quinta-feira, 21 de abril de 2022

Os cínicos e os burros

Não, o assunto não morreu. Nem pode. Confrontado com os áudios em que antigos juízes do Superior Tribunal Militar reconheceram a prática de tortura na ditadura militar, o tosco atual presidente do STM, general Luís Carlos Gomes Mattos, disse, "Eles não estragaram a minha Páscoa". Na véspera, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, foi ainda mais grosseiro: "Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras de volta do túmulo?". O deboche e a crueldade são iguais, mas não a personalidade de cada um.

Mourão é cínico, assim como seus colegas de farda Augusto Heleno e Braga Netto. Sabem que Jair Bolsonaro está desmontando o país, com resultados que revoltariam até os generais da ditadura. Mas já não têm saída exceto seguir com ele, ao lado de cínicos profissionais como Augusto Aras, Marcelo Queiroga, Paulo Guedes, Arthur Lira, Silas Malafaia e outros juízes, políticos e evangélicos.


Já Gomes Mattos é apenas burro. Faz parte do time de Luiz Eduardo Ramos, Eduardo Pazuello, Marcos Pontes e outros fardados que veem Bolsonaro como um iluminado. Ao dizer que "só varrem um lado, não varrem o outro", admitiu que nos dois lados há coisa a varrer. Mas tanto os cínicos quanto os burros estão fazendo vista grossa a algo importante e óbvio.

Sob Bolsonaro, qualquer desclassificado no governo pode pregar o armamento da população contra a "criminalidade de Estado". Isso significa a incitação a que civis peguem em armas para, ao comando de Bolsonaro ou dos zeros, desafiar os governadores, os tribunais e, se preciso, o próprio Exército.

O que esses generais acharão da ideia de dividir a força armada da nação com uma turba acima da lei, com ideias particulares de ordem e poder? Irão à sua caça, para prendê-los e torturá-los, como seus heróis fizeram contra os inimigos no passado? Ou se sujeitarão a bater continência para gente como Daniel Silveira?

Democracia iliberal é piada

A mais imperfeita das democracias é sempre mais justa do que a mais sofisticada das ditaduras.
 Nós queremos uma muito melhor democracia, mas democracia, não queremos aventuras ou seduções de democracias ditas iliberais, ou seja, ditaduras dissimuladas. Reafirmemos, pois, os valores os princípios democráticos e pratiquemo-los no dia a dia. Evitemos as condutas que enfraqueçam aqueles valores e princípios. Previnamos o seu desrespeito. Combatamos a sua violação. Reformemos a justiça onde e quando e como tal se revele necessário, sem messianismos, que são próprios de instituições débeis ou frágeis, mas com instituições fortes e prestigiadas e, sobretudo, com cidadania exemplar.
Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, na sessão solene de abertura do ano judicial no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa

Nós, os bobos

A cena – fictícia, por favor – tem lugar num restaurante sem encantos, há coisa de duas décadas. Três comensais conversam em tom contido; não querem ser ouvidos pelos clientes das outras mesas e muito menos pelo garçom. São dois homens, ambos parlamentares, e uma mulher. Detentora de um cargo de relevo no Executivo, ela escuta o interlocutor de cabelos escuros, o mais jovem, que, semblante contraído, conta que há denúncias de propina em repartições da cidade. Sua retórica tem escola, embora pouco mais que sussurrada. Ela se mantém insondável. O outro, silente, assiste à preleção com ares de resignação disciplinada, feito a Mona Lisa de bigodes.

Numa pausa polida, a dama pede licença e se dirige ao toalete. Pronto, era a deixa que o mais velho esperava para pôr o colóquio em pratos limpos. Pousando a mão sobre o antebraço do moço, o senhor calmo o encara com serena segurança: “Ela sabe”. Ambos emudecem. “Ela sabe de tudo.” Os dois se entreolham sob o rumorejo do ambiente e o tilintar dos talheres triscando a louça. Quando a senhora retorna, a pauta é outra. Falam do clima, de um aniversário na família, do amigo que recebeu um diagnóstico de câncer. “Me passa o sal, por favor?” A comida pesa na boca de um dos três, que mastiga como se fosse alface a certeza rançosa de que lhe coube o papel de bobo.


Agora, mudemos a chave. Passemos da ficção para a realidade. Deixemos para trás os tempos idos, um tanto hipotéticos, e vamos nos fixar no presente, nos nossos problemas gritantes. Voltemos nossa atenção para outra conversa, não mais num restaurante insosso, mas na esfera pública: escutemos o diálogo da imprensa com a elite brasileira. Não descuidemos dessa tortuosa interlocução, porque aí, também, existe gente no papel de mané.

Todos os dias, o noticiário traz fatos eloquentes que atestam a desumanidade do governo federal, o deboche que o presidente dedica à vida de seus conterrâneos, as políticas intencionais de devastação ambiental (algumas vezes com um ministro em pessoa vistoriando madeira empilhada), a corrosão milicienta que come por dentro as instituições democráticas, o tráfico de influência e, por fim, o cinismo com que militares tornados políticos gargalham dos crimes de tortura, assassinato e ocultação de cadáver praticados durante a ditadura militar. Está tudo aí, na nossa cara. Manchetes que deveriam chocar a opinião pública passam como se fossem o aviso de uma frente fria que vai se aproximando do Rio Grande do Sul.

A imprensa profissional insiste, e seu trabalho árduo cai no vazio, como um folheto com ofertas de supermercado que é esquecido no fundo da caixa de correio das residências elegantes da capital. O que teria de ser desesperador se tornou irrelevante. Nada mais é capaz de despertar a “ira santa” dos que estão por cima.

Aos poucos, a consciência do jornalista começa a ouvir uma advertência que vem não se sabe bem de onde, mas vem: “Eles sabem, meu rapaz. Eles sabem de tudo, minha cara”. A advertência continua: “Eles sabem, e não se incomodam, querem que isso continue. É melhor você não ficar mais amolando com esta conversa negativa. Chega de notícia ruim. Vê se arranja aí uma história edificante pra contar”.

O discurso da imprensa, desde as revoluções liberais no século 18, tem na mira o cidadão ciente de seus direitos. É para ele que os jornais sempre falaram. O jornalismo se distingue de todas as outras formas de relato não por ter títulos, leads e legendas, mas por eleger como seu destinatário o titular do direito à informação. Em poucas palavras, o jornalismo se define por aquele a quem se dirige – e “aquele a quem se dirige”, neste caso, é a fonte do poder, razão pela qual tem o direito e o dever de estar informado.

Agora, a velha receita, tão simples quanto cristalina, entra em crise. O cidadão ciente dos direitos, antes encarregado de fiscalizar o poder, vai gradativamente renunciando ao posto – a começar da elite. Vozes endinheiradas admitem que vão reeleger o presidente da República. A desculpa é não permitir o que chamam de “volta da corrupção”. Reclamam de desvios que ocorreram em governos passados. Ocorre que aquelas condutas lamentáveis, criminosas, foram apuradas, julgadas e muita gente foi parar na cadeia. Nós tínhamos um Estado preparado para enfrentar os ilícitos. Agora, no governo que aí está, também há denúncias de subtrações dolosas, mas o pior é que estão nos tungando, além do erário, o próprio aparelho de Estado. Atenção, senhoras e senhores que não têm mais ouvidos cívicos: estão pilhando a precária democracia que tínhamos. Diante dos olhos da Nação, instituições vêm sendo adulteradas em suas finalidades e passam a buscar metas opostas à sua razão de ser. Corrupção? Ora, não há corrupção maior do que essa, nem mais destrutiva.

A tal elite não liga. Alegando medo dos fantasmas do passado, vai se preparando para fortalecer o fanatismo antidemocrático que já está no poder e sufragar a maior de todas as corrupções. A imprensa fala sozinha, feito boba.

Pensamento do Dia

 


Romanceiro da Inconfidência

Não posso mover meus passos
Por esse atroz labirinto
De esquecimento e cegueira
Em que amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
– avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
– descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.

Batem patas de cavalos.
Suam soldados imóveis.
Na frente dos oratórios,
que vale mais a oração?
Vale a voz do Brigadeiro
sobre o povo e sobre a tropa,
louvando a augusta Rainha,
– já louca e fora do trono –
na sua Proclamação.

Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
Cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados …
– liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
e o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentiras e verdade estão.

Aqui, além, pelo mundo,
ossos, nomes, letras, poeira…
Onde, os rostos? onde, as almas?
Nem os herdeiros recordam
rastro nenhum pelo chão.

Ó grandes muros sem eco,
presídios de sal e treva
onde os homens padeceram
sua vasta solidão…

Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta nossa aflição.

Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.

Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão.
Cecília Meireles

Brasil, um país Kodak

Para quem não lembra, a Kodak foi uma multinacional que dominou o mercado fotográfico; seus proprietários, dos mais ricos do planeta. Hoje, tornou-se exemplo de fracasso por negar, desconhecer ou minimizar a necessidade de mudanças para acompanhar tendências então incipientes – no caso, a fotografia digital – e acabou alijada do mercado. Faliu!

As maiores forças políticas no Brasil negam, desconhecem ou minimizam tendências que se fortalecem mundo afora e dominarão o futuro, assim como hoje, em seu campo, a foto digital. Daí ser a perspectiva do Brasil semelhante à da Kodak, embora falência não seja opção para países. Nestes, quando alheios a tendências crescentes, o futuro é de pobreza para a maioria da população, enquanto uma minoria busca imitar o padrão dos mais ricos daqueles países que, sim, reconheceram e ajudaram a criar as tendências que passam a dominar.


Muitos dirão que o Brasil não se assemelha à Kodak porque nunca foi tão forte quanto ela. Engano, mostra Celso Furtado ao calcular que, no século XVII, com a produção de açúcar, o agronegócio de então, a renda per capita no Brasil – mesmo contando os escravizados – era muito superior à dos europeus! No século seguinte, com a extração do ouro – hoje alguns diriam, como se faz com o petróleo, enganosamente, “produção” de ouro – o diferencial de renda manteve-se favorável ao Brasil. Além de mostrar que o Brasil já foi, sim, destaque internacional, a elevada renda per capita de então, com tantos despossuídos até de seus próprios corpos, evidencia também, mais uma vez, que a ideia de PIB como sinal de “sucesso” tem que ser abandonada.

As tendências citadas formam, em conjunto, a única agenda capaz de reverter as duas degradações legadas aos habitantes do século XXI: a do ser humano e a do ambiente. São elas, numa lista incompleta: reduzir a extração total de materiais da natureza, acabar a pobreza, alongar a vida útil dos produtos e reciclá-los, caminhar rumo à geração zero de lixo, abandonar os combustíveis fósseis, substituir o transporte individual pelo coletivo, retirar os automóveis das cidades e assegurar que estas cresçam pela multiplicação de espaços “agradáveis” de uso múltiplo, reduzir o uso de agrotóxicos, de plásticos de uso único e de refrigerantes, recuperar nascentes, assegurar água limpa para todos, eliminar a disposição não tratada de esgoto, ampliar o espaço de florestas e parques, assegurar a sobrevivência daqueles que já foram ou serão expulsos do mercado de trabalho pela inteligência artificial, adotar impostos progressivos …

O Brasil não avança ou regride em todos os itens. Muitos dirão ser a lista irrealizável, que é fantasia pensar que tais tendências se tornarão dominantes. Como, provavelmente, terão pensado os dirigentes da Kodak sobre a foto digital.

O que será da economia brasileira se ninguém comprar carro

Brasil como importante polo de produção e mercado automotivo: uma história de sucesso iniciada após a 2ª Guerra Mundial, que agora ameaça acabar mal. O País tem vantagens para iniciar nova fase, mas precisa utilizá-las.

Quem quer comprar hoje um automóvel novo no Brasil precisa ter bastante dinheiro e paciência. Mesmo assim, são cada vez menos os que se podem dar a tal luxo: o modelo mais barato custa cerca de R$ 70 mil, e as listas de espera são de alguns meses.

Um exemplo de como são incrivelmente altos os preços que os brasileiros têm que pagar: na Alemanha hoje se compra um veículo novo pelo equivalente a cerca de R$ 44 mil.

A discrepância é ainda mais absurda levando-se em consideração a renda média nos dois países: pelo carro mais barato, um brasileiro que ganha um salário mínimo tem que trabalhar cinco anos, enquanto na Alemanha bastam cinco meses. Mesmo tomando-se como base o salário médio, os compradores brasileiros precisam de três anos, contra dois meses (!) para os alemães.

Outro agravante é que em diversas partes do país muitos dependem inteiramente de um automóvel, já que a infraestrutura pública (ônibus, trem, metrô) não cobre a demanda da população. Ao contrário da Alemanha, onde, a princípio, se chega a qualquer lugarejo de ônibus ou trem.


Esse estado de coisas é espantoso: com o Fusca, o Gol e a Kombi, o Brasil sempre foi um mercado de massa para as montadoras, cuja venda de modelos populares adaptados justificava a operação das fábricas. Apesar da estagnação há anos, o Brasil ainda é o sétimo maior mercado automotivo no mundo e conta com 57 fábricas.

Em especial para as produtoras alemãs, apesar dos muitos altos e baixos, o Brasil é uma importante história de sucesso. O país foi um dos poucos em que a indústria alemã pôde voltar a investir depois da Segunda Guerra Mundial. Os investimentos da Volkswagen e Mercedes – assim como os da Ford, GM, Fiat – deram ao Brasil um importante impulso de desenvolvimento.

Todas as partes envolvidas beneficiaram-se disso: o país pôde desenvolver um dos poucos polos industriais do Sul global. Com sua cadeia de geração de valor, há décadas a indústria automobilística tem sido uma espinha dorsal da economia nacional, evitando que o Brasil se tornasse um mero fornecedor de matérias-primas. O país também era um dos principais mercados externos para as multinacionais alemãs, antes de a China se tornar prioridade.

Agora, após anos de estagnação da renda per capita, o mercado automotivo brasileiro tornou-se menos interessante para os fabricantes, que se limitam a oferecer modelos mais caros, na categoria média, com maior margem de lucro. Há anos, a lista de acessórios incluídos diminui.

Entre os motivos para o parco engajamento das montadoras estão as condições básicas desfavoráveis: a falta de semicondutores da Ásia e o real fraco encarecem as importações, a pandemia tumultuou as cadeias de valor, e – não menos importante – o corte dos atrativos fiscais para a indústria automobilística decretado pelo governo Bolsonaro são fatores que contribuíram para o Brasil perder importância no setor como local de produção, em âmbito mundial.

A questão decisiva agora é: o Brasil vai conseguir acompanhar a revolução em curso no setor automobilístico (eletromobilidade, veículos autônomos, motores de emissão zero)? Munido das experiências com o etanol, seu acesso potencial a combustíveis verdes e a presença de 27 fabricantes em seu território, o Brasil tem vantagens como local de produção, em nível global. Ele precisa utilizá-las.