sexta-feira, 6 de março de 2020

Quem mandou nascer pobre no Brasil?

Pobre é uma desgraça. Mora em área de risco para curtir a vista e a natureza, adora fazer cocô e xixi nos rios e no mato, joga lixo e sofá nas encostas e córregos, provoca enchentes e entope bueiros. Pobre causa desmatamento na Amazônia e é o maior inimigo do meio ambiente. Pobre não sabe poupar e, quando aparece um dinheirinho e o dólar favorece, desperdiça com excursão à Disney.

Quem mandou nascer pobre no Brasil? Ainda por cima, pobre sobrecarrega o SUS. É um escândalo. Pobre adoece com frequência, não se cuida e morre até na fila ou no corredor de hospitais, expondo prefeitos, governadores e presidente. Pobre empurra pobre para poder entrar em trem e ônibus superlotados e ir trabalhar. Cadê as boas maneiras em transporte tão inseguro e sucateado?


Estão falando aí de Orçamento impositivo. Com O maiúsculo. Ando mais preocupada com a Pobreza impositiva. Essa miséria que invade nossas casas pela televisão e nos deixa culpados por morar em casas secas, por dar descarga em nossos vasos sanitários e beber água mineral, quando 35 milhões de brasileiros não têm água tratada e 100 milhões não têm coleta de esgoto. Repetindo: metade da população brasileira não tem esgoto.

Pobre tem mania de se apegar à pobreza no Brasil. Tirando craque de futebol, youtuber, funkeiro e algumas exceções só creditadas a uma garra monumental para estudar e a um talento individual excepcional, a carência passa de geração a geração. Muito difícil melhorar de vida se não nascer já numa família de posses.

O Forum Econômico Mundial mostrou que, no ranking de mobilidade social, estamos em 60º lugar entre 82 economias, piorando a cada ano desde 2015. O Brasil só é campeão na desigualdade: nenhuma outra democracia concentra mais renda no 1% mais rico. O pobre deve ter culpa aí também. Por que são eles tantos?

O povo não é bobo. Pobre não sai em manifestações de idolatria a políticos. Às vezes o pobre consegue protestar, como o que jogou lama ao vivo no prefeito bispo Marcelo Crivella. Não jogou ovo nem tomate porque sua geladeira foi destruída. E a casa, submersa pela incompetência de um prefeito que tira dinheiro da prevenção de enxurradas e fecha os olhos a moradias irregulares patrocinadas pela milícia.

Da boca de Crivella, também jorrou lama. Naquele cenário desolador, de mortes, choros e desesperança, Crivella não assumiu sua responsabilidade na coleta ineficiente, sua omissão criminosa apesar de aumentar abusivamente o IPTU. Acusou o pobre. Aquele que perde tudo e vê a vida e os móveis boiando em casa, como num conto de realismo fantástico. O prefeito pediu desculpas depois. Isso já está manjado. O pós-discurso dos governantes é o mesmo. As aspas são sempre “deturpadas pela imprensa”.

Crivella se queixa de sofrer “pré-conceito” por ser “um bispo evangélico”. No culto da igreja, ele prega o Evangelho, “mas aqui na prefeitura não”. Mentira, prefeito. Nas reuniões de trabalho internas, o senhor vive usando citações bíblicas. É Isaías versículo tal e tal. Distribui as bíblias do tio, Edir Macedo, nas salas dos assessores. E canta, no trabalho, músicas sobre o Senhor. Reserve um pouco de amor e compaixão para o pobre.

Como o Rio de Janeiro sofre uma “tempestade perfeita”, ainda temos o Witzel prometendo um manual de comportamento para evitar mortes por balas perdidas em favelas. Manual para morador, bem entendido. Pobre cisma de sair de casa bem na hora em que a polícia está atirando a esmo contra suspeitos. Quem mandou nascer pobre, sem acesso a educação, saúde, moradia, saneamento e segurança? 

(Nova) Paisagem brasileira


No circo

No picadeiro armado no portão do Alvorada surge um palhaço animadíssimo, de terno escuro e faixa presidencial, que salta de um carro oficial carregando uma penca de bananas que aguarda o momento de serem atiradas nos apaixonados pelo mito e nos jornalistas que não tinham se dado conta, ainda, que aquele cercadinho era na verdade um picadeiro.


Sinceramente, os jornalistas ali presentes levaram muito tempo para identificar, com seu nome verdadeiro, o cercadinho como picadeiro... Vamos relevar essa lentidão. Afinal eles não foram até ali por livre vontade, foi a pauta que seus chefes lhes passaram. A ideia central era fazer perguntas ao Presidente da República e anotar as respostas do chefe da Nação. Do verdadeiro ou do palhaço travestido de presidente? Dos dois, já que ambos são palhaços, ambos adoram dar bananas, ambos sonham com as gargalhadas dos adoradores do mito.

E qual é a missão do palhaço? Fazer rir ou fazer chorar? Na verdade, acho que ninguém sabe. No circo muitas vezes o palhaço não consegue fazer rir. No palco da ópera, às vezes faz chorar, mas no picadeiro do Alvorada, não faz nem rir, nem chorar. O que o palhaço que carrega as bananas faz é alertar o reduzido número de presentes sobre quem é o verdadeiro palhaço!
As bananas que o palhaço carrega têm uma perfeita utilidade: matam a fome de quem às vezes está em jejum e confirmam a semelhança entre o mito e o humorista. O mito só ri. Está feliz, nada lhe é mais agradável do que fazer rir e exibir aquele seu sorrisinho tão encaixadinho que seus amantes ficam até um pouco em dúvida: ele estará sorrindo ou assustado, temeroso do que estará por vir? Será que é isso?

Talvez seja. Por via da duvidas, o melhor é levar um alter ego para poder depois dizer que não foi ele, foi o palhaço que deu bananas para a plateia do circo...

Até quando se aguenta?

A imprensa se pergunta até quando o governo de Jair Bolsonaro vai durar. Eu, modestamente, pergunto-me até quando vou durar com o governo de Jair Bolsonaro
Diogo Mainardi 

Carnaval no governo, cinzas na economia

Era um daqueles dias de pânico nos mercados financeiros, quando muita gente não sabe bem o que está fazendo nem para onde o vento sopra. O ministro da Economia deu mais unstiros nesse desconcerto.

Para quê? O tempo está fechando. Já há paniquito entre os negociantes de dinheiro grosso, "o mercado", mas também questões reais na praça, além dos lobbies de costume.

Nesta quinta-feira, o pessoal da finança pediu ao Banco Central que atenue a corrida do dólar. Foi também dia de pregar que o BC não reduza a taxa básica de juros daqui a duas semanas.


O mercado já jogou a "sua" taxa básica de curto prazo no chão, mas argumenta que nova queda da Selic vai colaborar para alta adicional do dólar e alimentar riscos de inflação, com o que os juros de prazo mais longo já sobem. Na terça-feira, o Banco Central sugeriu que tal coisa não tende a acontecer.

Caso fosse duradoura e relevante, essa alta das taxas de juros de prazos mais longos encareceria o financiamento dos negócios, de fato. Mas a alta dos juros mais longos nem durou nada, nem foi relevante e nem alguém tem ideia segura do destino do dólar e de seus efeitos na inflação. Até mesmo o impacto da crise que veio da China no PIB brasileiro é incerto.

O tiroteio de frases de Paulo Guedes pode dar em nada, assim como a desordem desta quinta-feira na praça financeira --por vezes isso simplesmente passa. No entanto, como o governo de Jair Bolsonaro é dado ao disparate atroz contínuo, o ambiente anda estressado e a desconfiança aumenta.

Por exemplo, há cada vez mais fofoca sobre a permanência de Guedes no governo, o que não está em questão, mas é um exemplo dos efeitos nocivos do rumorejo constante, desde janeiro em nível de gritaria graças às crises de Bolsonaro.

No dia depois do pibinho, Guedes:

1) disse que, se "fizer muita besteira", "se o presidente pedir para sair, se todo o mundo pedir para sair", o dólar pode ir a R$ 5;

2) observou que as notícias da relação conturbada de Bolsonaro com o Congresso e o risco de atraso nas reformas contribuem para alta do dólar (não deu para entender se o ministro atribuiu a responsabilidade ao tumulto ou ao fato de o tumulto ser noticiado);

3) fez observações azedas sobre uma declaração de seu secretário do Tesouro ("se o Mansueto [Almeida] estava esperando que fosse crescer 3%, ele deve estar frustrado");

4) disse que sua previsão de crescimento da economia é diferente da estimativa da Secretaria de Política Econômica.

"Se todo o mundo pedir para sair"? Do que se trata?

Guedes disse ainda que, como o Brasil é uma economia fechada, a crise mundial não terá efeitos tão grandes ("quando ventou a favor [no mundo], não pegou, quando ventar contra, também não pega tanto"). Hum.

Não tem sido esse o caso do último quarto de século, por exemplo, quando a economia brasileira passou a sentir especialmente as variações da economia chinesa e seus impactos nos termos de troca (a relação entre os preços das exportações e das importações brasileiras). Uma queda relativa do preço dos bens que exportamos, dominados por commodities, tende a reduzir o crescimento brasileiro. Não é destino, mas é provável.

Em si mesmas, em um ambiente e país mais normais, uma afirmação dessas de Guedes não faz lá diferença. Soltar todas elas em apenas um dia, dia de paniquito, em país ainda mais conturbado pela sensação crescente de desgoverno, confirma essa impressão de que a coisa está desgovernada.

Bolsonaro não tem ideia da agenda de presidente

Por mais que o presidente Bolsonaro tenha se esforçado para se esquivar de perguntas sobre o baixo desempenho da economia no ano passado, com a evolução do PIB se mantendo no nível decepcionante de 1%, a realidade de uma economia quase estagnada continua a existir e, cada vez mais, pressiona sua gestão.

A atitude que se espera do presidente é reagir à inércia que tomou conta do seu governo com respeito às reformas. Precisa reativá-las, uma resposta adequada à virtual estagnação da economia.

Isso requer o envolvimento direto do Palácio nas articulações com o Congresso, falha recorrente do governo Bolsonaro. O que faz aumentar as preocupações com o alheamento do presidente e as demonstrações de que não entende as suas funções.

Podia não ter encontrado a imprensa na quarta-feira, dia da divulgação do PIB de 1,1%, se não queria falar sobre o assunto.


Mas na porta do Alvorada decidiu ir ao encontro dos repórteres com uma performance debochada e desrespeitosa, em que um humorista com faixa presidencial saiu do carro oficial para oferecer bananas aos jornalistas. Transformou o Palácio em circo.

Bolsonaro constrói com eficiência a imagem de alguém que não está à altura do cargo. Mostra não entender a dimensão da agenda presidencial. Dela consta não apenas apressar as reformas, como também resistir a pressões que devem surgir para abandonar o ajuste fiscal, a fim de supostamente acelerar a retomada da economia com mais gastos públicos.

O presidente deveria fazer uma reflexão profunda sobre as razões para atrairmos tão pouco investimento externo. Concluirá que parte da explicação está na imprevisibilidade do seu comportamento, fator de aumento da percepção de risco pelo investidor. Um país em tensão política constante, devido ao seu presidente, não é atraente a investidores em grandes projetos de longa maturação, como os de que o Brasil necessita, principalmente na infraestrutura.

Em encontro com os movimentos Vem pra Rua e Brasil Livre (MBL), o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, disse que o governo tem “15 semanas para salvar o Brasil”. Em referência à proximidade do calendário eleitoral, que paralisará o Congresso no segundo semestre.

Pode ter sido um exagero, mas é essencial de fato que Congresso e governo apressem os trabalhos pelo menos até o fim do semestre. A agenda está posta: além da reforma administrativa, ainda não enviada pelo governo, e a tributária, para a qual também falta a contribuição do Executivo, há PECs a aprovar também com urgência (a Emergencial e a dos Fundos Públicos).

Enquanto Bolsonaro perde tempo em patrocinar atos de desrespeito à imprensa, para animar uma plateia digital, há um expediente no Planalto à sua espera que não está sendo cumprido. O presidente precisa trabalhar, e para isso tem de desmontar o picadeiro eletrônico que armou à frente do Alvorada.

A epidemia como pretexto

Quem tem acompanhado atentamente as notícias do Brasil — estando ou não no país — deveria estar profundamente alarmado nesta quarta-feira de cinzas sombria. Entre a violência deflagrada pelas greves da PM, a conclamação do presidente da República para que seus apoiadores se juntem à manifestação contra as instituições democráticas e o primeiro caso de coronavírus no Brasil, há hipóteses assustadoras que não devem ser descartadas, tampouco tomadas com complacência. A pior delas é que o instinto autoritário do presidente o leve, perante o pretexto de uma epidemia iminente, a tentar obter poderes excepcionais. Não é exagero nem distopia. É risco dos mais graves.

Muito tem se falado sobre as consequências da pandemia que agora parece inevitável para a economia global e para o Brasil em particular. Os mercados internacionais nos últimos dias refletiram a conscientização repentina de que a epidemia de coronavírus não está circunscrita à China e de que a capacidade que têm outros países de reagir como fizeram os chineses é limitada não apenas pela falta de recursos, mas pela existência de entraves democráticos. Ainda que seja possível impor quarentenas maciças e impedir o deslocamento de pessoas das áreas mais afetadas, ninguém possui o arsenal de monitoramento que a China possui. E é evidente — ainda que profundamente perturbador — que um regime autoritário com enorme capacidade tecnológica para neutralizar as liberdades de seus cidadãos esteja em outro patamar quando se defronta com uma epidemia em larga escala. No atual ambiente onde líderes diversos flertam abertamente com o autoritarismo — alguns mais do que flertam — não é exagero, menos ainda hipérbole, achar que os piores instintos serão atiçados pelo alastramento do coronavírus.

É verdade que há muito pouca informação sobre a doença e que, a depender dos próximos dias e semanas, a atual sensação de pânico deverá se dissipar. Contudo, é precisamente a falta de informação e a incerteza que agravam não apenas as projeções para a economia — a nossa e a dos outros — como também a intensidade da reação de líderes e de governos. Não é nada difícil imaginar que um presidente profundamente despreparado, e com histórico de desprezo pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), resolva juntar seus correligionários e facilitadores para fazer o estrago nas instituições democráticas brasileiras que muitos suspeitam que ele queira fazer. Epidemias, ou o risco de que aconteçam, são situações absolutamente propícias para isso, já que os poderes de exceção, de agir diante de circunstâncias extraordinárias, acaba invariavelmente nas mãos do poder executivo. É pela aplicação dessa lógica que países fecharam fronteiras e suspenderam a entrada de pessoas provenientes de áreas de risco — medidas brandas perto do arsenal que ainda pode ser lançado, sobretudo naqueles lugares onde as instituições estão abaladas pela descrença.

Após o vídeo em que convocou apoiadores a aderirem aos protestos de 15 de março, Bolsonaro foi duramente criticado por líderes da oposição no Congresso, pelo ministro Celso de Mello do STF, por ex-presidentes, por jornalistas, por outras entidades que viram em suas palavras graves riscos à democracia. Em resposta, Bolsonaro chamou as críticas de “ilações”, descartando-as. Ainda que a atitude não reflita qualquer inclinação a adotar ações drásticas perante os riscos de uma epidemia, ela prejudica o Brasil de tantas maneiras que é difícil exagerá-las.

Como não enxergar na atitude presidencial um desprezo que naturalmente desemboca em crise institucional? Lembro a quem quiser ler estas palavras que o crescimento brasileiro está em apenas 1% e que as chances de que permaneça nesse patamar, ou fique abaixo dele, são crescentes, sobretudo com problemas de saúde pública pela frente. Se não for pela via direta da epidemia que testemunharemos o que o Brasil de fato elegeu em 2018, será inevitavelmente pela via da armadilha do crescimento baixo à qual estamos presos. Urge encarar essa realidade.

Pensamento do Dia


O quase fim do mundo

Se dúvidas houvesse acerca de como a literatura nos prepara para a vida, os últimos dias teriam sido elucidativos. Senti-me personagem incrédula num cenário distópico dos livros. Ainda a mancha cinzenta se alastrava pelo mapa-mundo teimando em não chegar a terras lusas, e já me mandavam fotografias de prateleiras de supermercados vazias e sms desesperados. Álcool de todo o tipo, esgotado. Desinfetante para as mãos, nem vê-lo. Sabonetes antibacterianos, para esquecer. Máscaras protetoras, das mais simples às mais elaboradas, desapareceram aos milhões das farmácias e até das lojas de bricolage – havia quem comprasse dezenas de caixas de cada vez. Pobre do pintor ou do decapador que precise delas para trabalhar, vai ter de se aguentar sem elas. O culpado? O Covid-19, mais conhecido por coronavírus. Ainda ele não andava por cá, e já fazia nascer dúzias de cabelos brancos nas cabeças das mães que debitavam angústias em fóruns de conselho e desabafo, pedindo, desesperadas, as localizações das lojas onde ainda conseguiam comprar esse bem de primeira necessidade. Frascos de álcool e desinfetante passam clandestinos por baixo do balcão a 5 euros. Tempos desesperados exigem medidas desesperadas. Isto é um caso de vida ou morte!


Há uns séculos, teríamos todos de nos benzer quando pronunciássemos a palavra maldita: peste. Agora, ao invés de nos benzermos, ligamos o modo pânico civilizado e partimos para a ação preventiva tresloucada. Vai dar mais ou menos ao mesmo, ou seja, a lado nenhum. É nos flagelos e calamidades que conhecemos a essência humana, e ela, por mais civilização que lhe ponhamos em cima, será sempre uma: egoísta.

Fui à prateleira buscar Camus, pois claro, que n’A Peste retratou, em 1947, uma epidemia que assolou uma cidade, tal como a ocupação nazi assolara França. Ora abramos aspas longas para o Nobel da Literatura: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (…) Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria idiota.’ E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar.

A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Os nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo o mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Os nossos concidadãos não eram mais culpados do que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.”

Ah, são tão reveladoras as epidemias. Os anos passam, mas Camus continua certeiro…

Hoje temos um mundo globalizado, cadeias de produção e abastecimento espalhadas pelo globo, viagens low-cost que encurtam todas as distâncias, internet que faz de nós semideuses, mas estamos à mercê de um micro-organismo invisível que nos põe na ordem em três tempos e bloqueia tudo perante a ameaça de flagelo. Vivemos numa ilusão de mundo livre e, em menos de nada, estamos num Quase Fim do Mundo, como lhe chamou Pepetela. Saramago resumiu-o bem no Ensaio sobre a Cegueira: “Só num mundo de cegos as coisas serão como verdadeiramente o são.”
Mafalda Anjos

Epigrama 4

Desperta-se com tiros de canhão
na manhã cheia de aviões.
Parece revolução
mas é o aniversário do tirano. 
Ernesto Cardenal

O prazo de validade de Paulo Guedes

A conversa nos bastidores do Congresso esta semana — que começou antes da divulgação do pibinho de 1,1% de 2019 — é de que o prazo de validade do ministro da Economia, Paulo Guedes, estaria chegando ao fim. Menos pelo estado de ânimos do ministro, apontado muitas vezes como um fator que poderia levá-lo a chutar o balde em algum momento, do que pelo clima de cobrança em relação aos resultados da economia que impera hoje no Palácio do Planalto.


Jair Bolsonaro não está mais fazendo questão de disfarçar que vem exigindo mais serviço do ministro da Economia no quesito crescimento. Nesta quarta, logo após a divulgação do número do IBGE para a evolução da economia seu primeiro ano de governo — menor do que o último de Michel Temer —, o presidente montou um espetáculo na porta do Alvorada para escapar de perguntas sobre o assunto. Entre uma e outra banana oferecida aos jornalistas pelo comediante da Record vestido de presidente, porém, Bolsonaro fez uma única observação: o problema do PIB é do Posto Ipiranga.

Se já andava alta, a pressão sobre Paulo Guedes será redobrada depois do PIB oficial. Além dos generais do Planalto, uma parte da área política também parece ter perdido a boa vontade em relação ao ministro. A ansiedade cresce. Afinal, tem eleição municipal este ano, e os políticos ligados ao governo temem sua nacionalização e os ganhos que a oposição poderá ter com o discurso da estagnação da economia.

Nas hostes governistas, há pessoas de bom senso que acreditam que, se está ruim com Guedes, pode ser pior sem ele. Lembram que o ministro da Economia ainda é a principal âncora do governo junto ao mercado, inclusive internacionalmente, e aos setores do PIB. Mesmo com sua credibilidade em curva descendente — já que quase nada do que prometeu está se cumprindo —, consideram que será difícil, para Bolsonaro, conseguir um substituto com o mesmo perfil.

Por isso, acham que o presidente vai manter seu jogo de pressionar Guedes, desvinculando-se da imagem de quem não fez ainda a economia crescer e multiplicando as cobranças públicas, mas vai mantê-lo no cargo. Mesmo entre esses, porém, não há tanta segurança assim: quem é que sabe, afinal, o que se passa na cabeça de Bolsonaro? Ninguém, talvez nem ele mesmo.

Até por isso, o ministro da Economia, que pode ter lá sua falta de traquejo político mas não é bobo, parece estar asfaltando uma estrada que poderá, se necessário, conduzi-lo a uma saída honrosa, aparentemente por iniciativa própria.

O prazo de quinze semanas para aprovação da agenda econômica que está no Congresso — e também da que não está, como a reforma administrativa — , ao qual o Guedes se referiu na terça-feira em conversas com movimentos empresariais, é absolutamente inviável. Todo mundo sabe que, ao dizer que tem pouco mais de três meses e meio para “mudar o Brasil”, o ministro tem perfeita consciência de que não mudará o Brasil. Mas ganha uma boa desculpa para pedir o boné e botar a culpa de tudo no Congresso.

A tragédia das chuvas se repete. Quando vamos mudar?

Em memória aos bombeiros militares que tombaram em combate durante as atividades de salvamento em Guarujá, São Paulo, em 3 de março de 2020
Há alguns eventos no Brasil que, pela sua importância e periodicidade, fazem parte do calendário nacional: Carnaval, Copa do Mundo, eleições e tantos outros. Infelizmente, a tragédia das chuvas também já faz parte do anuário. As televisões mostram imagens de casas desmoronando e de encostas colapsando que são tão parecidas com as exibidas em anos anteriores que fica difícil distinguir o que é transmissão ao vivo e o que são imagens de arquivo. Tudo se repete: os locais, as causas, a tristeza, a falta de planejamento urbano, as mortes.

Mas pensando bem, há algo que não se repete: as vítimas. Os seus nomes. As suas histórias. A cada ano, novas histórias são destruídas, sonhos inéditos são interrompidos, outras famílias passam a chorar a perda de seus queridos. E de uma forma cruel e irresponsável, nomeamos isso de “fatalidades”, como se essas mortes fossem fruto do acaso, do imponderável, do imprevisível.

Ninguém quer contar ou ninguém quer perceber que todas essas mortes são assassinatos. Cujos assassinos somos todos nós, que aprendemos a achar normal a ocupação desordenada que impera na cidade, onde milhares de pessoas moram em áreas de risco convivendo com a nossa condescendência desumana. Ninguém quer falar que tudo isso era evitável, que existe política pública para isso, que essas mortes não precisavam ter acontecido. Por um motivo muito simples: é mais fácil assim. É mais fácil responsabilizar o recorde dos índices de chuvas do que assumir que nossas mãos estão cheias de sangue, lama e água de enchentes.

Simultaneamente à nossa crise de responsabilidade, instaura-se um tenebroso espetáculo político cuja receita já é conhecida: primeiro, atribui-se a culpa daquela tragédia a gestões passadas, que não fizeram as obras que deveriam ter sido feitas; segundo, anuncia-se que serão feitos estudos e planejamentos para realizações de obras que impeçam as tragédias de se repetirem; e terceiro, as obras anunciadas não são realizadas ou não são finalizadas naquela gestão e a nova gestão repetirá fielmente o ciclo acima descrito. O jogo do empurra-empurra da culpa parece funcionar e, no final das contas, a justificativa é sempre a mesma: a culpa é da chuva, e todas essas vidas perdidas acabam ficando apenas na conta de São Pedro. O culpado é sempre o outro. E mais uma vez, adota-se a solução mais simples: no jogo eleitoral, vale mais a pena prometer construir uma creche do que enfrentar o intricado problema do (des)ordenamento urbano, que é denso, demorado e difícil de resolver. Nos debates eleitorais que teremos logo mais neste ano, a pauta da chuva será propositalmente esquecida, pois se aventurar a equacionar itens como reassentamento de comunidades, planejamento hidrológico e obras estruturais de prevenção é perigoso demais para nossos políticos. Demandaria reconhecer a perversidade da desigualdade social e a adoção de medidas impopulares e caras, que embora sejam urgentes e necessárias, implicariam na perda de votos. E nesse dilema é desnecessário dizer qual é a opção da esmagadora maioria dos governantes.

Nesta quarta, companheiros de São Paulo velaram o nosso irmão de farda Rogério de Moraes Santos, bombeiro militar que morreu enquanto tentava realizar o resgate de um bebê nos braços da mãe em meio ao cenário desolador que se instaurou no Morro do Macaco Molhado, em Guarujá. O bebê e a mãe foram encontrados sem vida. O outro militar que estava na equipe de resgate, Marciel de Souza Batalha, segue desaparecido.

O bombeiro que faleceu na atitude heroica deixou três filhos. O caçula tem 16 anos. É bem provável que ele pergunte por que o pai morreu, ao que será explicado que ele se foi tentando salvar a vida de duas pessoas que ele nem sequer conhecia. Talvez alguém possa dizer ao garoto que foi uma “fatalidade” de serviço. Não foi. A nossa conivência, o nosso descalabro político, a nossa banalização do absurdo fez mais uma vítima. Fomos nós, enquanto sociedade irresponsável e autocentrada, que matamos Rogério e todas as outras vítimas das chuvas. E ao acharmos que a morte desses dois militares e de qualquer outro óbito decorrente das chuvas foram “fatalidades”, matamos essas vítimas novamente, pois desconstituímos o legado que elas deixaram com as próprias vidas, da necessidade de mudanças urgentes em nossas concepções de vida na cidade e em sociedade.

No mês passado, a notícia de uma Lamborghini que valia alguns milhões e foi destruída pela chuva chamou mais atenção do que pessoas que tinham perdido suas casas e seus pertences por essa mesma chuva. Enquanto caminharmos assim, teremos falhado miseravelmente enquanto seres humanos e continuaremos a ter de entregar a vida de nossos melhores bombeiros para lembrar a sociedade de que esse não é o caminho. E o pior de tudo, a partir de hoje teremos de conviver com o choro e a eterna saudade dos três filhos de Rogério, levado pelas águas e destroços da nossa ganância, da nossa insensatez, da nossa insensibilidade. Não foi fatalidade.
Pedro Aihara. bombeiro militar, mestre em Direitos Humanos, especialista em Gestão e Prevenção de desastres, professor e palestrante. Atuou em tragédias como as de Brumadinho, Mariana, Janaúba

No país do pibinho e da revolução conservadora, paciência do povo é a dúvida

O Brasil está em crise política ou econômica faz seis anos. Mais pobre do que era faz dez anos. Com o sistema político tradicional desacreditado pelo menos desde 2013 e desmoralizado desde 2015. Caberia perguntar por quanto tempo o país ainda pode se desmilinguir sem revolta social ou rompimento político.

A pergunta parece mais oportuna por causa da renovação da perspectiva de quase nenhum crescimento da economia, como agora. Até quando seria paciente a maioria silenciosa do povo miúdo, que parece ainda mais quieta por causa da algazarra atroz das milícias digitais?


Mas algum rompimento houve, pela via institucional. Jair Bolsonaro é o resultado disso. De certo modo, o tempo de tolerância da crise voltou a ser contado na eleição de 2018. As urnas são momento de renovação de otimismo, por mais estranha ou monstruosa a forma que essa esperança possa tomar.

O sentimento de que o país se esboroa se deve também ao fato de que acontecem mudanças profundas, goste-se ou não. Mudam a Previdência, a poupança pública e privada, as relações trabalhistas, o emprego. Há contenção do gasto público por asfixia.

Houve desmonte da organização do trabalho, em particular das desmoralizadas centrais sindicais. Muda o comando do capital. Empresários com proeminência política são outros. O país não está apenas se desmilinguindo. Sofre uma mutação, que talvez dê em um monstro, mas não se trata dessa história aqui, agora.

Aconteceu também um rearranjo político importante, talvez provisório. O parlamentarismo branco coloca certa ordem no país desgovernado e sujeito aos golpeamentos de Bolsonaro, tolerados pela maioria da elite econômica, incentivados por parte dela. É a geringonça da direita.

Até por falta de opção dos envolvidos, o arranjo político deve continuar com a aprovação de algumas reformas, caso Bolsonaro não promova mais baderna atroz.

Parece uma geringonça estável enquanto os golpeamentos, as tentativas de demolição institucional bolsonariana, não balançarem estruturas (badernas de subalternos em quarteis?). Enquanto não sobrevier um escândalo decisivo dos Bolsonaro ou uma recaída na recessão. No mais, é insondável de quando pode vir nova revolta ou queda relevante do prestígio do governo.

O PIB de 2019, muito parecido com o de 2018, não revelou nada que não se soubesse faz tempo. Uma economia que cresce com consumo baseado em lerdo aumento dos salários e sem investimento vai se recuperar de modo muito lerdo, sujeita a recaídas fáceis devido a qualquer choque. O investimento não virá tão cedo, pois o governo não gastará mais, as empresas têm capacidade ociosa ou medo e gastos maiores em infraestrutura pública e privada só começam a pingar no final deste ano, se tanto.

Nada disso vai mudar tão cedo, embora Rodrigo Maia, em uma atitude meio enigmática no dia do pibinho, tenha criticado a falta de investimento público e esteja pelas tampas com o governo; embora o país esteja desgovernado desde que Bolsonaro resolveu golpear até geringonça.

Mas o arranjo de contenção da ingovernabilidade deve continuar, assim como o crescimento quase nulo; não há movimento social ou partidário de oposição relevante.

A paciência da população é mais imprevisível. Por quanto tempo o povo, passando mal, terá fé nessa geringonça com promessa de revolução de extrema direita e transformação agônica das relações socioeconômicas?