde que haja um bobo para ficar com o estoque enferrujado.

Antes de decidir quem vai para a nossa feijoada diplomática, precisamos sentar à mesa com o Brasil real, aquele da geral do Maracanã e do Morumbi. Sem polarização, sem “Garrinchas contra Pelés” internos, doidos para serem russos, chineses ou americanos. Juntos, dá pra jogar um xadrez refinado com os dois Dinossauros, ao mesmo tempo — e ainda vender o tabuleiro de cedro para um deles. Se ficarmos brigando entre nós, vamos acabar vendendo, e entregando: a floresta, os pampas e o pantanal, a metro quadrado, em liquidação de soberania.

Ao fundo, a guerra deles é sobre escravização ou dominação. A nossa, se existir, é pela liberdade. E liberdade econômica se conquista com estratégia, inteligência e uma boa dose de ironia tropical. Não adianta vir com sanção, com pressão, com diplomacia de porrete. Aqui é Brasil com “S”. O país onde até a onça e o jabuti, se quiserem, escalam a árvore do sapoti, para conversar, se entender e rir.

E que fique claro: se a guerra for pelo futuro, a gente entra com água, comida, minério e até uma rede pra cochilar. Mas só se for do nosso jeito. O jeito do Brasil com “S”.

O legado climático do Papa

A morte do Papa Francisco deixou o mundo órfão de um líder carismático. Ao longo da semana, a mídia analisou seus doze anos como pontífice , destacando seu legado, principalmente na esfera social, mas também na ambiental, com a encíclica Laudato si, de uma década atrás, que inclui diretrizes para a construção de "um mundo mais solidário, fraterno, pacífico e sustentável", baseado em "uma relação mais harmoniosa com a natureza".

"A publicação da Laudato Si' em junho de 2015 foi fundamental para promover o diálogo sobre a gravidade da crise climática, tanto nos diversos fóruns de alto nível quanto no nível local, no âmbito da COP 21, que levou ao Acordo de Paris", disse Fabián Campos, diretor latino-americano do movimento Laudato Si', à DW.

"A Laudato Si teve uma grande influência porque pessoas das Nações Unidas, cientistas e líderes espirituais participaram de sua redação, e ela contém propostas e reflexões para influenciar os processos da vida", disse à DW João Gutemberg Sampaio, secretário-executivo da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam).

"A encíclica Laudato si' ajudou a universalizar a preocupação com o cuidado da nossa casa comum, um conceito que não é apenas ambientalista, mas também inclui a preocupação com todo o planeta, incluindo seres animados e inanimados", disse à DW Pedro Sánchez, membro da equipe de coordenação da Rede Igrejas e Mineração.

"Esta encíclica vai muito além da mera preocupação com a crise climática; ela se aprofunda nas causas do aquecimento global e da poluição e destruição do planeta", ressalta Sánchez. “Hoje, é um dos textos estudados em escolas, universidades, movimentos ambientalistas e até mesmo em grupos de catequese paroquial que, em muitas partes do mundo, geraram o que é chamado de Pastoral da Ecologia Integral.”


Segundo Campos, o caminho rumo à ecologia integral "teria começado em Aparecida, onde todo o episcopado da América Latina e do Caribe se reuniu com o então Papa Bento XVI, que o encarregou de redigir o documento final". "Esse processo foi fundamental, pois ele pôde vivenciar em primeira mão os desafios que a Igreja enfrentava nessa questão, particularmente na Amazônia. A partir disso, podemos ver que a Laudato si pode ser, em si, um reflexo de um processo de amadurecimento de sua visão de ecologia integral para a Igreja universal", acrescenta. Além disso, ele lembra que “foi assim que alguns anos depois ele propôs o Sínodo da Amazônia”.

Este é "um forte chamado da Igreja universal para cuidar e defender um dos ecossistemas mais importantes do planeta Terra, que está seriamente ameaçado por indústrias extrativas como petróleo, mineração, pecuária e monocultura", lembra Sánchez.

“Diz-se que com o Sínodo da Amazônia, Francisco trouxe a periferia para o centro, porque o Vaticano tem uma grande capacidade de comunicação, então ele deu voz, visibilidade e um grito de preocupação para todo o planeta”, explica o secretário executivo da REPAM.

Além de fundar redes eclesiais de ecologia integral ao redor do mundo, a Igreja também ecoou o apelo do Papa Francisco por ações urgentes sobre o desinvestimento em combustíveis fósseis. "É a instituição que atualmente mais se comprometeu a não investir em combustíveis fósseis. O desinvestimento se concentrou principalmente no Norte global, mas vem se consolidando cada vez mais na América Latina", afirma a diretora latino-americana do movimento Laudato Si'.

No entanto, para o porta-voz da Rede Iglesias e Mineração, embora esse movimento "tenha alcançado grandes avanços na conscientização do mundo acadêmico e de alguns grupos de investidores, não foi capaz de deter o avanço do extrativismo petrolífero na América Latina". “Também devem ser adicionadas campanhas para desinvestir na mineração e em outros tipos de extrativismo, principalmente em áreas como a Amazônia”, acredita.

Nesse sentido, Campos lembra que “a Igreja também assumiu o firme compromisso de se manifestar contra projetos extrativistas que afetam toda a sociedade, incluindo a Igreja em El Salvador, Equador e República Dominicana”.

Também se destaca nesta área a criação da Plataforma Internacional para o Desinvestimento Minerador, promovida pela Rede Iglesias y Minería e com mais de 200 organizações associadas. No entanto, "ainda são poucos para obter o impacto necessário", lamenta Sánchez, que dá alguns exemplos de ações na região. “No Brasil, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) conta com uma Comissão Episcopal de Ecologia Integral e Mineração; no Equador, a Igreja promove a Rede Nacional de Pastoral Ecológica; no Panamá e em El Salvador, a Igreja defende que seus respectivos países sejam livres da mineração de metais; nos nove países amazônicos, a Rede Eclesial Pan-Amazônica está se consolidando; e a Rede Igrejas e Mineração também está consolidando seus nós nacionais na maioria dos países do continente”, explica Sánchez.

Campos também lembra que "a Igreja Católica apresentou os 'Objetivos da Laudato si' e a 'Plataforma de ação da Laudato si', que foram elaborados para fornecer às comunidades católicas ao redor do mundo e suas diversas instituições um roteiro para cumprir esse chamado".

"A morte do Papa Francisco nos coloca diante do desafio de redobrar nossos esforços para promover um mundo de maior solidariedade entre todos os seres, incluindo os humanos, e um mundo de harmonia que garanta a biodiversidade", acredita Sánchez.

"Nosso querido Papa Francisco está encerrando sua peregrinação conosco, mas em sentido físico, não em termos de ideias e propostas", lembra o porta-voz da Repam.

Por isso, "a maneira de preservar o legado de Francisco é colocar em prática a mensagem que ele deixou à humanidade", argumenta Campos, enfatizando que seu legado "continuará marcando o caminho da Igreja Católica e da sociedade em geral rumo à ecologia integral, pois esta já foi amplamente assimilada pela comunidade católica e até mesmo não católica graças à profundidade de sua mensagem".

Trump, Cem Dias de medo e demolição

O poder econômico é o único que parece capaz de deter a deriva autoritária do presidente dos EUA, mas em termos de direitos humanos, os estragos de suas políticas podem durar anos.

Primeiro ele foi atrás dos imigrantes; agora ele está atrás dos juízes. A obsessão do governo Trump em espalhar o terror entre os milhões de estrangeiros que vivem nos Estados Unidos aumentou significativamente na quinta-feira, quando uma juíza local de Milwaukee foi presa e acusada de obstruir a polícia que tentava prender um imigrante em seu tribunal.

Seja qual for o caso, a mensagem é clara: não há lugar seguro para aqueles que, independentemente da lei, o presidente considera seus inimigos. E cada vez mais cidadãos, americanos ou não , estão sendo incluídos nessa categoria pela sua Administração, numa deriva autoritária que deve começar a ser chamada pelo seu nome.

O incidente de Milwaukee é apenas o enésimo episódio de intimidação, tragicamente consistente com tudo o que a Casa Branca fez desde 20 de janeiro quando Trump começou a revogar arbitrariamente direitos civis, compromissos internacionais e acordos comerciais por decreto.


A fúria xenófoba é apenas um aspecto em que o presidente republicano demonstrou sua concepção de poder: acumular o máximo possível, não apenas em seu governo, mas também em sua pessoa, e fazê-lo ignorando costumes, pactos e até mesmo leis, ao mesmo tempo em que elimina possíveis resistências por meio da coerção. É assim que moldou a vida de imigrantes, universidades, advogados, meios de comunicação, empresas, mercados e países; é uma síntese de ideologia de ultradireita e gestão caótica.

Em pouco mais de três meses, Trump assinou 137 decretos executivos, mais do que qualquer outro presidente na história. Alguns são simbólicos, como a eliminação de canudos de papel no governo ou a renomeação do Golfo do México . Outros são um ataque direto à Constituição, como a reversão da cidadania por direito de nascimento ou a realocação de orçamentos alocados pelo Congresso. A única coisa que eles têm em comum é o desejo de intimidar todas as instituições, públicas e privadas, para expandir o poder discricionário de uma Casa Branca que os serve e à ideologia de ultradireita de seus apoiadores.

Mais de 80 reclamações foram apresentadas contra essas ordens, buscando sua suspensão preventiva, muitas das quais foram bem-sucedidas. Mas essas derrotas são sistematicamente apeladas com a intenção óbvia de levar os casos o mais rápido possível perante uma Suprema Corte que Trump considera estar do seu lado. Seis juízes conservadores e três juízes progressistas estão atualmente lidando com questões importantes de separação de poderes, direitos civis e até mesmo direitos humanos que antes eram intocáveis.

Assim como minou a ordem constitucional americana, a Casa Branca agiu como uma bola de demolição para a ordem internacional. Assim, Benjamin Netanyahu recebeu sua bênção para decidir o destino de Gaza com sangue e fogo sobre um manto de ruínas e mais de 50.000 cadáveres de civis . Além de retirar os EUA da OMS e do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas , a agência internacional de ajuda, USAID, foi desmantelada, com consequências terríveis em partes do mundo onde seu trabalho não pode ser substituído.

Mas nada exemplifica a destruição da ordem internacional como a guerra na Ucrânia. A ideia de que os EUA defenderão qualquer país da agressão russa entrou em colapso. Washington deixou de considerar a defesa da Europa uma questão estratégica, e 80 anos de aliança ocidental se tornaram história. Nesta nova era, o presidente americano se apresenta como alguém que joga o jogo da neutralidade e pode tanto pressionar verbalmente o invasor Putin, como fez neste sábado, quanto ameaçar Zelensky exigindo a capitulação com argumentos que pouco diferem dos do Kremlin.

A arbitrariedade e o abuso se espalharam para acordos comerciais por meio de uma política tarifária que colocou em risco tanto a estabilidade econômica global quanto a prosperidade americana. As reações variam da subserviência de países menores e da cautela da UE à escalada total da China. Trump acredita que o mundo deve pagar um preço por fazer negócios com os EUA, uma arrogância que está começando a criar alianças fora de Washington e isolando o país da globalização que, baseada no dólar, o tornou a principal potência mundial.

Parece que somente o poder corporativo que o cerca e o capital que o apoiou de fora podem deter a deriva econômica destrutiva e autodestrutiva de Trump. Foi o único freio que funcionou nesses três longos meses. Em questões de meio ambiente, cooperação internacional e, acima de tudo, direitos civis, os danos podem durar anos.

A recusa da Universidade Harvard em permitir que sua autonomia seja violada e a atitude de alguns juízes são os primeiros sinais de que a sociedade americana, assim como o resto do mundo, está começando a emergir do choque que vem vivenciando há quase 100 dias. A resposta do trumpismo a essa resistência definirá, em última análise, o regime instalado em Washington.