terça-feira, 28 de março de 2023

Pensamento do Dia

 

Luc Descheemaeker

A última trincheira da escravidão

Quem conhece o livro “A Última Trincheira da Escravidão”, publicado pela Editora da Universidade Zumbi dos Palmares, sabe que as recentes denúncias de escravidão são consequência de uma fonte inesgotável de escravos dentro do Brasil: a desigualdade como a educação é oferecida. Antes, os escravos eram arrancados da África, agora, são arrancados da escola. A falta de educação necessária para trabalho qualificado leva brasileiros a emprego em condições similares à escravidão.

Em 1871, os escravocratas aceitaram a Lei do Ventre Livre ao perceberem que ela soltava, mas não libertava aos filhos das escravas. Para soltar, basta retirar as algemas; para libertar, precisa dar um mapa para que o solto saiba orientar-se no caminho que escolher. Esse mapa vem da escola. Depois de 17 anos, repetiram a mesma estratégia, aprovando a Lei Áurea, que soltou, mas não libertou os escravos, por falta de escola que lhes daria o mapa para um emprego, renda, alternativas sociais.


O Brasil precisou esperar o século XXI para ter uma lei que assegura vaga na escola a toda criança brasileira, a partir dos 4 até os 17 anos de idade. Mesmo assim, a lei não é cumprida e a última trincheira da escravidão foi mantida sob a forma da escola desigual: “escola casa grande”, para alguns, e “escola senzala”, para a maioria.

Dezenas de quase-escravos foram soltos nas últimas semanas, mas, por falta de educação, milhões só encontram trabalho em condições semelhantes à escravidão. Eles não foram buscados na África, não podem ser vendidos, mas são condenados ao desemprego ou renda insuficiente, e são submetidos a formas escravocratas de trabalho. Felizmente, temos o Ministério Público desfazendo estas condições, mas estão apenas soltando, não estão libertando os escravos atuais, e deixam milhões de outros em situação semelhante, como forma para sobrevivência.

A última trincheira da escravidão continuará enquanto o Brasil não tiver um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base para todos brasileiros, com a máxima qualidade, da primeira infância até o final do ensino médio, alfabetizando para a contemporaneidade, independente da renda e do endereço.

A partir dos anos 1860, a população brasileira começou a se mobilizar pela Abolição da Escravatura, mas não se vê movimento parecido para completar o que foi feito naquela época, eliminando agora a última trincheira da escravidão. Talvez nem os educadores, nem o Ministério da Educação tenham consciência desta responsabilidade, nem da contribuição dada pela Universidade Zumbi dos Palmares na tentativa de despertar o Brasil para o fato que soltar não é libertar. Libertar é educar quem foi solto.

Corrupção e colheres de prata

Quando se fala de corrupção debruçamo-nos sobre a sua definição, mas geralmente não discutimos a sua natureza, de onde vem e por que motivo parece ser tão antiga quanto a própria humanidade. De facto, a corrupção funda-se numa característica humana essencial, que sob determinada perspetiva é também uma das mais importantes virtudes: a reciprocidade. É precisamente por isso que a corrupção é dificílima de debelar, uma vez que é um fenómeno profundamente ligado ao comportamento humano mais básico, e que na verdade é axial para a nossa espécie: somos seres gregários que precisam de cooperar para sobreviver e singrar: “Uma oferta ‘desinteressada’ é paga com um favor” (Carlo Alberto Brioschi, em Corruption – A short history).

A corrupção é assim um dos lados negros da reciprocidade. Existem vários, como certas leis que também elas implicam uma relação de simetria, como a vingança ou o “o olho por olho, dente por dente”. Escrevi o seguinte em Jalan Jalan: «A reciprocidade é um comportamento social muito antigo e fundamental à sobrevivência. Quando caçávamos e não tínhamos maneira de conservar o que sobrava de um animal, partilhávamos. Essa dádiva era o nosso frigorífico, celeiro, ou uma espécie de banco. Ao partilhar, esperávamos que fizessem o mesmo connosco e a comida oferecida, mais tarde ou mais cedo, seria de algum modo devolvida. Num período de escassez seria expectável que o outro nos salvasse da fome. A partilha substituía a acumulação e a propriedade. Não era preciso fechar a comida à chave, pelo contrário, era essencial oferecê-la.

Esta forma de reciprocidade foi gravada na pedra e, em alguns casos, tornou-se lei, como no Islão, por exemplo. Mas o lado mais perverso da reciprocidade é que não funciona somente com o altruísmo, mas também com a vingança, o «olho por olho, dente por dente». Se é verdade que tendemos a retribuir os favores, também temos uma pulsão idêntica no que respeita às sevícias que nos infligem. “A uma vingança segue-se outra, e facilmente se chega a uma guerra», escreveu Dobelli, em A arte de pensar com clareza, acrescentando que «o que Jesus pregou, ou seja, interromper o círculo vicioso oferecendo ao agressor a outra face, é muito difícil porque há mais de cem mil milhões de anos que a reciprocidade pertence ao nosso sólido programa de sobrevivência. O mais antigo código penal, o de Hammurabi, já incluía o “olho por olho, dente por dente”».

Quando se diz que a corrupção sempre existiu – desde que existe humanidade – a sentença deve ser tomada literalmente. Estamos a falar de uma relíquia biológica.

A corrupção não só atravessou os tempos, como também costuma ser, no que respeita à sua natureza, suavizada, normalizada ou até elogiada. Albert Cossery escreveu o seguinte em As Cores da Infâmia: “O banditismo nas altas esferas da sociedade é uma peripécia admitida em todas as nações do mundo. O povo já está habituado e até aplaude esse género de proezas.”

Não é raro ouvir comentários em que se crítica a ingenuidade e sinceridade de alguns políticos – como incapazes ou inábeis – e se encomia a prática manhosa de outros.

É ainda interessante lembrar que a corrupção é frequentemente associada a salários baixos, contudo não parece ser uma ideia sustentada cientificamente1. Nada contra salários altos, evidentemente, mas é uma distorção aumentá-los a determinadas pessoas em determinados lugares para evitar comportamentos criminosos. Chesterton tinha uma noção clara sobre esta questão: “A nossa pretensão nacional à incorruptibilidade na política assenta precisamente no contrário: na teoria de que, colocando homens abastados em posições seguras, eles não se sentirão tentados a meter-se em fraudes financeiras. Não me interessa agora saber se a história da aristocracia inglesa — desde a espoliação dos mosteiros até à anexação das minas — permite sustentar esta teoria: que a riqueza serve de proteção contra a corrupção política. O estadista inglês é subornado para não ser subornado. Nasce com uma colher de prata na boca para evitar que de futuro lhe venham a descobrir as colheres de prata no bolso”.

Ideia de jerico: o governo quer dizer o que é verdade e o que não é

O Poder mente, seja ele qual for. Sempre foi assim e sempre será. Mente-se mais em regimes autoritários, autocráticos, mas nas democracias também se mente muito.

Daqui a três dias, celebraremos A Grande Mentira de 64 – o golpe militar que por décadas se chamou Revolução e que suspendeu a democracia por 21 anos a pretexto de defendê-la.


Há duas semanas, os Estados Unidos relembraram outra grande mentira – a invasão do Iraque há 20 anos porque o ditador Saddam Hussein armazenava armas de destruição em massa.

E as provas disso? Fotos de satélites mostradas ao mundo numa sessão do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Hussein foi preso e enforcado. Não havia armas.

A Rússia, à época comunista, pôs armas, sim, em Cuba, a poucos quilômetros dos Estados Unidos, e por isso as duas grandes potências nucleares quase foram à guerra, a 3ª Mundial.

Mas era só para negociar. As armas foram retiradas em troca da remoção de mísseis atômicos americanos estacionados a pouca distância de Moscou. Um blefa, o outro blefa e a vida continua.

Portanto, desconfie, desconfie muito dos que os governos dizem, embora eles não admitam que mentem. E de iniciativas que eles possam ter em defesa do que apresentam como verdade.

À falta do que fazer, ou talvez porque não saiba o que fazer, a Secretaria de Comunicação (Secom) da presidência da República acaba de lançar uma plataforma oficial de checagem de notícias.

Seu objetivo: combater a disseminação de fakes news. Ora, mas já não existem tantas plataformas que fazem isso? Ou a da Secom se ocupará em só desmentir notícias que incomodem o governo?

Mesmo dessas, ou principalmente dessas, se encarregam, porém, as plataformas já existentes que carregam o selo de credibilidade conferido por agências públicas e veículos de comunicação.

A Secom se propõe a fazer um trabalho melhor? Dispõe de gente para isso, ou contratará para dar conta da tarefa? E quando for pressionada a dizer que é mentira o que é verdade?

Se partimos do princípio de que todos os governos mentem, em algum momento a Secom será pressionada a mentir pelo governo. A depender do que fizer, será a glória ou o fim do serviço.

Dificilmente será a glória, até porque ela costuma ser efêmera. Quem se lembrará que, um dia, a Secom tentou dizer a verdade, somente a verdade, e seus responsáveis acabaram dispensados?

Se mentir, e descobrir-se que mentiu, será um grande desastre para o governo que avalizou sua decisão de só informar a verdade, além de um desperdício de dinheiro, de energia e de tempo.

Melhor é não mexer com isso. E aconselhar o presidente a falar pouco e a só desmentir o que estiver 100% confirmado que se trata de uma mentira. O presidente, não, um porta-voz qualquer.

Por sinal, este governo carece de um. Carece de outras coisas também.

A inteligência artificial coloca a humanidade em risco?

A foto do papa Francisco usando um casacão branco de inverno marca um novo momento na cultura. Uma foto sem nenhuma agenda secreta, apenas uma brincadeira com a imagem do papa, que circulou pelas redes, enganando muitas pessoas e até um ou outro veículo de imprensa. Tratava-se de uma imagem inteiramente criada por inteligência artificial.

Enquanto isso, ferramentas de escrita por IA não só escrevem cartas como já criam histórias, formulam argumentos e até passam em exames admissionais humanos. Não existe inteligência real por trás da ferramenta; ela apenas ordena palavras seguindo padrões estatísticos de uma base de dados de bilhões de textos humanos espalhados pela internet. É uma versão mais poderosa do autocompletar dos nossos celulares. Mesmo assim, o resultado é espantoso.

Isso justifica a apreensão que muitos têm sentido com as novas tecnologias, como Yuval Harari em artigo no New York Times e Antônio Prata aqui na Folha. Confesso que o medo existencial —o medo propalado pelos próprios criadores/entusiastas de IA de que ela possa extinguir a humanidade— me parece exagerado. Tanto que Harari não é capaz de descrever um cenário plausível que leve a esse fim. Ele nem tenta. Mas há sim motivos de preocupação mais mundanos.


O primeiro é o impacto econômico. Profissões que antes demandavam horas de trabalho humano agora serão substituídas por segundos de processamento de dados. Meu trabalho como colunista pode estar com os dias contados. A capacidade criativa de pensar novas imagens e construir argumentos fora do comum ainda é valiosa (não sabemos por quanto tempo). Mas a habilidade de dar forma a essas ideias —seja em imagens ou texto— está rapidamente se tornando supérflua. Ilustrações, textos e programação rotineiros, então, já podem ser tranquilamente automatizados. A requalificação dessa mão de obra para outras áreas não virá sem custo.

O segundo risco é o impacto no debate público. É mera questão de tempo até que imagens realistas falsas passem a circular com intenções políticas, sociais e econômicas. E, logo mais, vídeos. Um vídeo comprometedor às vésperas de uma eleição acirrada pode mudar um resultado. Textos gerados continuamente para alimentar nossa predisposição político-ideológica da maneira mais eficiente possível —inclusive com mais e novas mentiras— chegarão a nós por todos os lados.

Não vejo qualquer chance de que agências de governo possam —"criteriosamente"— liberar inovações de acordo com um cronograma seguro e com as devidas limitações para o uso da população. Nossas lideranças políticas sequer entendem a tecnologia. E ela é facilmente reprodutível. Esse poder estará ao alcance de muita gente sem qualquer possibilidade real de controle.

É melhor se preparar para uma nova realidade em que toda notícia, imagem ou vídeo comprometedor será potencialmente falso, e feito com uma qualidade que um olhar leigo —e, em breve, mesmo um olhar técnico— é incapaz de diferenciar. Isso terá que ser internalizado.

Mais do que nunca, precisaremos desenvolver mais ceticismo geral e construir vínculos de confiança com fontes seguras de informação. A confiança, por exemplo, de que o jornalista que compartilha uma fala de uma figura pública conversou com testemunhas que a viram acontecer, que comparou-a com outras gravações e assim pode dar garantia de que a imagem é confiável. Justamente a confiança que parece erodir mais a cada dia conforme a imprensa é atacada, seja pela direita ou pela esquerda.