terça-feira, 24 de setembro de 2019

Na ONU, Bolsonaro envergonha o Brasil

Para dizer o que acaba de dizer na abertura de mais uma Assembleia Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro não precisaria ter voado a Nova Iorque, arriscando a própria saúde depois de ter sido operado pela quarta vez desde setembro último.

Ele falou por lá o que costuma falar por aqui – à saída diária do Palácio da Alvorada, em reuniões com evangélicos e parlamentares da bancada da bala, em comícios nos quartéis sob o disfarce de solenidades militares. Nada de diferente.

Muito se escreverá na tentativa de entender o que está por trás do discurso que ele fez. Perda de tempo. Bolsonaro foi apenas o que é. Nada tem a oferecer ao mundo de diferente do que ofereceu aos brasileiros para se eleger. Por aqui, bastou.



Foi um discurso de fundo de quintal. Uma colcha de retalhos costurada pelo ódio. Ódio aos que divergem dele. Ódio às limitações impostas pela democracia. Ódio à liberdade de imprensa. Ódio a tudo que contraria sua visão estreita de mundo.

O chamado “gabinete do ódio” do seu governo, pilotado pelo garoto Carlos Bolsonaro, integrado, entre outros, pelos ministros Augusto Heleno e Ernesto Araújo e o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, ganhou mais uma. E assim será.

A sorte de Bolsonaro é que o sucedeu na tribuna da ONU o presidente Donald Trump – que, por sinal, não teve tempo para lhe conceder alguns minutos de atenção, embora tenha estado durante duas horas no hotel onde a comitiva brasileira se alojou.

O discurso de Trump foi tão medíocre e voltado para seu público interno quanto o do capitão. Mas ele é presidente do país mais poderoso do mundo. O que ele disser sempre repercutirá, apagando o que foi dito antes da sua fala.

A lei é a arma com que se assalta a Nação

A deformação do federalismo brasileiro, demonstrou dias atrás nesta página o ex-ministro Jose Serra, não está, como geralmente se pensa, na distribuição do dinheiro da arrecadação. “Em média, a participação de estados e municípios é de 30,9% nos países federados situados em nossa faixa de renda e de 49,5% entre os mais ricos (…) no Brasil eles se apropriam de 56,4% mas vivem uma crônica hipossuficiência financeira e administrativa”. “Essa descentralização é consequência direta do pacto federativo decorrente da Constituição de 88 que definiu a autonomia como regra”, diz o ex-ministro, que sugere que é nessa autonomia, somada à incompetência dos gestores estaduais e municipais que está o problema, o que remete à “solução” de sempre que seria aumentar a centralização.

Falso! O problema essencial do Brasil é que a autonomia que a Constituição definiu como regra é a dos representantes, que deveriam ser fiscalizados, em relação aos representados, que deveriam ter plenos poderes para fiscalizá-los tanto mais de perto quanto mais se vai descendo na hierarquia dos entes de governo (união, estados, municípios, distritos eleitorais) sob pena de perda imediata do mandato dos faltosos. Então sim haveria ganhos, e enormes, em pulverizar a distribuição do dinheiro dos impostos.

Mas blindados os funcionários e representantes eleitos contra qualquer interferência dos seus representados, pulverizar a distribuição do dinheiro entre quase seis mil prefeituras, governos estaduais e respectivos legislativos é apenas e tão somente multiplicar exponencialmente o numero de ralos por onde se irá esvair sem nenhum controle o dinheiro publico.


Todas as desgraças brasileiras têm como causa fundamental esse desenraizamento do País Oficial da única fonte de legitimação do poder numa democracia. Invocar a Constituição para encerrar controvérsias em países onde ela é o contrato para impor limites a quem detém o poder pactuado entre iguais e referendado por todos quantos concordaram em ceder parte de sua autonomia individual para fundar o Estado resultante desse contrato, faz todo sentido.

Mas invocar uma constituição que é produto exclusivo das deliberações de uma casta para reafirmar seus poderes e privilégios e recriar a sociedade feudal, aquela cuja legitimidade dependia exclusivamente do peso do passado, pelo expediente de reduzir esse “passado” a um par de segundos mediante a decretação da intocabilidade do “direito adquirido” apenas por ter sido “adquirido” e a partir do minuto seguinte a que tiver sido “adquirido” é tão somente um ato de força extremo para calar a denúncia dessa falsificação e impor pela força a opressão aos oprimidos.

Fala-se muito hoje na “polarização do debate político” mas a verdade é que não há debate sobre as questões essenciais no Brasil. Um entendimento mínimo sobre uma agenda comum só pode surgir em torno da definição da regra do jogo, nunca em torno do resultado desejado para o jogo. As constituições dignas do nome são as que limitam-se a definir como operar mudanças e não de onde para onde mudar nem, muito menos ainda, quem vai ganhar e quem vai perder sempre o jogo a cada nova mudança que houver que é estritamente o que faz a nossa “Constituição dos Miseráveis”.

O analista que parte da premissa de que o Brasil é uma democracia condena fatalmente ao erro todas as conclusões subsequentes. Não é! Nunca foi! E a Constituição de 88 é precisamente o documento que consagra esse não ser acima de todos os outros, ao sacramentar a deformação da representação do País Real no País Oficial feita para dar sobrevida à ditadura militar, institucionalizar a desigualdade perante a lei e “petrificar” o privilégio.

O “Brasil vocal”, que inclui da política à imprensa, divide-se hoje, com as raríssimas exceções que confirmam a regra, entre a bandidocracia que assume a autoria de toda e qualquer ignomínia e os caronas da bandidocracia que, por sua vez, dividem-se entre os com vergonha e os sem vergonha do papel a que se têm prestado; entre os que apenas murmuram diante das ignomínias contra as quais suas consciências lhes pedem que gritem, e os que nem a isso chegam.

Contam-se nos dedos os que vão à raiz do problema. A verdade nua e crua é que dispensada da obrigatoriedade de legitimação pelo povo a cada nova alteração significativa, como é imperativo que aconteça nas democracias, a lei no Brasil está reduzida à condição de arma com que a privilegiatura assalta a Nação. O paroxismo da subversão. A tentativa do momento, aliás, é de criar mais uma para determinar, entre outras aberrações, que se alguma das “excelências” for flagrada roubando-nos também por fora da lei, os roubados é que passarão a pagar pela defesa do ladrão.

Com que amplitude a Nação vem sendo assaltada com o recurso a leis sem nenhum resquício de legitimidade é algo de que nos presta contas eloquentes o orçamento federal: do 1 trilhão e 480 bilhões de reais que a União nos arranca todo ano em impostos sobram apenas 19 bi para investir no Brasil. Todo o resto vai para pagar os salários, as aposentadorias e as mordomias da opulenta corte do funcionalismo federal que conta pouco mais de dois milhões de indivíduos e os caronas da privilegiatura que ela coopta para não ser incomodada.

É impossível que o Brasil funcione orientado para a justiça enquanto o problema da ilegitimidade das nossas leis não for encarado de frente. A solução passa obrigatoriamente pela arrumação da questão da representação. É preciso criar, primeiro, um modelo de eleição que permita saber exatamente “quem representa quem” (voto distrital puro) e, em seguida, determinar com que instrumentos devem contar os representados para fazer respeitar sua vontade pelos seus representantes (recall, referendo, inciativa, controle das carreiras jurídicas). Só então teremos entrado no território da democracia no interior do qual aloja-se o território da justiça. Não dá para chegar ao segundo sem passar pelo primeiro.
Fernão Lara Mesquita

Brasil escandalizado


Bordunas e Bolsonaro

Ao discursar nesta terça-feira na Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro pode até fazer promessas sobre proteção da Amazônia. Mas, mesmo se isso ocorrer, o caminho será longo para começar a recuperar a credibilidade. A forte percepção internacional sobre ele é de ser um dos chefes de Estado mais perigosos do planeta na área ambiental.

Além disso, o governo Bolsonaro corre o risco de novas reações globais e de colisão com compromissos assumidos na cena internacional, agora envolvendo direitos dos povos indígenas.

O governo anunciou que pretende concluir até o fim do mês uma proposta para regulamentar a exploração mineral em terras indígenas. Quer estabelecer meios de consultas dos povos indígenas e compensação pelo uso das terras. Só que, como adverte um importante observador na Europa, pode ser politicamente mais sensível na cena internacional mexer com grupos indígenas do que a queima de florestas.

Um representante de Brasília reconhece que consultas sobre exploração econômica de terras indígenas não é simples num país com mais de 600 áreas, 300 povos e 247 línguas indígenas. Há diferentes entendimentos, com forte potencial de conflito, do que se deve consultar, quando, se é só uma vez e do que deve resultar esse exercício.

Para o governo, a consulta é basicamente informar em boa-fé aos grupos indígenas sobre os projetos para exploração da terra, ou seja, a interpretação minimalista. Já para povos indígenas e organizações da sociedade civil, os índios precisam dar o consentimento, o que, por essa interpretação, conferiria a eles o poder de veto.

A Constituição brasileira diz que a riqueza mineral no solo é propriedade da União. E um dispositivo constitucional, porém não regulamentado até hoje, prevê que grupos indígenas podem se beneficiar do resultado da exploração econômica de suas terras.


O governo Bolsonaro pode estar em rota de colisão com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a Convenção 169 que trata dos direitos dos povos indígenas, um texto altamente sensível ainda mais nos tempos atuais. Dependerá da maneira como Brasília vai fazer a regulamentação. Partes afetadas podem considerar que o texto não corresponde ao que está previsto na convenção, e reagir logo na cena internacional.

A convenção prevê que os países que a ratificaram reconhecem o direito à terra. Mas não é prescritiva sobre a forma como esse direito vai ser reconhecido e como a terra pode ser explorada.

A convenção 169 tem dois artigos essenciais nessa discussão. O artigo 6 estabelece que as consultas com os grupos indígenas precisam ser feitas em boa fé com o objetivo de se alcançar um consentimento sobre empreendimentos, investimentos, impacto ambiental etc.

Só que o próprio sistema de normas da OIT diz que alcançar um consenso é parte do processo de consultas, mas não é uma necessidade. Ao mesmo tempo, outro artigo menciona casos necessários de deslocar populações indígenas ou tribais. E para esse artigo, aí sim, tem que haver consentimento dos afetados. Porém, o mesmo artigo prevê uma série de alternativas que permitiriam, mesmo na ausência de consentimento, executar a relocalização dos indígenas para permitir a exploração de suas terras.

Uma Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, é que trata de consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas sobre a exploração econômica de suas terras. A diferença é que, ao contrário da Convenção 169 da OIT, essa declaração não é vinculante, ou seja, não tem caráter obrigatório. Mas seu peso político é inegável.

Existe um grupo de trabalho em Brasília estudando formas de implementar a Convenção 169, que só tem 23 países-membros, sendo 15 da América Latina. Na Europa, um deles é Luxemburgo, mais conhecido por ter segredo bancário do que por possuir grupos indígenas.

O governo Bolsonaro já avisou na OIT que forçar a interpretação de que consulta é igual a consentimento dos povos consultados levaria países que ratificaram a convenção a se perguntar sobre sua permanência no mecanismo. Pela convenção, só a cada dez anos é que um país pode anunciar eventual saída do compromisso. A janela aberta para o Brasil nesse caso seria 2021. Depois o país teria um ano para sair definitivamente.

Em todo caso, mesmo se continuar na Convenção 169, o Brasil dificilmente deixará de ser denunciado por suspeita de atropelar eventuais compromissos assumidos para defesa dos direitos indígenas, nas reuniões anuais de peritos da OIT.

A pressão deve prosseguir também no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Por meio, por exemplo, do chamado diálogo interativo com os relatores independentes sobre direitos dos povos indígenas. Um Mecanismo de Peritos sobre Direitos dos Povos Indígenas (Emrip) já foi acionado por organizações da sociedade civil brasileira pedindo assistência técnica para proteção de direitos de povos indígenas. O governo está em conversas com o mecanismo, mas dificilmente aceitará cooperação da ONU.

Recentemente, Jair Bolsonaro disse que, até agora, não tomou nenhuma medida excepcional durante seu mandato. “Se eu levantar a borduna [arma indígena], todo mundo vai atrás de mim”, afirmou.

A questão é se o governo Bolsonaro vai refrear conflitos, para evitar mais bordunas do exterior sobre o Brasil. Para alguns observadores, politicamente, o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia poderia refrear um pouco uma agenda vista de fora como carregada de nuvens negras sobre o país. Até para evitar o quadro atual já de dificuldades reais para a ratificação do acordo comercial pela Europa.

A evidência é que, depois da crise internacional provocada pelas queimadas na Amazônia, sair da Convenção 169 da OIT, por um país com terras indígenas cobrindo 12,5% do território, numa área maior que Alemanha, França, Bélgica e Luxemburgo combinados, é muito arriscado e pode custar bem caro ao setor privado brasileiro.

Num cenário em que o chefe indígena Raoni, da tribo kayapó, foi apresentado como candidato ao Prêmio Nobel da Paz de 2020, eventuais novas campanhas de que o Brasil não respeita os direitos dos indígenas e de que o produto brasileiro não é sustentável tendem a elevar os sinais de alarme no agronegócio nacional.

Sinais de alerta se propagam. Basta ver as reações sobre a Amazônia num país como a Suécia. O importante jornal “Dagens Nyheter” publicou em manchete a questão de boicote contra produtos brasileiros. O presidente da cadeia de supermercados ecológicos Paradiset, Johannes Cullberg, disse que o boicote já começou, no caso dele.

Maneiras de morrer

Uma recente pesquisa internacional classificou o Brasil em 64º lugar, num universo de 67 países, quanto ao grau de adequação para um estrangeiro viver. Mais um pouco e nem estaríamos entre os países considerados. A enquete se refere a 2018 e foi feita com 14.272 expatriados de 174 nacionalidades, a maioria funcionários de multinacionais e seus familiares. O Brasil recebeu notas vergonhosas em saúde, educação, transportes, segurança pública, estabilidade política e criminalidade.


Uma pesquisa idêntica, apenas entre brasileiros residentes no país, não resultaria muito diferente. No fator criminalidade, por exemplo, os números podem dizer que, entre homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais fatais, o número de mortes violentas intencionais caiu de 64.021 em 2017 para 57.431 em 2018 --mas que país se orgulharia desses números? E as provocadas por intervenção policial subiram de 5,1 mil para 6,1 mil. Você dirá que, não sendo nem policial, nem bandido, essa estatística não o afeta. Só se esquece de que, pela frequência com que os confrontos ocorrem, há sempre a possibilidade de se estar no meio deles.

No Brasil, uma mulher é agredida a cada quatro minutos. As notificações cresceram de 139 mil em 2017 para 145 mil em 2018 e se referem apenas às mulheres que sobreviveram. Entre essas, houve 66 mil casos de violência sexual --180 casos por dia--, dos quais 54% cometidos contra menores de 13 anos. E como saber quantas não notificaram?

No Brasil, morre-se aos 8 anos com um tiro nas costas. Morre-se nas ruas escuras, nas chacinas urbanas, no genocídio rural, nas contendas por terras, por execução, racismo, homofobia e uma miríade de motivos. Em vez de tomar providências para que se morra menos, nossos governantes propõem matar mais.

Mas o brasileiro não tem, como eles, essa curiosa fixação por homens armados e de farda.
Ruy Castro

Futuro não vai esquecer

 As pessoas estão sofrendo, morrendo, sistemas entrando em colapso. É o começo de uma extinção em massa e tudo o que vocês fazem é falar de dinheiro e contos de fada sobre um eterno crescimento econômico. Como se atrevem?

Vocês estão nos decepcionando. Mas os jovens estão vendo a sua traição. Os olhos das futuras gerações estão sobre vocês. Se decidirem nos decepcionar, eu garanto que nós nunca vamos perdoar 
Greta Thunberg

Governo expõe dano ambiental que negligenciou

Às vésperas do discurso de Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o Ministério da Defesa divulgou contabilidade do primeiro mês da ação militar contra as queimadas e os crimes ambientais na Amazônia. Os dados foram colecionados para demonstrar no estrangeiro que a floresta não é Casa da Mãe Joana. Entretanto, serviram sobretudo para realçar o estrago ambiental que o governo negligenciou.

Com a retaguarda das Forças Armadas, os fiscais ambientais aplicaram 112 multas. Juntas, somam R$ 36,37 milhões. Verba a ser recolhida —se o Estado conseguir cobrar— aos cofres do Tesouro Nacional. Foram retiradas de circulação 63 pessoas. Não há entre os presos representantes de ONGs. Apreenderam-se 28 veículos. Quatro madeireiras tiveram as portas fechadas. Retiveram-se 20 mil metros cúbicos de maneira extraída ilegalmente.

Por terra, foram combatidos neste primeiro mês 571 focos de incêndio na floresta. Pelo ar, com uso de aviões, 321 focos. Estão envolvidos na operação 8.170 agentes públicos —entre militares e integrantes de órgãos federais, estaduais e municipais.

Iniciado em 23 de agosto, o esforço terminaria nesta terça-feira. Mas Bolsonaro prorrogou até 24 de outubro a operação de Garantia da Lei e da Ordem que decretara há um mês. Fez por pressão o que não fizera por opção. Desde que assumiu, em janeiro, o novo governo esmerava-se em desmontar o aparato fiscalizatório do Estado.

Dois Brasis na ONU

A ausência de representação oficial do Brasil na Cúpula do Clima, às vésperas da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), quando todos os países sofrem as consequências das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global, seria uma coisa inimaginável se não estivéssemos vivendo um momento surreal na política externa brasileira, principalmente no quesito sustentabilidade. Mas aconteceu, por decisão do presidente Jair Bolsonaro, na contramão do que pensam os cientistas e a maioria dos chefes de Estado dos países com que nos relacionamos. Até Donald Trump, que lidera a reação anti-ambientalista no mundo, foi de surpresa à cúpula para ouvir a primeira-ministra alemã Angela Merkel.

Enquanto o secretário-geral da ONU, António Guterres, aposta numa atitude positiva em relação aos problemas climáticos (“Estamos perdendo a corrida da emergência climática, mas ainda podemos vencê-la”), o governo brasileiro se refugia numa posição supostamente patriótica. Não leva em conta o futuro para as novas gerações, indiferente a atitudes que pautam a opinião pública mundial, como a da jovem ativista sueca Greta Thunberg, para quem seus sonhos e infância foram roubados com “palavras vazias”. Jovens do mundo inteiro hoje veem o Brasil como um grande vilão da questão ambiental.

Entretanto, as vozes de outra face do Brasil ecoam na Cúpula do Clima. Além dos chamados “povos da floresta”, com o cacique Raoni à frente, nossos cientistas também pedem socorro ao mundo. Segundo Carlos Nobre, um dos especialistas em florestas mais respeitados do mundo, não combater o desmatamento será um suicídio coletivo. Para o cientista, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade Federal de São Paulo, já há indícios de que o processo de savanização começou em mais da metade da Amazônia brasileira.

Na Cúpula do Clima, o presidente da França, Emmanuel Macron, citou o Brasil como um risco e lamentou a ausência de representantes brasileiros no encontro. Anunciou a liberação de cerca de US$ 500 milhões em ajuda financeira para proteção de florestas tropicais, inclusive a Amazônia. Há, na região, nove países, que cooperam e concorrem entre si, e buscam esses recursos; o Brasil, que seria o desaguadouro natural de parte considerável desse aporte financeiro, foi para o fim da fila. O discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU, nesse contexto, será uma espécie de Rubicão. A partir de seu posicionamento, o lugar do Brasil no concerto das nações será redefinido.

Bolsonaro já sabe que está numa faixa de risco, sua defesa da soberania nacional, velha retórica dos militares em relação à Amazônia brasileira, é uma narrativa que serve ao público interno, mas não é levada a sério pelos parceiros internacionais. Mais de 230 fundos de investimento cobram medidas do governo em defesa da Amazônia, contra o desmatamento e as queimadas. Esses fundos administram mais de R$ 65 trilhões. Os indicadores da economia já apontam uma queda brutal nos investimentos, em parte por causa das nossas incertezas políticas e do posicionamento do governo em relação à questão ambiental. Confirmam-se as advertências de que os erros de conceito na questão ambiental têm consequências danosas dramáticas.

Pensamento do Dia


Hoje o céu está tão lindo!

Exatamente às 4h50 desta segunda-feira, 23 de setembro de 2019, iniciou-se a Primavera. Não sei o que isso quer dizer para quem está lendo o texto agora. Talvez seja a simples passagem do tempo para uns. Uma época mais poética para outros. Mas eu gosto da conotação dos esotéricos, que veem a entrada da estação como o início das renovações espirituais e das energias.

É importante falar da Primavera neste momento em que o mundo parece estar ficando mais triste. Não sei se faço essa afirmação movido por esse clima baixo astral que vem da política e da economia, ou ainda das frustrações com as mazelas sociais. Mas o fato é que tenho mesmo a sensação de que as pessoas, todos nós, estamos nos desencantando.


Não tenho em mãos uma pesquisa que comprove o que digo: concluo pelo que vejo no dia a dia que aumentou o número de pessoas que estão se queixando de estresse, preocupação e mágoa. É comum ouvir a indagação: o que está acontecendo com o mundo? Parece que há mais obstáculos para se viver, ninguém está se entendendo, a impaciência e a intolerância dominam as relações. E isso provoca amargura, raiva, infelicidade.

Daí por que é importante, sim, pensar a Primavera como uma época de transformações. Em termos da natureza, nem se discute. É visível que o clima e as plantas mudam. Mas a proposta mística é de que a gente pense que a mudança da natureza implique o mesmo, simultaneamente, dentro de nós. No sentido de mudança de atitudes, de um novo ciclo, possibilitando algumas renovações.

É uma época que tem a ver, inclusive, com o Vento. Ele chega para afastar as nuvens do inverno que acaba de ficar para trás. Se deixarmos que o vento carregue certas coisas, ficamos naturalmente mais leve. O que segue é coisa que se expande, que vai além do aqui e agora.

É claro que os problemas econômicos estão desgastando nossas conquistas; o alto índice de desemprego vem mexendo com a autoestima das pessoas; somos provocados a todo instante com manifestações preconceituosas e agressivas. Em nível mundial, há muita incerteza e medo. Por essas e outras, as depressões e o suicídio viraram epidemia. De tal forma que foi necessário se institucionalizar o Mês Amarelo. Que se acaba dentro de mais uma semana.

Ou a gente pensa na vida fazendo a Pollyanna, com mais leveza, ou se entrega à morbidez. Então, dá licença. Já que a Primavera também é a Estação da Luz, uma vez que a luz do sol se expõe com mais força, por que não permitir que essa luz ilumine novos acontecimentos em nossas vidas, que ela melhore nosso humor, nos deixe mais simples?

Não é papo de autoajuda: o Sol, no seu caminhar, nos traz aprendizagens. Mas é preciso que eu, que você, que todos nós saibamos nos dispor. Que eu me permita sentir esse clima mais ameno. Hoje o céu está tão lindo, diz música de Tim Maia: que todos sintam o desejo de se integrar à natureza e aos outros. Para fazermos trocas. Para tentarmos novos inícios.

Cícero Belmar

Quem dá o aval

Não acho aceitável que ninguém morra — quem mora, trabalha ou transita por ali (na comunidade). Mas a sociedade banalizou e aceita. Nesses espaços, a sociedade autoriza que haja violência, que o Estado não atue
Ubiratan Ângelo, ex-comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro e coordenador de segurança pública da ONG Viva Rio

Quem matou Ágatha? E quem autorizou matar?

O que foi inventado, inventado está. Se foi testado e comprovou-se que funciona, copie. Pode não sair barato, mas é o que recomenda o bom senso. O mundo, por exemplo, está cheio de exemplos de inciativas bem-sucedidas de combate ao crime organizado.

Nenhuma delas tem a ver com a licença dada pelo governador do Rio de Janeiro para que a polícia mate à vontade. E não é só porque isso fere os direitos humanos e até mesmo bandidos têm direito à vida. É porque inocentes acabam sendo mortos.

Ainda não se sabe quantos foram mortos desde que a Polícia Militar do Rio foi autorizada a atirar para matar, explicando-se depois. Mas de janeiro até ontem, segundo o aplicativo Fogo Cruzado, 16 crianças foram feridas e pelo menos seis morreram.

A menina Ágatha, de 8 anos de idade, estava no colo da mãe dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão quando foi morta por um tiro de fuzil. O governador calou-se nas 36 horas seguintes. Depois disse que tudo será apurado com rigor.


Wilson Witzel age como prometeu antes de ser eleito. Depois de eleito, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, renovou sua disposição para matar bandidos. É um assassino confesso de bandidos e de inocentes, esses tratados como “danos colaterais”.

Um trecho de sua entrevista ao jornal:

"Não há consenso sobre a interpretação de que basta o bandido estar de fuzil, sem mirar em alguém, para que se configure ato em legítima defesa.

Se estiver mirando em alguém, tem de receber tiro na cabeça na hora.

Se não há agressão, é legítima defesa sem dúvida?

Também tem de morrer. Está de fuzil? Tem de ser abatido.

Se o senhor dá essa autorização expressa e o policial depois é processado, a responsabilidade não cai no seu colo?

Não vai cair no meu colo nada. Vai cair no colo do Estado. O Estado tem de entender que tipo de segurança pública quer.

O senhor falou em colocar “snipers” em helicópteros. Os moradores das favelas ficam em pânico nessas operações.

E os cinco bandidos de fuzil atirando para tudo quanto é lado não contam, não? A errada é a polícia?

Da polícia o cidadão espera a conduta correta; do bandido, não…

O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro.

Se matar bandido reduzisse a violência, o Rio seria um paraíso…

Então não está matando, não é? Está deixando de matar."

O que fazer para parar esse governador ensandecido? Inocentes sempre morreram em meio à guerra contra bandidos, mas nunca um governador estimulou a matança. Nunca autorizou policiais a atirarem de helicópteros em comunidades indefesas.

Se você admite que a guerra contra bandidos deva ser travada a qualquer custo e por quaisquer meios – danem-se as leis – , então reze para não ser atingido por uma bala perdida, e para que nenhuma bala perdida atinja quem você ama.

O isolamento de Bolsonaro

Qual é o plano de Jair Bolsonaro para a Amazônia ou o meio ambiente? Se existe, ninguém sabe, ninguém viu nessas 37 semanas de governo. Até agora, se limitou ao vitimismo, muito conveniente a quem atola mas não quer se responsabilizar pela própria inépcia.

Hoje, na ONU, ele vai constatar a dimensão do seu isolamento, inédito para um chefe de Estado brasileiro. Pode tentar revertê-lo, mas isso, exige competência — mercadoria rarefeita na atmosfera do Palácio do Planalto, onde só florescem intrigas, perfídias e anacronismo.



O presidente começa a descobrir o custo da opção pelo papel de vilão ambiental. Foi Bolsonaro quem se apresentou como alvo no centro de uma renovada forma de ação política global, o ativismo climático.

A obsessão com uma conspiração internacional contra a soberania brasileira na Amazônia diz mais sobre o deserto de ideias do governo do que a respeito dos objetivos de países, ONGs e empresas na região.

A tática de criação de inimigos com interesses ocultos sobre o território amazônico é datada do período da Guerra Fria. Ocupou alguns na Escola do Comando e Estado-Maior do Exército na formatação dos novos subversivos (ambientalistas, índios e estrangeiros) na Rio-92, a primeira conferência mundial sobre meio ambiente.

O Brasil da época importava alimentos, hoje é o terceiro maior exportador. Bolsonaro revigorou o anacronismo. Extirpou a palavra “clima” do Itamaraty, desmontou políticas ambiental, fundiária, indigenista e acabou com o Fundo Amazônia. Também desdenhou da diplomacia com Europa, China e Rússia, optando por ficar refém da Casa Branca de Donald Trump.

O tempo passou e ele não viu. O novo ativismo climático levou 230 fundos de investimentos a perceber nesse negacionismo riscos de reputação, operacionais e regulatórios. Na sequência, 130 bancos — Bradesco e Itaú incluídos— anunciaram pressão conjunta para ação rápida contra “o catastrófico aquecimento global”. E governadores de nove estados que perderam o Fundo Amazônia iniciaram negociações diretas com quem quiser investir na região. O custo Bolsonaro ficou alto demais. Para todos.
José Casado

O grito de uma geração

“Nossa casa está em chamas. Eu quero que vocês entrem em pânico.” Quando Greta Thunberg diz frases como essas aos adultos, ela está anunciando a maior inflexão histórica já produzida por uma geração. Pela primeira vez na trajetória humana os filhotes estão cuidando do mundo que os espécimes adultos destruíram – e seguem destruindo. Esta é uma inversão no funcionamento não só da nossa, mas de qualquer espécie. A mudança responde a uma enormidade. A emergência climática é a maior ameaça já vivida pela humanidade em toda a sua história. Quando ouvimos o grito de Greta e dos milhões de jovens inspirados por ela, um grito que ressoa em diferentes línguas e geografias, é esta a ordem de grandeza do que testemunhamos. Escutar é imperativo.

Em poucos meses, Greta tornou-se uma das pessoas mais influentes do planeta. Tinha 15 anos quando deixou de comparecer às aulas e se sentou diante do parlamento sueco, em agosto de 2018: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. De que adianta ir à escola se não vai ter amanhã? A pergunta, que para muitos soava insolente, era justa. Mais do que justa, expressava uma lucidez que a sociedade não esperava de crianças e adolescentes. Logo, Greta não estava mais só.

O movimento Fridays for Future passou a levar toda semana dezenas de milhares de estudantes às ruas, numa greve escolar pelo clima. Em março de 2019, a primeira greve global levou 1,5 milhão de adolescentes às ruas do mundo. Em 20 de setembro, mais de quatro milhões deixaram as escolas para gritar pela emergência climática, em uma das maiores manifestações globais da história. Hoje há milhões de Gretas, da Amazônia a Austrália, da Sibéria a Nova York.

De repente, crianças e adolescentes perceberam que seu mundo era governado por adultos como Donald Trump (e Recep Erdogan, Viktor Orbán, Rodrigo Duterte...). Para piorar o cenário global, o Brasil, país que abriga 60% da Amazônia, floresta estratégica para a regulação do clima do planeta, passou a ser comandado pelo populista de extrema direita Jair Bolsonaro, um homem que defende que o aquecimento global é um “complô marxista”.

Se estes são os adultos na sala de comando do mundo em que você vive e vai viver, e se você é mentalmente saudável, basta uma inteligência média para entrar em pânico de imediato. Então você olha para dentro da sua casa, esta feita de paredes, e percebe que seus pais estão ocupados com urgências mais comezinhas, como pagar as contas do mês, ou tentando concluir se o celular mais avançado é da Apple ou da Samsung.

Sydney (Austrália)
Crianças e adolescentes da Geração Greta perceberam o óbvio. A casa está queimando – a Amazônia em chamas no mês de agosto levou essa imagem à literalidade – e seus pais e governantes tocam a vida como se nada estivesse acontecendo. Ao contrário, no momento em que o planeta mais precisa de políticas públicas e de alianças globais pelo clima, os adultos se mostram estúpidos o suficiente para eleger representantes do nacionalismo mais abjeto, que negam o superaquecimento global em nome de interesses imediatos.

Ao constatar que os adultos abdicaram de ser adultos, adolescentes como Greta assumiram a tarefa de tomar conta do mundo. É isso que Greta afirmou na Cúpula do Clima na Polônia, em dezembro: “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”. Ao mesmo tempo, as jovens lideranças climáticas são espertas o suficiente para compreender que não basta voluntarismo, é preciso ocupar espaço político e travar o debate com os adultos que detêm o poder de fazer as políticas públicas. Esta também é outra novidade da geração climática: são crianças e são adolescentes, mas não são ingênuos.

A cada intervenção pública, Greta Thunberg tem demonstrado a lucidez que – por oportunismo, mais do que por incompetência – tem faltado no mundo dos adultos. Como ao afirmar à seleta plateia bilionária do Fórum Econômico de Davos, em janeiro: “Algumas pessoas, algumas empresas, alguns tomadores de decisão em particular, sabem exatamente que valores inestimáveis têm sacrificado para continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. E eu acho que muitos de vocês aqui hoje pertencem a esse grupo de pessoas”.

É fascinante tentar compreender quais serão os efeitos dessa inversão radical no que é ser adulto e no que é ser uma criança. Não uma inversão evolutiva, que levou séculos ou milênios para ser consumada, mas um corte brutal. A geração imediatamente anterior a de Greta é justamente a geração mais consumista e mimada dos países ricos ou da parcela rica dos países pobres. Aqueles que hoje estão na faixa dos 30 e poucos anos, 40 anos são aqueles criados no imperativo do consumo e da satisfação imediata, muitos se recusam a se tornar adultos porque isso significa aceitar limites. Formados na lógica capitalista de que liberdade é poder tudo, que se dar todos os prazeres é seu direito básico, acreditam que o planeta cabe no seu umbigo.

E então adolescentes de tranças enfiam o dedo na sua cara e dizem: “Cresça!”. Estes adolescentes de cara redonda, alguns com espinhas, condenam o grande objeto de consumo do século 20, o carro, e também o avião. Eles pedalam e usam transporte público. Condenam a indústria dos combustíveis fósseis, e as corporações colocam seus lobistas a disseminar notícias falsas contra eles. Condenam o consumo de carne e não só a indústria, mas também a constelação de chefs estrelados se sente em risco. Dizem que é melhor não comprar roupas e outros objetos, mas sim trocar e reciclar, e colocam a indústria da moda em xeque. E fazem isso rápido, porque a velocidade também mudou.

A Geração Greta propõe ainda uma mudança radical na experiência do tempo. Por um lado, não há mais tempo. Segundo os cientistas, há pouco mais de uma década para tomar as medidas capazes de conter o superaquecimento global e manter o aumento da temperatura no limite de 1,5 graus Celsius. Se este limite for superado, maravilhas como os corais desaparecerão do planeta e milhões serão condenados à miséria e à fome – para além do contingente que já sofre privações extremas.

O que está em jogo hoje é se a Terra será muito em breve um planeta ruim ou francamente hostil para a espécie humana. Os jovens ativistas climáticos sabem que há enorme diferença entre o ruim e o hostil. Mas, como convencer os adultos e os tomadores de decisão, se eles parecem vivem como se não houvesse amanhã e, por assim viverem, talvez não exista mesmo amanhã? Como convencer aqueles que esgotam os recursos em nome do gozo imediato que o amanhã está logo ali e será ruim para todos, ainda que muito pior para os que menos contribuíram para o esgotamento do planeta?

A Geração Greta propõe responder à emergência climática com uma vivência diferente do tempo e do espaço. “Fiquem no chão”, é o que dizem aos adultos, ao afirmarem que o uso dos aviões deve ser restrito a urgências reais. Para dar o exemplo, Greta viajou num barco à vela da Europa aos Estados Unidos, para participar da Cúpula da ONU. Outras lideranças europeias da juventude climática, como as belgas Anuna de Wever e Adélaïde Charlier, acompanhadas por duas dezenas de jovens ativistas, iniciarão no início de outubro uma travessia que durará semanas, velejando rumo ao Chile, para participar da Cúpula do Clima.

A imagem é forte. Em vez de colonizar a América Latina com essa versão contemporânea das caravelas, as adolescentes defendem com seu gesto a descolonização da Europa (e dos Estados Unidos) e das mentes que vivem para consumir também o tempo. Entre um país e outro, já não pode mais ser um pulo. Há que se viver a jornada e compreender a distância com o corpo. Há que se produzir localmente e consumir localmente. Sem venenos nem transgênicos. O supérfluo não é mais o necessário, como a publicidade infiltrou nas mentes nas últimas décadas. Não é uma escolha, apontam. O tempo das escolhas entre o bom e o melhor acabou. É isso ou a catástrofe será ainda maior.

Basta que cada um olhe para sua própria rotina, neste exato momento, para compreender o tamanho da ferida narcísica que a Geração Greta está abrindo no corpo de seus pais e irmão mais velhos. A reação truculenta, que se verifica tanto à extrema direita como à extrema esquerda contra as ativistas adolescentes, com um número crescente de ataques e de disseminação de Fake News, era previsível. O grito desta geração atinge os interesses de poderosas corporações transnacionais e demanda mudanças de hábitos a pessoas que sempre se consideraram em dia com a pauta ambiental, achando que bastava reciclar seu lixo para ser uma “pessoa do bem”.

Adultos costumam dizer às garotas do clima: “Vocês me dão esperança”. E Greta e outras líderes respondem: “Não quero sua esperança. Eu não tenho esperança. Quero seu pânico, quero que você sinta o medo que eu sinto todos os dias”. Não é força de expressão. Bem informadas, elas sabem que, com os governantes que aí estão, a contagem regressiva está contra a humanidade e contra todas as espécies que o modo de vida capitalista arrasta em sua lógica de consumo. É provável que o planeta aqueça a 3, 4 e até 5 graus.

A não ser que a população global faça um levante. O que também testemunhamos é a mais vital adaptação humana à emergência climática: uma geração que prescinde da esperança exatamente para ser capaz de romper a paralisia e lutar. Abrir mão da esperança, mas não da alegria de lutar junt@s, é a potência da Geração Greta.

A novíssima geração de ativistas do clima reflete o momento histórico e antecipa o futuro. Há meninos, claro. Mas basta olhar para os movimentos para perceber que as principais líderes são mulheres. Ainda que o rosto de boneca de souvenir de Greta seja a face desta geração, em cada país há líderes com discurso inspirador e atuação forte. Além do protagonismo feminino, cada uma destas mulheres carrega para a luta particularidades importantes. Greta anuncia sua condição de Asperger. Não como uma doença, bem entendido. Mas como uma diferença, um “superpoder” cujo foco e capacidade de concentração têm sido determinantes para a luta climática. A belga Anuna de Wever declara-se “fluida de gênero”. E defende que essa condição lhe permite buscar outras maneiras de ser e de estar este mundo, sem agarrar-se aos dogmas impostos por aquilo que se costuma chamar de “normalidade”. Essas líderes levam à luta pelo planeta a possibilidade de enxergar as diferenças como uma força, um ativo positivo diante dos desafios da emergência climática.

Neste mundo de muros, arames farpados e fronteiras armadas, a insubordinação maior da mensagem desta geração é o apelo para que sejamos capazes de fazer uma comunidade global e lutarmos pela nossa casa comum. É a sua recusa de se dobrar à ordem de Trump, Bolsonaro e outros déspotas eleitos. O melhor que podemos fazer, nós, adultos imperfeitos e aquém dos desafios deste momento histórico, é nos colocarmos radicalmente ao seu lado.
Eliane Brum