Decidido isso, era preciso passar à fase seguinte e escolher um nome adequado para a nova religião, após alguma pesquisa entre os modelos existentes. Pensou em coisas como Igreja da Escritura Pentagonal, pois, afinal, há uma do Evangelho Quadrangular, e não ficaria bem aludir a triângulos com sua implícita sugestão de adultério, ou a octógonos a evocar artes marciais. Alguém lhe ponderou que pentágono podia despertar sensibilidades militares americanas, que hexágono poderia melindrar franceses (que assim chamam seu país), e ele decidiu deixar de lado a Geometria. Além do mais, o termo escritura podia fazer algum desavisado esquecer o conceito de Palavra Sagrada e pensar em registro de imóveis — associação de ideias a ser evitada por uma nova igreja
Saindo das referências espaciais, talvez fosse o caso de buscar uma âncora temporal ou cronológica, inspirando-se em algumas que celebram Últimos Dias e noções afins. Meu amigo descartou Última Hora, para não pensarem que homenageava combativo jornal de outras eras. Também rejeitou Últimas Semanas, pela associação com chamados para liquidação de loja — atualmente falando inglês, como sales e black qualquer coisa. Mas gostou da ideia de ser guru de um templo que evocasse o tempo. Insistiu nela.
Insistiu tanto que lhe veio à memória um antigo slogan da Loteria Federal que propunha: “Não desista, insista.” Mas lembrou que Tom Jobim ensinou que somos um país de cabeça pra baixo, com tudo ao contrário. Invertido o lema, a recomendação passou a “não insista, desista.” Eureca! Grande potencial de aliciar seguidores. Afinal, desistir é só o que tem feito o país, deixando pra lá o saneamento, a segurança pública, a educação, a infraestrutura, a desburocratização, a modernização da economia. Sábia iluminação, que levou a definir a nova igreja. Encarna a índole dos fiéis: é a da Procrastinação Perpétua de Todos os Dias. Com a vantagem de já ter uma ótima sigla, PPTD, se algum dia precisar fazer dela um partido político.
Os antecedentes históricos são notáveis. Nem precisamos invocar o processo da Abolição, em que a Lei Áurea só saiu depois de inacreditável sucessão de adiamentos e leis pontuais sobre tráfico de escravos, sobre sexagenários, recém-nascidos, e não foi capaz de indenizar os ex-escravos ou garantir seu futuro e de seus descendentes. Para ficarmos apenas no período republicano, basta ver o que ocorre com as reformas essenciais para acertar o país.
Nem falemos nas tais reformas de base, da Agrária à Universitária, consideradas imprescindíveis lá no início dos anos 1960, celebradas em prosa, verso, comício e passeata, e causadoras de 21 anos de governo militar — sem jamais sair do blá-blá-blá. Fiquemos só com as que estão em evidência agora. A da Previdência, a trabalhista, a do ensino, a fiscal... O negócio é falar muito e adiar sempre. Deixar para amanhã o que se pode fazer hoje. Empurrar com a barriga. Aproveitar qualquer pretexto para postergar. Procrastinar todos os dias, bingo! Justamente o que prega a nova igreja. Uma encarnação perfeita da alma nacional.
Só não foi ainda registrada porque demanda um mínimo de providências concretas, e pra que correr? Devagar com o andor que o santo é de barro. Quem corre cansa. Afinal, somos perfeitos, e a pressa é inimiga da perfeição, pode nos prejudicar. Eu quero é sossego. Deixa pra depois. Ou como dizia o profeta Macunaíma:
— Ai, que preguiiiiii...
Ana Maria Machado