domingo, 16 de janeiro de 2022

Brasil do BBB

 


Ano novo, Bolsonaro velho

A defesa da não obrigatoriedade de vacinação das crianças para a matrícula escolar reúne todos os ingredientes para virar a nova polêmica a ser insuflada pelo presidente Jair Bolsonaro, cujo estoque de conflitos anda repetitivo, insuficiente para mobilizar até o seu público mais fiel.


Embora tenha se empenhado em entrevistas diárias no pós-férias, Bolsonaro não conseguiu obter êxito com a cantilena contra ministros do STF e os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas. Nem mesmo a infâmia do “tarados por vacinas”, dirigida aos defensores da imunização contra a Covid, incluindo os técnicos da Anvisa, obteve o sucesso pretendido entre a sua turma.

Safos, os ministros do Supremo Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes não deram bola para a nova sessão de desacatos, e a tentativa de ressuscitar o conto de fraude na eleição de 2018, que Bolsonaro diz, sem provas ou mesmo indícios, que teria vencido no primeiro turno, naufragou no vazio. Não se viu qualquer hashtag nas redes sobre o tema.

A baixa interação talvez possa ser explicada pela mágoa de seguidores que mergulharam de corpo e alma nas ameaças golpistas de setembro do ano passado. Que apostaram em “ação” e viram o “mito” sucumbir ao Centrão de sempre, ao qual ele, confessamente, disse sempre pertencer. O resto era papo de eleição e encantamento de torcida.

Quanto às vacinas, Bolsonaro desde sempre marchou na contramão. Sabotou-as, não se dando conta de que os brasileiros arduamente ansiavam por elas. Isso se materializou na mais aguda esquizofrenia: um governo que distribui vacinas enquanto o presidente as combate.

À despeito da cólera presidencial, a vacinação contra Covid andou célere no país, com quase 70% da população totalmente imunizada e, consequentemente, um impacto infinitamente menor na gravidade da variante Ômicron, cujo contágio é comprovadamente mais acelerado.

Mas Bolsonaro não se deu por vencido na sua birra antivacina. Quando a Anvisa aprovou a imunização de crianças de 5 a 11 anos, o capitão viu a chance de novamente ativar os seus. Mais uma vez aproveitou-se da cegueira e da ignorância para inocular o vírus da mentira, que, no Brasil da impunidade, não é letal para o governante.

Mesmo com as dificuldades impostas – de receita médica à consulta popular –, a vacinação infantil acabou aprovada. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que protelou o quanto pôde e até mesmo lançou dúvidas sobre a conveniência de aplicá-la, correu à frente das câmeras para receber o primeiro lote da Pfizer, como se a imunização de crianças fosse desejada pelo governo.

No mesmo dia, bolsonaristas de carteirinha começaram a espalhar nas redes o falso dilema da obrigatoriedade da vacina para acesso às escolas. Pior: não se limitaram à Covid-19.

Desde 1990, as vacinas são exigidas para o ingresso escolar. Hoje, o cardápio inclui 18 imunizantes, entre eles os contra tuberculose, hepatites, pólio, meningite, sarampo, rubéola, caxumba, entre outros. A obrigação está coberta pela lei – com multas para os pais –, expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), demonizado pelo bolsonarismo. Gostariam mesmo é de acabar com o ECA, tido ainda como “complacente com jovens delinquentes”, que estariam “protegidos” pela maioridade penal.

Para Bolsonaro, com espaço de ação praticamente limitado à reincidência em polêmicas inventadas nos primeiros anos de mandato, contestar a vacinação infantil e o ECA pode subsidiar a beligerância que usa para alimentar seu gado. Nada além de 20%, mas alinhado à sua missão primeira de destruir o Estado brasileiro e os avanços civilizatórios do país.

Uma eleição a bordo do Titanic

A analogia com o Titanic é correta, porque nossa embarcação, beirando os 150 milhões de eleitores, é de fato enorme e porque nada faz crer que os nossos sensores políticos sejam eficientes na função de detectar possíveis icebergs à nossa frente.

A verdade é que nosso Titanic já partiu meio avariado quando largou em Portsmouth para a viagem aos Estados Unidos. Os reparos a que foi submetido no estaleiro da sra. Dilma Rousseff não lhe foram nada saudáveis. Seus sensores são um emaranhado institucional estapafúrdio, que funciona mais pela graça de Deus que por uma intrínseca racionalidade política. As três décadas decorridas desde a promulgação da Constituição de 1988 não deixam dúvida quanto a nos termos metido numa lamentável entressafra de lideranças, causa e consequência da atual inexistência de partidos políticos. Escrevo “inexistência de partidos” porque as agremiações que vêm se registrando no Tribunal Superior Eleitoral distam muito de merecer tal denominação. Os chefes da tripulação, quero dizer, os candidatos que se irão engalfinhar em outubro, carecem da mais simples visão de conjunto, sendo, portanto, incapazes de perceber os riscos a que nosso País está sujeito no médio prazo. Por último, mas não menos importante, fomos atingidos pela pandemia, fenômeno um bilhão de vezes pior que um reles ataque de gafanhotos.


Mas, como diria o doutor Ulysses Guimarães, analisar é preciso. Comecemos, pois, por uma rápida espiada na chamada Terceira Via. Já dá para perceber que daí pode sair qualquer coisa, inclusive nada. Por mais que me esforce, a não ser por Roberto Freire, presidente do Cidadania, não vejo qual seria o líder capaz de agregar o grupo que se abrigou sob esse guarda-chuva e levá-lo, trabalhando em conjunto, a acender nem que fosse uma bruxuleante luzinha entre nossos desencantados eleitores.

Por seus méritos pessoais e pela dimensão do eleitorado paulista, o nome do governador João Doria não pode ser descartado. Fato é, entretanto, que ele, ocupado de manhã à noite com o combate à covid, não parece capaz de sustentar a popularidade que parecia bafejá-lo no início do mandato. Considerando a distância, a julgar pelas pesquisas, que hoje o separa de Lula e Bolsonaro, ele se depara com uma autêntica escolha de Sofia. Terá de escolher entre a reeleição para o governo de São Paulo e a candidatura à Presidência; nesta segunda hipótese, deve estar ciente da possibilidade de um nocaute precoce. Pior ainda, tal opção pode entregar o governo de São Paulo de mão beijada ao PT. Nessa hipótese, o iceberg nem ficará esperando pelo Titanic: virá ao encontro dele.

Sérgio Moro ainda ostenta índices modestos nas pesquisas de intenção de voto, até porque carece de uma base robusta nos maiores colégios eleitorais, São Paulo e Minas Gerais, mas descartá-lo pode ser um equívoco, uma vez que ele pode se apresentar como um outsider, atributo que soe ganhar importância em tempos de desencanto. Acrescente-se que ele vem reunindo uma equipe digna de respeito.

E assim chegamos ao trio percebido como realmente competitivo. Ciro Gomes é, com certeza, o que vai se deparar com mais dificuldades, de um lado por também carecer de base nos principais colégios eleitorais, de outro por ser percebido como um caráter demasiado impetuoso e, em economia, como remanescente de um intervencionismo cediço.

Claro está, pois, que as duas bigas dianteiras serão dirigidas por Jair Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva. Até onde a vista alcança, Jair Bolsonaro embicou numa trajetória descendente. Os porquês desta afirmação vão desde muitos prováveis crimes de responsabilidade cometidos ao solapar o combate à pandemia até seu caráter agressivo e sua manifesta intenção de manter no País uma polarização política que atinge as raias do absurdo. O fato novo a frisar é que sua biga é puxada por cavalos ariscos. Mesmo no Centrão, sinais de desconforto em relação à sua candidatura surgem dia sim e outro também. Sem esquecer que o principal financiador de sua candidatura em 2018 já pulou para a canoa de Sérgio Moro.

Noves fora, o leitor haverá de convir comigo que, visto a partir de hoje, o cenário lógico é a vitória de Lula, provavelmente no primeiro turno. Lula por oito anos, porque, chegando outra vez ao Planalto, ele não fará por menos. Ele adora aquilo lá. Certo é que muitos cidadãos se perguntarão: qual Lula? Sim, porque Lula não é um, são pelo menos dois. O problema é qual dos dois papéis ele vai afivelar ao rosto, o de Dr. Jekil ou o de Mr. Hide. Num caso, terá de assumir a postura do argentino Menem, tentando levar o PT para o neoliberalismo. No outro, fincará pé no que me parece ser de fato seu eu profundo, o intervencionismo populista, muito mais do agrado de suas hostes arraigadamente intervencionistas. Num caso ou noutro, continuaremos a crer no salvador da pátria, ou cairemos na real de que se trata de fato de um desastre anunciado? Só espíritos muito embotados não percebem que a ponta do iceberg está à vista.

Bolsonaro ou a Covid, qual o vírus é mais letal para os brasileiros

No Exército é assim: não quer se vacinar? Taokey. Sem problemas. Passe no Recursos Humanos. Está demitido. Você tem o direito de não se vacinar, mas não o de pôr em risco a vida dos outros.

O sérvio Novak Djokovic, o maior tenista da atualidade, amanheceu hoje sem saber se participará do Aberto da Austrália a começar amanhã naquele país, ou ainda esta noite no Brasil.

Foi detido há uma semana pela imigração australiana por não estar vacinado nem dispor de documentação adequada de exceção. A Justiça dará a palavra final no seu caso.

Deu, pouco depois das 4h, horário do Brasil: manteve o cancelamento do visto Djokovic com base no fato de que ele poderia representar um risco à saúde e à ordem pública.

Em breve, o parlamento alemão começará a debater a proposta do primeiro-ministro, o social-democrata Olaf Scholz, de tornar obrigatória a vacinação de todos os adultos

Por uma questão técnica, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou portaria do presidente Biden que obrigava empresas com mais de 100 empregados a exigir deles certificado de vacinação.

Os que não apresentassem deveriam ser testados semanalmente. A Suprema Corte, de maioria conservadora, entendeu que a portaria deveria ter sido aprovada no Congresso.

Em Québec, no Canadá, o primeiro-ministro François Legault avalia cobrar um imposto dos não vacinados porque eles adoecem, transmitem o vírus, e com isso aumentam os gastos públicos.


Há limites para tudo, até mesmo para a liberdade de opinião e os direitos. Se os direitos de que quero desfrutar prejudicam os seus ou os da sociedade, eles devem ser restringidos.

Na China, e em outros países de regime autoritário, essa é uma questão pacificada – o Estado manda, e ai de quem não obedecer. Em países democráticos, o Parlamento e a Justiça decidem.

No Parlamento estão os representantes do povo. Na Justiça, os juízes que interpretam as leis promulgadas pelo Parlamento e que depois são escritas na Constituição.

Nada impede, porém, em momentos em que o destino da humanidade esteja em risco, que instituições como as Forças Armadas e entidades privadas estabeleçam suas próprias regras.

Posso como dono de um boteco, por exemplo, determinar: aqui só entra quem provar que se vacinou. Não preciso de autorização do Estado para proceder dessa maneira.

O governo negacionista do presidente Jair Bolsonaro está pouco preocupado com isso. Para ele só importa sobreviver e, se possível, ganhar mais 4 anos. Vidas não importam tanto, ou muito pouco.

Deu passe livre à circulação da Covid-19, sabotou a vacinação, escondeu o número de mortos e de infectados, e impulsionou uma tragédia que poderia ter sido menor.

Um em cada quatro brasileiros com 16 ou mais anos de idade diz ter recebido diagnóstico de Covid desde o início da pandemia, segundo pesquisa Datafolha divulgada ontem.

Significa que cerca de 42 milhões de pessoas foram infectadas, quase o dobro do total de casos registrados oficialmente. Bolsonaro dirá que a pesquisa é fajuta, como todas que ele nega.

A História, por sua vez, dirá um dia qual vírus foi o mais letal para os brasileiros neste início de século: a Covid-19 ou o Bolsonaro.

Temos de ser mais humanos







Abram os olhos. Somos umas bestas. No mau sentido. Somos primitivos. Somos primários. Por nossa causa corre um oceano de sangue todos os dias. Não é auscultando todos os nossos instintos ou encorajando a nossa natureza biológica a manifestar-se que conseguiremos afastar-nos da crueza da nossa condição. É lendo Platão. E construindo pontes suspensas. É tendo insónias. É desenvolvendo paranóias, conceitos filosóficos, poemas, desequilíbrios neuroquímicos insanáveis, frisos de portas, birras de amor, grafismos, sistemas políticos, receitas de bacalhau, pormenores.

É engraçado como cada época se foi considerando «de charneira» ao longo da história. A pretensão de se ser definitivo, a arrogância de ser «o último», a vaidade de se ser futuro é, há milénios, a mesmíssima cantiga.

Temos de ser mais humanos. Reconhecer que somos as bestas que somos e arrependermo-nos disso. Temos de nos reduzir à nossa miserável insensibilidade, à pobreza dos nossos meios de entendimento e explicação, à brutalidade imperdoável dos nossos actos. O nosso pé foge-nos para o chinelo porque ainda não se acostumou a prender-se aos troncos das árvores, quanto mais habituar-se a usar sapato.

A única atitude verdadeiramente civilizada é a fraqueza, a curiosidade, o desespero, a experiência, o amor desinteressado, a ansiedade artística, a sensação de vazio, a fé em Deus, o sentimento de impotência, o sentir-mo-nos pequeninos, a confissão da ignorância, o susto da solidão, a esperança nos outros, o respeito pelo tempo e a bênção que é uma pessoa sentir-se perdida e poder andar às aranhas, à procura daquela ideia, daquela casa, daquela pessoa que já sabe de antemão que nunca há-de encontrar.

O progresso é uma parvoíce. Pelo menos enquanto continuarmos a ser os animais que somos.

Miguel Esteves Cardoso