quinta-feira, 14 de março de 2024

Pensamento do Dia


 

O ‘você sabe com quem está falando’ à bala

Estudei sociologicamente o rito autoritário que intitula esta crônica. Conheço-o desde menino e, como costume ou hábito, ele é parte “natural” da minha sociedade. Presenciei situações em que a ausência de reconhecimento de uma autoridade causava embaraço e produzia vergonha.

Volto ao assunto quando, horrorizado, tomo conhecimento do absurdo cruel ocorrido em Vila Valqueire, no Rio de Janeiro, onde um motoboy entregador de refeição levou um tiro por não ter se comportado convenientemente com a esposa de um cliente militar. Foi, sem dúvida, um “você sabe com quem está falando” à bala.

Insisto em que precisamos ter consciência desses hábitos autoritários embutidos em fórmulas habituais que, no discurso político populista, alimentam a proposta de prometer para não cumprir. É preciso realizar uma engenharia política capaz de neutralizar esses costumes aristocráticos, responsáveis por graduações e hierarquias em todos os lugares.

Não há quem não queira ser celebridade ou autoridade no Brasil. Ser “conhecido” é não se preocupar mais em anunciar, em viva voz ou à bala, quem somos. O preço alto e, às vezes violento, de não saber com quem se fala é um sintoma de resistência à mobilidade e ao anonimato. Anonimato que cimenta a igualdade, pois trata todos do mesmo modo.


Se há a suposição de que tenho de saber com quem estou falando, então a sociedade onde vivo diz que todos devem se conhecer. Ora, o conhecer mútuo implica saber o lugar de cada um no sistema. O resultado dessa ética de gradação é obvia. Se não “trato bem” e não presto atenção aos outros, posso sofrer uma reprimenda que chega na forma de uma advertência sobre minha inferioridade. Sobretudo se desempenho papéis como vendedor, motoboy, carteiro, motorista, porteiro, garçom — a lista é enorme e móvel —, que demandam o anonimato e a impessoalidade, essas dimensões que exigem a igualdade na relação com todos os clientes.

O “você sabe com quem está falando?” é fruto de uma sociedade em que as relações são mais importantes que as leis. Ela é avessa à mobilidade e à igualdade. Nela, inferiores e superiores se conhecem (esse traço é o eixo das “elites”) e têm códigos habituais de tratamento, porque a exceção é uma intrusiva igualdade, e não a boa e velha hierarquia. Vivemos entre a impessoalidade da lei e as demandas irrecusáveis e particularistas dos amigos e conhecidos.

Nossa questão permanente e exaustiva é como, no universo público, enfrentar os “mal-educados”, os malandros e os que querem levar vantagem em tudo. Os possuídos por um salve-se quem puder, quando se encontram na nudez de um maldito anonimato. Eu corria para entrar na barca e imbecilmente ficar ao lado de quem fazia o mesmo. No bonde ou no ônibus, fazia a mesma coisa. Até que pude “andar de carro” e fui obrigado a “furar” o sinal para escapar dos “barbeiros”. Passei da indignada fila do ônibus para o frustrante engarrafamento do trânsito. Uma frustração que tem sua raiz no conflito de uma sociedade dividida entre o ideal hierárquico do “eu sou especial” e um sistema baseado na impessoalidade de uma igualdade lida como erro, confusão ou insulto. É complicado, e fica cada vez mais impraticável, lidar com o mundo público da “rua” como “casa” — um espaço onde todos sabem com quem estão falando.

A passagem da família e da amizade para a cidadania requer a consciência da universalidade das leis que valem para todos. Mas, para isso, será preciso ceder ao particularismo relativista, mãe do apadrinhamento que distingue os interesses pessoais das demandas impessoais e universais da sociedade. Não cabe continuar com o refrão maquiavélico do “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”, o anonimato, a impessoalidade e, é claro, pois ninguém é de ferro, o “você sabe com quem está falando?”.

Alguém lembra?

Àqueles que reclamam do Presidente da República uma palavra tranquilizadora para a nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social
Presidente João Goulart, no comício da Central do Brasil, no Rio, deposto em 2 de abril de 1964

Contradições de uma humanidade sem rabo

É isso mesmo. Uma matéria recente da BBC revela que o ser humano só virou gente depois que perdeu a cauda! O homo sapiens é um macaco sem rabo. E quem comprova tal hipótese é a New York University. Nossa evolução acelerou quando nossa cauda sumiu.

Não quer dizer que, para diversos animais, o rabo não seja um instrumento importante de defesa no caso do jacaré, ou de equilíbrio para os gatos, ou mesmo de locomoção para alguns de nossos primos macacos.

Dá pra imaginar que a teoria da NYU faz todo sentido, quando comparamos nosso elevado desenvolvimento, por exemplo, com o das cobras (que são praticamente só cabeça e rabo), considerando que elas continuam rastejando após 170 milhões de anos.

Segundo a BBC, a grande dúvida agora é quem veio primeiro, a queda do rabo ou a evolução. Alguns discordantes acham que é possível só termos perdido o rabo depois que evoluímos.

A coisa fica mais confusa ainda quando se acrescenta ao debate a Teoria da Evolução de Darwin, segundo a qual os humanos seriam parentes próximos dos macacos. Ou seja, será que outros macacos como os chimpanzés, que hoje não têm mais rabo, já atingiram o auge de sua evolução acima dos demais primatas? Ou devemos temer alguma concorrência futura no estilo Planeta dos Macacos?

A tese da evolução decorrente da perda do rabo (há uns 25 milhões de anos) está relacionada, entre outras coisas, com a possibilidade de caminharmos com duas pernas, liberando as mãos para outros afazeres mais criativos e produtivos.

Sendo assim, não seria exagero imaginar que, se ainda ostentássemos frondosas caudas, não teríamos sido capazes de inventar maravilhas como o telescópio espacial James Webb e o acarajé. Visto de outro ângulo, não é absurdo supor que não haveria bomba atômica se Oppenheimer ou Einstein tivessem rabo.

Qualquer que seja a conclusão dessas pesquisas, já servem pelo menos para fazermos uma reflexão crucial. Ao perder o rabo, o ser humano teria perdido também seu senso de autopreservação? Estaria na cauda a nossa consciência de pertencimento à natureza?

Vale a pena observar que, sem o rabo, fomos capazes de inventar e produzir milhões de automóveis movidos a petróleo e agora substituí-los por outros tantos milhões movidos a baterias de lítio, sem sequer questionarmos para que (e a quem) servem tantos automóveis.

A falta do rabo também nos garantiu inteligência para criar o Estado e a democracia, sem que os utilizemos para eliminar a desigualdade social e a violência. Da mesma forma, sob a justificativa contraditória de protegermos a humanidade (de si própria) trocamos nossa cauda por um volume trilionário de armamentos e munições.

Outra recente curiosidade sobre a humanidade sem rabo é que nas eleições de Portugal, ocorridas esta semana, grande parte dos eleitores brasileiros com cidadania portuguesa votou na mesma extrema direita xenófoba que os agride esbravejando “porcos, saiam daqui e voltem para o Brasil”.

Tantas contradições levam a crer que ainda pode ter sobrado algum pedacinho de rabo em algumas pessoas.
Felipe Sampaio

O exercício da liberdade

Qual foi a intenção do escritor Jeferson Tenório ao escrever o “O avesso da pele”? Foi o que eu perguntei a ele. A obra está no meio de um turbilhão após ter sido atacada pelo obscurantismo e pela censura por supostamente não ser apropriada para jovens do ensino médio. “Eu tinha a intenção de fazer uma grande declaração de amor ao conhecimento, aos livros, às bibliotecas, às referências literárias.” Na história, Henrique, o professor de literatura, consegue atrair seus alunos para “Crime e castigo”, de Dostoiévski. Ele se entusiasma com a vitória e planeja levá-los para Kafka, Cervantes, Virgínia Woolf, Toni Morrison. Ele pensava nisso tão intensamente, andando na rua, que não ouve as sirenes. Ele sonhava com literatura, quando a polícia chegou. Ele era negro.

Vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, traduzido em 16 países e proibido a estudantes do Paraná, Mato Grosso e Goiás, o livro pode ser entendido como uma obra sobre o afeto entre filho e pai, a complexidade das relações raciais no Brasil, a violência cotidiana de gestos, palavras, supostas piadas, abordagens policiais a que os negros brasileiros são submetidos. Fala da dificuldade de ensinar literatura a jovens, e da corrida do professor entre colégios para ter uma renda. É um livro sobre o Brasil com suas feridas. É tudo, menos um livro de pornografia.

Quem quer censurar usa uma cena ou um palavrão para atirar contra o livro. Pretexto. Parte de quem não vê o que é realmente escandaloso no país. É a educação ter caído no IDH em 2022. É sermos ainda um país que fere diariamente os negros com uma divisão inaceitável. Muita gente tem reagido em defesa do livro, mas ficam as dúvidas. Quando termina um movimento que começa com a retirada de livros das escolas? Que mal íntimo a censura faz ao autor? Perguntei a Jeferson Tenório se esses fatos podem acabar provocando a autocensura.

— Acho que isso é uma das estratégias do ultraconservadorismo, em que se inverte a lógica. Então você coloca a culpa na vítima. Como se fosse um crime colocar um palavrão ou uma cena de sexo num livro. E aí o autor, o artista, passa a se questionar: será que eu estou de fato exagerando? É um exercício que a gente deve fazer enquanto criadores. O exercício de liberdade. Um exercício interno de entender que o que eu estou produzindo depende justamente desse consentimento de liberdade que o fazer estético nos dá. Ou seja, eu só posso criar uma obra literária a partir dessa premissa da liberdade. Mas não é fácil mesmo porque a gente tem que estar sempre lutando consigo mesmo: será que eu coloco isso aqui? Será que não? — respondeu Jeferson, na entrevista que fiz com ele na GloboNews.


A censura é insidiosa. Ela arma essa cilada. Tenta ganhar até quando perde, entrando dentro do autor. Jeferson está escrevendo um novo livro que se passa no ambiente acadêmico em mudança, após a chegada de pessoas negras.

— Houve uma revolução silenciosa, o rosto da universidade se modificou e com isso mudou também o conhecimento que é validado ali dentro.

Hoje há muito mais negros publicando obras que fazem sucesso e têm destaque, mas há aí uma sutileza importante a ser entendida, no que ele define como uma “primavera negra”.

— Isso deve ser comemorado. A gente pode falar de Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior, Eliana Alves Cruz, Ana Maria Gonçalves. Por outro lado, me preocupa um pouco esse discurso de tentar “guetizar” os escritores negros, e dizer que eles não fazem uma literatura canônica. Como se a gente estivesse fazendo outra coisa que não literatura. Porém, é importante que a gente marque um território político ao dizer e reforçar, em determinados momentos, que são autores negros e, em outros, se colocar como autor.

“O avesso da pele” é sobre literatura, relações familiares, racismo estrutural. O autor explica:

—O professor Henrique é um professor negro de literatura, essas relações familiares acabam sendo atravessadas pela questão do racismo estrutural e pela violência policial. É um livro que congrega todos esses temas em torno da história entre pai e filho.

“O avesso da pele” é lindo, forte e narrado de forma a criar a imediata intimidade do leitor com a história. “Até o fim você acreditou que os livros podiam fazer algo pelas pessoas”, diz Pedro ao seu pai, Henrique. É esse o livro que tentam censurar no Brasil. Começam assim as fogueiras.