domingo, 11 de março de 2018

Desigualdade maior

A concentração aguda de riqueza em mãos privadas veio acompanhada de uma perda do poder da população geral. As pessoas se sentem menos representadas e levam uma vida precária, com trabalhos cada vez piores. O resultado é uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo
Noam Chomsky

Paisagem brasileira

Serro, Minas Gerais - Brasil
Serro (MG)

Covil de pilantras

Tem uma cabeça de burro enterrada no Ministério do Trabalho. Quem o diz é o ex-deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, que entende de cabeça de burro, de PTB e de Ministério do Trabalho.

Foi um funcionário indicado pelo PTB para a empresa dos Correios que em 2005 desatou o escândalo do mensalão do PT. Ele pediu e foi filmado recebendo uma “merreca” de propina, como diria Lula.

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Recentemente, Jefferson tentou emplacar a filha Cristiane Brasil como ministra do Trabalho. Compreensível. No loteamento da administração pública, governo após governo, o ministério sempre coube ao PTB.

Deu no que deu: Cristiane foi vítima da cabeça de burro por lá enterrada. Acabou sem tomar posse porque foi alvo de uma ação trabalhista. Depois de muito desgaste, desistiu da nomeação.

Descobriu-se agora que um rapaz chamado de “inexperiente” por Jefferson, de apenas 19 anos de idade, foi empregado pelo PTB no estratégico cargo de gestor financeiro de uma área do ministério.

No seu primeiro dia de trabalho, ele liberou o pagamento de R$ 22 milhões à uma empresa de tecnologia ligada ao deputado Jovair Arantes, líder do PTB na Câmara. Deveria gerir cerca de meio bilhão de reais.

Um governo que se diz sério como o de Michel Temer (é verdade que todos se dizem sérios) não deveria assistir calado a mais um escândalo. Porque é disso que se trata: um escândalo de bom tamanho.

Se foi capaz de intervir num estado como o do Rio, apesar do risco de fracassar, Temer deveria intervir no Ministério do Trabalho e limpá-lo dos pilantras que o tomaram de assalto. Seria menos arriscado. Ou não seria?

Partidos mudaram de ramo e viraram prostíbulos

Os partidos políticos brasileiros, como se sabe, estão em crise. Perderam a função. A própria política caiu em descrédito. Não há mais debate de ideias. Pouco importa que legenda está no poder. Muita gente pedia uma reforma política. Pois ela chegou. Os partidos legalizaram a infidelidade, instalaram uma porta giratória na entrada, reservaram R$ 2,6 bilhões do Tesouro Nacional para a compra de mandatos e mudaram de ramo. Os partidos viraram prostíbulos.

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A expressão decoro parlamentar frequenta as constituições brasileiras desde 1946. O primeiro caso de cassação de mandato por falta de decoro ocorreu em 1949, contra o deputado Barreto Pinto, por ter posado de cuecas para uma revista. Hoje, essa expressão “falta de decoro” parece insuficiente para descrever a atual fase pornográfica da política. Decorosa ao extremo, a Constituição não contém palavra mais forte para descrever a sem-vergonhice que tomou conta da Câmara. Os parlamentares estão nus.

Eles se autoconcederam um prazo de 30 dias para o livre exercício da infidelidade. Até o dia 6 de abril, está liberado o troca-troca partidário. Vale tudo. E ninguém será punido. Para aumentar suas bancadas e, com isso, elevar sua cota de dinheiro público, ampliar sua vitrine eletrônica e aumentar seu poder de chantagem sobre o governo, os partidos compram deputados por até R$ 2,5 milhões —dinheiro para a campanha, dizem.

Costuma-se afirmar que a política é a segunda atividade mais antiga do mundo. Mas ela ficou muito parecida com a primeira. Com uma diferença: quem paga o michê é o déficit público.

Imagem do Dia

Going back to the corner where I first saw you.

Um dia vou pescar no Tietê

Para José de Souza Martins e German Lorca

Há na mídia assuntos periódicos, constantes nas pautas como presentes e frutas de Natal; material escolar em fevereiro; ovos de chocolate na Páscoa; flores no Finados; bacalhau na Semana Santa, fantasias no carnaval (certa época, um tema era o lança-perfume, mas o Jânio Quadros estragou a festa). Desde que entrei em jornal, em 1957, sigo uma reportagem recorrente, repetitiva, a despoluição do Rio Tietê. Volta e meia ela agita, brigam os ambientalistas, os burocratas inertes e os políticos ávidos por propinas. A limpeza do Tietê se eterniza, assim como se adia a abertura da estação do metrô Oscar Freire, já apelidada pelo povo de “estação virtual.”

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O rio continua a correr grosso, viscoso. Triste cartão de visita. Passar pelas avenidas marginais devia nos valer uma taxa de insalubridade, a ser acrescentada a nossas minguadas aposentadorias. Esta abertura me veio a propósito de uma deliciosa cançonetinha que me foi enviada por Hélio Ziskind. Se você conhece o Hélio está bem, sabe do que falo, o talento que ele tem. Se não conhece, é pena, principalmente para seus filhos e netos.

Um dos formadores do Grupo Rumo, ícone da “vanguarda paulista” nos anos 80, Hélio passou pela TV Cultura de São Paulo produzindo, entre mil coisas, os programas infantis Glub Glub, X-Tudo, Lá Vem História e Rá-Tim-Bum. Um prêmio Sharp de Música de melhor disco infantil e melhor canção por A Noite no Castelo, em 1987 e outro em 1995 com a Sono de Gibi, melhor canção infantil. Em 1997, lançou seu primeiro disco solo, Meu Pé, Meu Querido Pé, pela MCD. Consultor Pedagógico do programa Castelo Rá-Tim-Bum. Ah, as trilhas sonoras do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, são dele.

Essas são mínimas coisas entre as centenas que sei do Hélio, de quem me aproximei quando vi o musical O Gigante na Floresta criado por ele, que narra a história verídica do Jequitibá de Carangola, Minas Gerais, uma árvore histórica de 1.500 anos, 54 metros de altura e 13 de largura, que foi vítima de um incêndio criminoso. Belíssimo tema. Ora, tínhamos tudo a ver um com outro, tendo eu escrito Não Verás País Nenhum e O Manifesto Verde, com temas ambientais. Hélio e eu frequentamos um a casa do outro, afinal ele é meu concunhado, ainda que cunhado não seja parente.

Adoro ouvir as conversas dele que vão de bactérias à física quântica, das propriedades dermatológicas do óleo de abacate à ficção científica e computação. A partir de março, no primeiro domingo do mês, todos poderão rever na Pinacoteca o Pinacanção: Uma História Cantada, desvendando o mundo da pintura, que mexe com a garotada.

Voltando ao abandonado infame rio. Dia desses, recebi o vídeo Utopia do Tietê, que adorei pela singeleza, humor, pela utopia e otimismo. Tomara as minhas distopias ambientais não se realizem, mas gostaria de viver a do Hélio. Ainda iremos para as margens do rio? Vejam só o que Hélio canta:

Um dia vai ter peixe no Tietê
um dia eu vou poder ir lá pescar
Eu vou chegar
pedalando a bicicleta
deito na grama
na beira do rio
Se der jogo
um futebol
dou uma nadadinha
me seco no sol

À tardinha vem peixe na beira do rio
Fico pescando, olhando o céu
e a cidade se acender

Eu pego um barco-bar vou
navegando pelo rio
Passo por baixo
da ponte do Limão
vou tomando meu suquinho
cantando uma canção
abacaxi (sh sh)
com hortelã (sh sh)

Tietê até’manhã
Um dia vai ter peixe no Tietê
um dia eu vou poder ir lá pescar
Sábado à tarde, na marginal
o rio vai trazer o meu jantar.


Um presente para a cidade na berlinda. Vale tentar acesso pelo link 

Funcionalidade criminosa

Há três facções no Rio de Janeiro, grandes compradoras de armas pesadas em virtude dos entreveros entre elas ou de cada facção com as forças policiais. O CV foi criado dentro de prisão federal em 1977, para assegurar aos assaltantes de bancos, enquadrados na Lei de Segurança Nacional, respeito à sua integridade física, ameaçada por prisioneiros ou por agentes do Estado. Depois, passaram a cobrar contribuição dos assaltantes que estavam na rua como garantia de respeito na prisão. Só em 1986 perceberam que havia outra atividade criminosa mais lucrativa e contínua (tráfico de drogas) e que traficantes já haviam iniciado uma corrida armamentista para proteger as bocas de fumo nas favelas. Começaram então a aliciá-los para o CV, espalhando o controle territorial pela cidade. Só que o dono da boca se estabeleceu no local onde cresceu, onde conhecia e era conhecido pelos vizinhos, ou seja, era “cria” da favela. Esse caráter de pequeno negócio local, no varejo das drogas, baseado nas relações de reciprocidade dentro ou entre favelas, vai marcar as facções cariocas que nunca chegaram a ser empresas modernas.

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O PCC foi fundado em 1993, também dentro da prisão, usando o mesmo lema e código de conduta do CV. O recrutamento, ao contrário, se deu pela indicação de um membro que se tornaria o “padrinho” do novo adepto, como na máfia italiana. O PCC logo assumiu um caráter empresarial com complexa hierarquia de decisões, em diferentes setores de atuação (sintonia geral e final, sintonia dos gravatas, uma sintonia para cada crime, uma sintonia para cada estado da Federação, sintonia dos presídios subdividida por unidades, sintonia do PCC no Paraguai e na Bolívia). No código atualizado, qualquer pessoa que prejudique os negócios do crime, ou por traição ou por incompetência, recebe um “salve”, tem o seu caso discutido nas sintonias a que está conectada e será punida com a morte. Apenas os casos mais difíceis de decidir chegam até a sintonia geral final, que dá a permissão para matar ou expulsar.

Foi assim que o PCC ajudou a controlar a taxa de homicídios em SP, tornando-se uma organização mais eficiente e capaz de monitorar as ações de seus membros. Além disso, enquanto o tráfico de drogas permaneceu durante muitos anos como o negócio do CV, complementado por assaltos feitos por iniciativa pessoal, o PCC coordenou várias atividades criminosas, tais como tráfico de armas e de drogas no atacado, roubo de cargas, roubo a bancos, assaltos milionários a carros forte e transportadora de valores, explosão de terminais eletrônicos. Essas ações espetaculares e de grande apropriação de dinheiro são motivo de orgulho dos que se aliam ao PCC e escrevem nas várias páginas de notícias das facões na internet. Mais claramente contra o Estado e as empresas, foram se espalhando por outros estados da Federação, acompanhando a expansão do PCC.

A partir de 2010, houve aumento crescente do roubo de cargas, que passou de 12.300 nesse ano para 17.500 em 2014, e também do prejuízo dado às empresas: R$ 800 mil em 2010, R$ 1 bilhão em 2014. Em 2011, os casos no RJ (3.073) eram menos da metade dos casos de SP (6.958). Em 2014, segundo a Firjan, 48% dos roubos de carga ocorreram em SP e 33% no RJ. Em 2017, já era mais do que o triplo (9.862) do que no início da década. Juntos, os dois estados respondem por 87,8% dos roubos no Brasil, que é o oitavo país em risco no transporte de carga em 2017, perdendo apenas para os países em guerra no Oriente Médio ou da África.

Os roubos de carga não cresceram espontaneamente no Rio. Foram resultado da presença do PCC e suas preferências sobre o modo de conseguir mais dinheiro rapidamente. Notícias sobre sua expansão no país tornam-se corriqueiras. O projeto da sintonia final é chegar a 40 mil membros em 2018, afrouxando os protocolos da inclusão, sem a necessária indicação de um padrinho já membro da facção com a aprovação de mais dois outros membros. Só então aparecem fissuras na forma de controle e críticas aos padrinhos que trouxeram novos membros vacilões ou traidores. O PCC se expandiu, mas afrouxou o controle interno sobre seus membros. Daí tantos assassinatos recentes, que revelam uma feroz luta interna pelo poder dentro e fora da prisão.

Sem resolver a questão penitenciária nem desmantelar a companhia do crime organizado que se expande por todo o Brasil, não há solução para a violência no país.

Alba Zaluar