sábado, 4 de fevereiro de 2017

Deixa pra depois

Tenho um amigo brincalhão, fino observador da cena nacional, que hesita há anos entre dois caminhos garantidores de seu futuro. Bem típicos do Brasil, exemplos da criatividade que consagra nosso jeito de ser. Ambos escancaram portas para a riqueza crescente, a sombra e água fresca, assegurando vencer na vida sem fazer força. É só aproveitar a moleza que a lei permite e fundar uma grande organização que permita receber muito dinheiro sem trabalhar. E sem se preocupar com impostos, graças ao privilégio de isenções fiscais. Isto é, desde que não se tenha que contribuir para o desenvolvimento do país, criar empregos, resultar em produtividade e geração de riqueza. Basta ser um partido político ou uma igreja, como os que grassam entre nós e parecem se multiplicar até por cissiparidade — aliás, uma palavrinha boa para homenagearmos o saudoso João Ubaldo Ribeiro, que nos brindava periodicamente com a recomendação zelosa: “Dicionário, amigos, dicionário...”


Com o pai dos burros na mão, ou diante de suas páginas digitais abertas na tela, talvez haja quem queira aproveitar para nova consulta lexical. Que tal olhar também “procrastinação”? É que meu amigo brincalhão acabou chegando a ela, ao optar por fundar uma igreja de preferência a um partido. Descobriu que os templos, além de compartilharem com agremiações políticas a possibilidade de isenções fiscais, prestígio público, carteirada, projeção midiática e licença para cobrar dízimos sem controle, ainda acrescentam benesses legais a familiares — escapar ao serviço militar obrigatório, por exemplo.

Decidido isso, era preciso passar à fase seguinte e escolher um nome adequado para a nova religião, após alguma pesquisa entre os modelos existentes. Pensou em coisas como Igreja da Escritura Pentagonal, pois, afinal, há uma do Evangelho Quadrangular, e não ficaria bem aludir a triângulos com sua implícita sugestão de adultério, ou a octógonos a evocar artes marciais. Alguém lhe ponderou que pentágono podia despertar sensibilidades militares americanas, que hexágono poderia melindrar franceses (que assim chamam seu país), e ele decidiu deixar de lado a Geometria. Além do mais, o termo escritura podia fazer algum desavisado esquecer o conceito de Palavra Sagrada e pensar em registro de imóveis — associação de ideias a ser evitada por uma nova igreja

Saindo das referências espaciais, talvez fosse o caso de buscar uma âncora temporal ou cronológica, inspirando-se em algumas que celebram Últimos Dias e noções afins. Meu amigo descartou Última Hora, para não pensarem que homenageava combativo jornal de outras eras. Também rejeitou Últimas Semanas, pela associação com chamados para liquidação de loja — atualmente falando inglês, como sales e black qualquer coisa. Mas gostou da ideia de ser guru de um templo que evocasse o tempo. Insistiu nela.

Insistiu tanto que lhe veio à memória um antigo slogan da Loteria Federal que propunha: “Não desista, insista.” Mas lembrou que Tom Jobim ensinou que somos um país de cabeça pra baixo, com tudo ao contrário. Invertido o lema, a recomendação passou a “não insista, desista.” Eureca! Grande potencial de aliciar seguidores. Afinal, desistir é só o que tem feito o país, deixando pra lá o saneamento, a segurança pública, a educação, a infraestrutura, a desburocratização, a modernização da economia. Sábia iluminação, que levou a definir a nova igreja. Encarna a índole dos fiéis: é a da Procrastinação Perpétua de Todos os Dias. Com a vantagem de já ter uma ótima sigla, PPTD, se algum dia precisar fazer dela um partido político.

Os antecedentes históricos são notáveis. Nem precisamos invocar o processo da Abolição, em que a Lei Áurea só saiu depois de inacreditável sucessão de adiamentos e leis pontuais sobre tráfico de escravos, sobre sexagenários, recém-nascidos, e não foi capaz de indenizar os ex-escravos ou garantir seu futuro e de seus descendentes. Para ficarmos apenas no período republicano, basta ver o que ocorre com as reformas essenciais para acertar o país.

Nem falemos nas tais reformas de base, da Agrária à Universitária, consideradas imprescindíveis lá no início dos anos 1960, celebradas em prosa, verso, comício e passeata, e causadoras de 21 anos de governo militar — sem jamais sair do blá-blá-blá. Fiquemos só com as que estão em evidência agora. A da Previdência, a trabalhista, a do ensino, a fiscal... O negócio é falar muito e adiar sempre. Deixar para amanhã o que se pode fazer hoje. Empurrar com a barriga. Aproveitar qualquer pretexto para postergar. Procrastinar todos os dias, bingo! Justamente o que prega a nova igreja. Uma encarnação perfeita da alma nacional.

Só não foi ainda registrada porque demanda um mínimo de providências concretas, e pra que correr? Devagar com o andor que o santo é de barro. Quem corre cansa. Afinal, somos perfeitos, e a pressa é inimiga da perfeição, pode nos prejudicar. Eu quero é sossego. Deixa pra depois. Ou como dizia o profeta Macunaíma:

— Ai, que preguiiiiii...

Ana Maria Machado

Imagem do Dia

Estrada do Alentejo (Portugal),1955

Receita para mau pagador

Resultado de imagem para crivella capoeira charge
Se você está inadimplente com a prefeitura do Rio, a solução é simples, desde que você atenda aos seguintes requisitos: ter uma casa num condomínio de luxo na Barra valendo mais de R$ 500 mil, um apartamento no mesmo bairro, dois terrenos em Angra, um em Cabo Frio, outro em Búzios e três carros — um patrimônio avaliado em cerca de R$ 1 milhão. A fórmula funcionou pelo menos para o vice-prefeito Fernando Mac Dowell, dono das propriedades citadas, conforme constam na Justiça Eleitoral, e que há 15 anos não paga IPTU, acumulando uma dívida de R$ 215 mil, sem contar os R$ 235 mil de ISS e os R$ 137 mil de Imposto de Renda.

Ao defendê-lo esta semana, o prefeito Marcelo Crivella deu uma curiosa resposta quando lhe perguntaram se aquele não era um mau exemplo: “Se a pessoa é rica e não paga, é um mau exemplo. Agora, se não tem condições de pagar e não pagou, então, ela precisa negociar”. Para ele, esse seria o caso do seu vice, que estaria “passando por momentos difíceis. Tenho certeza que Deus vai abençoá-lo”. Quando assumiu, Crivella mostrou-se preocupado com as distorções que encontrou nos pagamentos do IPTU e prometeu, sem aumentá-lo, rever e corrigir isenções e dívidas indevidas. Para dar uma ideia: o município conta com dois milhões de imóveis cadastrados, mas seis em cada dez não pagam o Imposto Predial e Territorial Urbano.

Na condição de um desses inadimplentes, o vice não quis se explicar para a imprensa, alegando que era uma “questão de cunho pessoal”, esquecendo-se de que a dívida pública de um homem público é uma questão pública, não pessoal. Tanto é assim que os candidatos são obrigados a apresentar declaração de todos os bens particulares, como ele e o prefeito fizeram. De um governante e de sua conduta, os eleitores têm o direito de saber tudo, principalmente se é capaz de cumprir seus deveres básicos de contribuinte.

A revelação meticulosa dessa história exemplar pelo repórter Luiz Ernesto Magalhães surtiu efeito imediato sobre o vice-devedor. Seu advogado anunciou que conseguiu parcelar a dívida do cliente em sete anos, os quais, somado aos 15 do atraso, resultam num acordo mais que vantajoso para quem ficou tanto tempo sem quitar a conta. O que não se sabe é se todos os que realmente estão passando por “momentos difíceis” terão a mesma sorte.

Zuenir Ventura

Por que se recorre a Hannah Arendt para explicar Trump

Resultado de imagem para hannah arendt caricatura
De origem judaica, Hannah Arendt (1906-1975) nasceu na Alemanha e deixou o país quando Adolf Hitler assumiu o poder em 1933. Ela passou um período como refugiada apátrida na França e foi deportada para um campo de internamento sob o regime Vichy. Em 1941, Arendt emigrou para os EUA, assumindo mais tarde a cidadania americana.

Tendo vivenciado de perto o quase colapso de uma civilização avançada, ela também se tornou uma das primeiras teóricas políticas a analisar como o totalitarismo pôde se desenvolver no início do século 20. As raízes do nazismo e do stalinismo estão descritas em seu primeiro grande livro, As origens do totalitarismo, publicado originalmente em inglês em 1951.

Desde então, o livro se tornou leitura obrigatória para muitos estudantes, e agora a densa obra política de mais de 500 páginas se tornou um best-seller. Ele tem voado das prateleiras americanas desde que Donald Trump subiu ao poder no país. Esses novos fãs de Arendt estão, presumivelmente, tentando entender para onde pode levar a presidência do republicano.

"Na compreensão de Hannah Arendt, Trump não é um totalitário; ele incorpora o que ela chama de 'elementos' do totalitarismo", explicou recentemente à DW Roger Berkowitz, professor e chefe do Centro Hannah Arendt de Política e Humanidade no Bard College em Nova York.

Berkowitz disse, no entanto, que fortes sinais de alerta não devem ser ignorados: "Arendt acreditava que um dos elementos centrais do totalitarismo é que ele é baseado num movimento (...) e Trump afirmou explicitamente que seria o porta-voz de um movimento. Essa é uma posição muito perigosa para um político."

A análise de Arendt se concentra sobre os acontecimentos do período em que viveu. Embora as suas observações não possam explicar, obviamente, tudo sobre os complexos desenvolvimentos políticos de hoje, muitas delas ainda são bastante reveladoras: o populismo de direita a se espalhar pela Europa e EUA é uma reminiscência, em diferentes formas, da situação nos anos 1920 e 1930 que permitiu que nazistas e comunistas subissem ao poder.

Os livros de Arendt proporcionam uma visão sobre os mecanismos que levam tantas pessoas a aceitar prontamente mentiras, em tempos de incerteza global. Enquanto grandes jornais, como o New York Times e Washington Post, estão resgatando os escritos da filósofa, os usuários nas redes sociais compartilham amplamente frases como esta de As origens do totalitarismo:

"Num mundo incompreensível e sempre em mutação, as massas chegariam a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditariam em tudo e nada, pensariam que tudo seria possível e nada seria verdade."

Em tal contexto, narrativas simplificadas, repetidas – e falsas –, que põem a culpa em bodes expiatórios e oferecem soluções fáceis, têm preferência sobre análises mais profundas que levam a opiniões informadas. Essa abordagem foi aplicada por líderes totalitários como Hitler, escreveu Arendt.

Neste sentido, não é nenhuma novidade a estratégia de Trump de colocar a culpa generalizada em muçulmanos e mexicanos pelo terrorismo, crime ou desemprego, e reivindicar um veto de viagem ou um muro como uma solução fácil.

Segundo Arendt, no início do século 20, os líderes totalitários basearam a sua propaganda nesta suposição explicitada em As origens do totalitarismo: "Pode-se fazer com que as pessoas acreditem em determinado dia nas mais fantásticas declarações, e esperar que, no dia seguinte, elas se refugiem no cinismo ao receber provas irrefutáveis da falsidade dessas afirmações; em vez de abandonar os líderes que mentiram para elas, as pessoas iriam clamar que sabiam o tempo todo que a declaração era uma mentira e admirariam os líderes por sua esperteza tática superior."

Agora, Trump eleva essa abordagem a novos extremos. Mesmo que nunca tenha havido tantas pessoas dedicadas a expor as mentiras do novo presidente americano, a astuta tática presidencial é fazer com que tais relatos sejam desacreditados como vindos da mídia tradicional e "desonesta". Atualmente, as crenças do movimento liderado pelo magnata são apoiadas por fontes alternativas amplamente disponíveis.

Em 1974, Hannah Arendt declarou em entrevista: "Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada."

Num relato de Arendt, de 1961, sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, ela ganhou fama com a expressão "a banalidade do mal" ao descrever o seu ponto de vista que a maldade poderia não ser algo tão radical quanto se espera.

Em seu livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, Arendt explica como crimes foram cometidos por pessoas que obedeciam a ordens cegamente, para estar em conformidade com as massas. "Há uma estranha interdependência entre a irreflexão e o mal", escreveu a filósofa em seu clássico.

A definição de irreflexão elaborada num primeiro trabalho publicado em 1958, A condição humana, poderia muito bem ter sido escrita para descrever as ordens executivas assinadas apressadamente por Trump, como também os seus esforços para justificá-las: "Irreflexão – a imprudência negligente ou desesperançada confusão ou repetição complacente de 'verdades' que se tornaram triviais e vãs – parece ser uma das características mais notáveis de nosso tempo."

Claro, tais citações fora de seu contexto podem ser fáceis e confortáveis de compartilhar online, mas elas não refletem a totalidade das ideias de Arendt. Da mesma forma, aqueles que quiserem encontrar todas as respostas em As origens do totalitarismo estão fadados a se decepcionar.

Não foi Arendt quem escolheu o título, mas seu editor. Segundo Berkowitz, ela acreditava que o mundo era complexo e confuso demais para se identificar as raízes do totalitarismo.

Ao revisitar os escritos de Arendt, tentando impossivelmente prever se seremos tomados por novas formas de totalitarismo no futuro, pode-se encontrar consolo em outras observações da filósofa: ela considerava a desobediência civil uma parte essencial do sistema político americano – e os fortes movimentos de protesto atualmente no país demonstram isso novamente. Como na famosa frase da escritora: "Ninguém tem o direito de obedecer."

Notícia de jornal

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome. 

Monumento à Grande Fome, em Dublin (Irlanda)  
Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão. 

Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.

Morreu de fome.
Fernando Sabino.

Edu e Chico cantam Tom

Falta indignação

A indignação com a negação de liberdade aos escravos só começou a contaminar a mentalidade da sociedade a partir da segunda metade do século XIX.

Ao longo de 300 anos, a Igreja Católica apoiava, os proprietários de terra precisavam, as classes médias se beneficiavam, e raros intelectuais criticavam a escravidão.

A escravidão era cômoda e natural para a “classe” branca: não havia indignação nem pretextos morais para extingui-la.

Enquanto era defendida por razões lógicas ou econômicas, a causa abolicionista adquiria algum apoio, mas não conseguia os seguidores necessários para se impor sobre a mentalidade histórica que aceitava natural a desigualdade entre brancos e negros.

A Abolição só se consolidou quando os abolicionistas conseguiram passar indignação moral contra a escravidão.


Mais de cem anos depois, a população brasileira ainda não sente indignação moral com a moderna escravidão decorrente da desigualdade no acesso educacional de cada criança, dependendo da renda da família.

A má educação ainda não é vista como um navio negreiro que leva milhões de crianças carentes em direção à pobreza, e leva o país à baixa produtividade, má distribuição de renda, violência, ineficiência e a injustiças.

Não se consegue visualizar que uma criança fora de boa escola é como se ela fosse uma pessoa sendo jogada ao mar, crescendo para ser explorada e excluída devido à negação da educação.

Não há nem mesmo um nome para indicar “negação de educação”, como havia a palavra escravidão para indicar “ausência de liberdade”.

A negação da liberdade a um escravo era visível na sua servidão, no trabalho forçado, na venda dele próprio e de seus filhos, mas a negação de acesso à educação não é vista como um crime nacional contra a humanidade; nem como uma burrice contra o futuro do país.

A partir do século XIX, a escravidão passou a ser uma aberração moral, mas ainda era um instrumento técnico para uso do mais importante vetor econômico, que eram os braços dos escravos; no século XXI, a negação da educação — “an-educação” — é uma aberração moral, mas também é uma estupidez nacional ao impedir o aproveitamento do mais importante vetor do progresso nos tempos atuais: o conhecimento de cada cidadão ou cidadã livre e educada.

Apesar disso, a ausência de educação de qualidade para todos ainda não é vista como uma indecência social e uma estupidez econômica.

Lamentavelmente, é difícil provocar a indignação da população contra esta tragédia. E sem este despertar moral, o Brasil continuará seu atraso em relação ao resto do mundo, e manterá as injustiças a que nos acostumamos dentro de nosso território, como acontecia nos séculos da escravidão.

Continuará com a moderna escravidão da negação de educação à maior parte de sua população, diante dos olhares dos empresários, das religiões, das classes médias e dos intelectuais, sem indignação diante da tragédia da educação de base, deficiente e desigual.

Há cretino pra tudo


Política foi um rio que passou em minha vida
Geddel Vieira Lima, ex-ministro da Secretaria de Governo
Resultado de imagem para geddel charge

Onde estava a Procuradoria do Estado quando Cabral desviava as verbas?

Desde que o escândalo do governo Sérgio Cabral veio à tona — e como informa Mário Assis Causanilhas, em artigo hoje publicado na TI, a roubalheira já tinha sido denunciada pela Folha de São Paulo de 27.6.2011, em matéria intitulada “Cabral depreda a Fazenda do Estado” — faço a mim mesmo uma pergunta e não consigo resposta. É uma dúvida, um peso, uma irresignação, um pesadelo, um inconformismo, uma revolta angustiante que pode até não fazer sentido, não ser procedente, e muito menos devida e justa. Mas a questão não me sai do pensamento, como cidadão e advogado, com 45 anos de militância, mormente em ações contra o Estado do Rio de Janeiro por motivos diversos.

Nem sei quantas foram as ações judiciais que advoguei contra o Estado do Rio de Janeiro. Perdi a conta. Apenas me recordo que, em busca de indenização às famílias de detentos assassinados nos presídios, foram 33 ações. E em 30 delas o Estado foi condenado. Quanto a outros tipos de ações, ora pela falta ou pelo mau atendimento médico-hospitalar, ora em defesa dos direitos do funcionalismo, ora pelo desperdício e mau emprego dos dinheiros públicos…já não sei mais quantas foram.



Um dia, o governador Leonel Brizola telefonou para meu querido pai, dele companheiro de lutas passadas. Disse Brizola: “Béja, volta e meia abro os jornais e leio que seu filho, o Jorge, que conheci ainda guri, está processando o Estado na Justiça. É um bombardeio sem fim. Peça a ele para passar para o nosso lado. Que venha comigo, ombro a ombro, me ajudar a construir um Estado que não dê motivos para estar sentado tantas vezes no banco do réus. Ele sistematicamente se põe contra o Estado, sistematicamente está contra mim”.

Papai me contou sobre a ligação de Brizola mas nada me aconselhou, nada me pediu. Ele sabia que os pleitos judiciais eram justos e que seu filho era um advogado determinado e devotado à legalidade e à defesa das vítimas.

E assim foi minha vida profissional. Nestas ações, a maioria delas indefensáveis para o Estado, me surpreendia com o empenho, a dedicação, o denodo dos digníssimos procuradores do Estado, integrantes da Procuradoria-Geral. Apresentavam defesas e contestações primorosamente redigidas e ricas em jurisprudência. Eram peças de muitas páginas, ainda datilografadas e todas elegantes.

Quando perdiam, recorriam para o Tribunal de Justiça. Depois para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal de Justiça, desde quando foi criado. Eram recursos e mais recursos. E na fase de execução da condenação, sempre apresentavam embargos aos cálculos, o que fazia com que os processos demorassem anos e anos para terminar. Depois, vinha a espera do pagamento por precatório. Eles, os procuradores do Estado, jamais perderam prazo para contestar, recorrer, impugnar e falar nos autos. Era uma advocacia estatal e tanto.


Os procuradores do Estado (que são funcionários públicos) sempre se portaram de forma elegante. E a defesa intransigente do Estado era a tônica, o ponto alto da advocacia estatal. Apenas um deles, no último processo que advoguei contra o Estado, sem motivo algum e graciosamente, se insurgiu pessoalmente contra mim. Nas petições, não se dirigia à parte autora, mas ao “advogado da parte autora” com palavras nada polidas. Era uma discussão por causa de uma pensão de 1/3 do salário mínimo, que a Justiça condenou o Estado a pagar a uma viúva de preso morto no presídio! Não era por bilhões, nem milhões…

Esse tratamento contra mim e o empenho infundado do procurador do Estado (o processo terminou e o Estado perdeu tudo) mexeu comigo. Me magoou. Eu nem conhecia (e continuo sem conhecer e nem quero conhecer) o procurador que me atacou e nem ele me conhecia. Mas os ataques contra mim foram duros. Dizem que isso “faz parte”. Não, não “faz parte não”. O tratamento precisa ser elevado entre advogados adversários. Sempre altivo, como sempre foi.


Esse intróito ou preâmbulo sobre o que aconteceu no passado, e aqui relembrado, é para justificar a “pulga que carrego atrás da orelha”, como se dizia antigamente. Ora, o artigo 176 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro é taxativo, no que diz respeito à Procuradoria-Geral do Estado, instituição “diretamente vinculada ao governador”, ao atribuir à PGE o dever de, como órgão central, supervisionar os serviços jurídicos da administração direta e indireta do Estado. Diz também que o Procurador-Geral é nomeado pelo governador. E determina:

“A Procuradoria oficiará obrigatoriamente no controle interno da legalidade dos atos do Poder Executivo e exercerá a defesa dos interesses legítimos do Estado, incluídos os de natureza financeira-orçamentária, sem prejuízo das atribuições do Ministério Público”.

Numa tradução simultânea e de fácil entendimento: tudo que o governador assinar, decretar, decidir, acordar, discordar, contratar, rescindir, refazer e tudo mais que venha comprometer o Estado referentemente à legalidade e ao interesse “financeiro-orçamentário”, precisa, obrigatoriamente, do “placet”, do “nihil obstat”, do aval, da concordância da Procuradoria- Geral do Estado.

Em se tratando de atos praticados pelo chefe do Executivo, também obriga que a procuradoria-geral esteja representada também por sua chefia, o Procurador-Geral do Estado, que é quem despacha com o governador. É intervenção personalíssima, portanto. E se eventual e excepcionalmente ocorrer delegação para tanto, o delegante (o procurador-geral) assume todas as responsabilidades pelo que fez ou deixou de fazer seu delegatário-preposto (um dos integrantes da PGE).


Ora, meu Deus, diante dessa avalanche de negociatas, isenções de impostos, contratos fictícios, licitações, aditivos, troca de intere$$es, marcados pela escancarada corrupção no governo Sérgio Cabral (por enquanto), mais ainda no Estado que sediou a Copa do Mundo de Futebol e numa cidade que recebeu a Olímpiada 2016, onde obras faraônicas foram feitas e o um mar de dinheiro público foi empregado, à torto e à direito, por onde andava a Procuradoria-Geral do Estado?

Que fez ou deixou de fazer o procurador-chefe durante o governo Cabral? Ou tudo aconteceu às escondidas da chefia dos advogados estatais, a quem cumpria o dever de gritar e até brigar, se preciso, para dizer: “Não. Isso não pode”? Mesmo assim, na hipótese de que as coisas sujas, porcas e criminosas tenham sido feitas às escondidas da PGE, a publicação no Diário Oficial era obrigatória. Logo, ninguém pode dizer que desconhecia. Menos, ainda, a Procuradoria-Geral do Estado.

E não se tem notícia de que ninguém, absolutamente ninguém, tenha levantado a voz, tenha agido com aquele mesmo empenho e ardor que tiveram os procuradores do Estado com os quais me defrontei nos processos judiciais.

É justamente essa a pergunta que me faço e não encontro resposta. Que fez ou deixou de fazer a Procuradoria-Geral do Estado, em defesa do Rio, para livrá-lo do mar de corrupção que o governo Cabral o mergulhou o Estado? Não está escrito na Constituição do Estado que “a procuradoria oficiará obrigatoriamente no controle interno da legalidade dos atos do Poder Executivo”? Ou tudo foi legal?

Por favor, me tirem esse pesadelo. Porque tenho pela Procuradoria-Geral do Estado — por onde passaram amigos e parentes tais como Antonio Vieira de Melo, Letácio Jansen, Cotrim Neto e uma plêiade de juristas notáveis e insubstituíveis — a máxima reverência, todo respeito e admiração.

Entre o péssimo e o ruim

Redução de danos tem sido palavra-chave para entender (e explicar) a política brasileira contemporânea. Trocar Dilma Roussef (PT) por Michel Temer (PMDB) foi, por exemplo, um desses momentos em que o princípio se impôs, goela abaixo.

Temer estava (está) longe de ser um modelo alternativo: presidiu o PMDB nos quatro governos petistas, foi adepto da “relação carnal” (expressão de José Dirceu) entre os dois partidos, compartilhando votos, cargos e delitos. Era (é) a personificação de seu partido. Mas Dilma superou as piores expectativas.

Com a economia em ruínas, desemprego galopante e o país em desordem, e a presidente convicta de que nada disso ocorria, a opção que se estabeleceu foi entre o abismo (Dilma) e a pinguela (Temer). Pinguela, pois – e nela estamos.

Exemplos equivalentes não faltam.

Na recente eleição para a prefeitura do Rio, o eleitor se viu, mais uma vez, entre o fogo e a frigideira, obrigado a escolher entre dois Marcelos: o Freixo (PSOL), patrono dos black blocs, adepto do estatismo alucinado, ou o Crivella (PRB), sobrinho do proprietário da Igreja Universal, bispo Macedo. Optou por Crivella, a frigideira.

Fiquemos com o caso mais atual: a escolha, na quinta-feira, de Edson Fachin para relator da Lava Jato no STF, em substituição a Teori Zavascki, morto mês passado em acidente de avião.

Temeu-se pelo fim da Lava Jato, já que as alternativas sucessoras - Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, integrantes da 2ª turma do STF – não parecem entusiastas da operação judicial em curso. Celso de Mello, tido como a escolha ideal, alegou questões de saúde, provavelmente para não a perder de vez.

Os integrantes da Lava Jato, incluindo o juiz Sérgio Moro, chegaram a celebrar a escolha. Mas não por sabê-la grande coisa, senão por ser a menos problemática – e menos explícita.

Fachin – e isso é constatável em vídeos na internet – foi um petista fervoroso, defensor do politicamente correto e dos movimentos sociais revolucionários (MST, CUT, MTST, UNE etc.).

Chegou a subir num palanque, em 2010, para pedir votos para a candidata Dilma Roussef, que, agradecida, viria a nomeá-lo ao STF em 2015, no início da crise do Petrolão. Cumpriu, quase sempre, o papel a que seus patronos o destinaram.

Aderiu, por exemplo, à tese do fatiamento do processo, levantada por Toffoli, reduzindo o papel do juiz Sérgio Moro. Com tal perfil, a que se somam diversos outros momentos, não haveria por que vislumbrar, com sua relatoria, maiores novidades.

Mas, a exemplo de Teori, de quem era amigo, não parece disposto a remar contra a maré e desafiar os fatos, como, por exemplo, já o fizeram Toffoli e Lewandowski, este chegando, inclusive, a fatiar um mesmo dispositivo da Constituição para preservar os direitos políticos de uma presidente cassada. Fachin sabe que relatará sob intensa pressão pública, interna e externa.

A Lava Jato, hoje, estende seus tentáculos para fora do país. A Odebrecht, cujas delações relatará, está sendo investigada e processada em diversos países da América Latina – Panamá, Colômbia, Equador e até Venezuela. Seus delitos (e estamos falando de uma só empreiteira; há diversas outras) começam a chamar a atenção de autoridades dos EUA. É só o começo.

As investigações, por meio de convênios, mobilizam outros países, dispostos a dar nome aos bois – e sobretudo a confiná-los.

Não por outro motivo, Teori decidira quebrar sigilos e dar sequência, sem concessões políticas, ao processo. Fachin, diz-se, não terá outra alternativa. A Lava Jato é maior que seus eventuais adversários – e não pertence a ninguém, senão ao país. Tornou-se o símbolo de uma ansiada nova era para a vida pública brasileira.

Paisagem brasileira

Porto de Santos (1890), Benedito Calixto

A arte de comer pelas beiradas

O chinês Sun Tzu faz sucesso dois mil e quinhentos anos depois de morto. Ele escreveu “A Arte da Guerra”, livro que deveria se chamar “A Arte de Comer o Inimigo pelas Beiradas”. O livro faz tanto sucesso que há gente ganhando dinheiro ensinando essa arte para empresários. Eta gente arteira! Segundo Sun Tzu, a melhor batalha se vence sem disparar as armas, dobrando o oponente através da exibição de força e de organização. Em outras palavras, deve-se convencer o inimigo de que perderá a luta, caso ouse o enfrentamento. Esta é hoje a estratégia usada pela China em seu relacionamento com o exterior. Aprendeu com seu próprio mestre. Sua pujança e poderio inibem desafios. Tornou-se a economia da qual o mundo depende para crescer. Todos querem vender para eles. Os chineses tiram proveito da situação. Pergunte ao dalai lama. Sob ameaça de retaliação, Pequim já obrigou muitos países a desconvidar o líder budista para visitá-los. Pragmatismo comercial.

Resultado de imagem para trump e a china charge

Sem disparos, também, foi a conquista dos Estados Unidos através do controle da maior arma do capitalismo: o capital. Com reservas trilionárias em dólares, os comunistas aterrorizam Washington quando insinuam que não mais comprarão papéis do Tesouro ianque. O dólar viraria pó, caso esse dinheiro fosse direcionado, por exemplo, para o ouro (cujo preço iria para o espaço). Com tamanho trunfo na manga, Pequim adia para sempre a independência do Tibete (nascente dos principais mananciais de água chineses) e, aos poucos, reabocanha Taiwan (que também tenta aproveitar os bons ventos do continente). Ao mesmo tempo, adquire empresas e terra em vários países. Sem que percebamos, em muitas fábricas e fazendas no Ocidente, já se fala mandarim. 

 Em outra estratégia de Sun Tzu, a China destrói os parques industriais de muitas nações, inundando-os com produtos baratos. Não poupa os Estados Unidos ou Bangladesh, o Brasil ou a Alemanha. Tentará ela, no futuro, quando detiver o monopólio de milhares de artigos, impor os preços que bem entender? Por que resistiria à tentação?

 A revista The Economist antecipou para 2018 a transformação do país em maior economia global, desbancando a norte-americana. Daí o medo do pernóstico Trump: não quer engolir o segundo lugar justamente quando é presidente. Vai fazer de tudo para barrar o crescimento chinês. Até guerra, podemos esperar. A China será o inimigo público número 1 da Era Trumpete (ou Era Topete, sei lá). Santo de casa faz milagre, sim. Os chineses que o digam. Comendo pelas beiradas, Sun Tzu vem ganhando a guerra para eles. Sem um disparo. Por enquanto.

P.S. Para quem não gosta de ler, Sun Tzu também escreveu: “Quanto mais você ler e aprender, menos seu inimigo saberá”.

Jogos de cartas marcadas e recorrência a casuísmo

Manobras políticas vêm escancarando facetas corruptas e matreiras dos dirigentes do país. Elas decorrem de interpretações malandras da Constituição Federal para acomodar interesses de autoridades que ignoram os anseios da população expressos em calorosas manifestações desde 2013. Esses políticos tornaram-se mais afoitos, nos últimos meses, porque a operação Lava Jato vem desbaratando esquemas de corrupção que podem incriminar importantes figuras da República.

Tentando barrar a merecida punição, vários dão declarações contra o juiz Sergio Moro, os procuradores e a Polícia Federal, mantendo confabulações com os diversos segmentos do Estado para usar brechas da legislação que viabilizem recursos extraordinários em benefício desses ocupantes dos altos cargos e de seus satélites.

Analisando a práxis política de países desenvolvidos, onde prevalece o Estado moderno caracterizado por ordenamento jurídico enxuto para encaminhar interpretações objetivas da legislação, não identificamos ranço de casuísmo e personalismo, enquanto há destaque para o princípio maior da democracia de que todos são iguais perante a lei. Neles, existe também compromisso com a austeridade, pois os recursos públicos são parcimoniosamente gastos para avançar no bem-estar da comunidade e não gerar fosso social entre os dirigentes e os contribuintes. Justamente nisso o Brasil falha vergonhosamente, porque aumenta sempre os privilégios de políticos, magistrados, promotores e sua monumental equipe de assessores recrutados por critérios familiares e partidários. Embora haja servidores públicos que mantenham reputação ilibada, raros renunciam às gratificações especiais, aos planos de saúde ilimitados e a outros confortos impossíveis aos cidadãos comuns. Ou seja, mandatários e servidores públicos gozam sem acanhamento uma vida nababesca, enquanto a maioria de brasileiros está mergulhada em miséria, doença, ignorância e desqualificação profissional.

Como podemos ter esperança de que este país vai melhorar se nossas autoridades estão sempre manobrando para perenizar seus privilégios sem medidas concretas que assegurem o resgate definitivo de seus eleitores da servidão, do obscurantismo e da dependência econômica? Como podemos conferir credibilidade a dirigentes que promovem conluios para aumentar seus currais eleitorais, carimbar o orçamento em obras realizadas por empreiteiros amigos e manipular licitações ajustadas a empresas próprias e de seus apaniguados?

As eleições nas duas Casas legislativas mostraram que prevalece uma massa de parlamentares dispostos a conchavos além de seus partidos. Ignoram suas divergências ideológicas para construir uma agenda corporativista ajustada aos interesses do Poder Executivo, como se fossem subservientes a ele. Prestam-se, então, a acordos para conduzir um senador sem credibilidade entre os eleitores esclarecidos e transgridem norma da Constituição Federal, perdendo o respeito dos brasileiros.

Por que Trump quer calar a imprensa?

Não faz muito tempo, analistas sérios compravam a tese de que a Turquia era uma “democracia islâmica”. Não que estivessem errados. Ao menos em princípio, não há incompatibilidade conceitual entre o islã e a liberdade; e, de resto, não faltavam indicadores atestando um bom grau de normalidade democrática na Turquia. O que talvez tenha faltado a esses analistas era a observação de um detalhe apenas: desde que Tayyip Erdogan assumira o poder, jornalistas vinham sendo fustigados pelas autoridades, no início por meio de armadilhas ocultas e, depois, em ataques ostensivos. Por esse detalhe, esse minúsculo detalhe, era possível diagnosticar que a vocação democrática de Erdogan não passava de jogo de cena.

Hoje, não há mais quem não veja. A Turquia está sob um regime de força. Principalmente depois da tentativa de golpe do ano passado, o governo fechou emissoras de rádio, encarcerou repórteres e editores, tirou do ar sites noticiosos e calou setores inteiros da imprensa. A máscara caiu mais recentemente, mas, desde antes, quem tivesse olhos para o tratamento que os jornalistas recebiam por lá saberia o que estava por vir.

Resultado de imagem para trump charge

Com Vladimir Putin, na Rússia, as ilusões não foram tão longe. Além de intimidações violentas, há registros de jornalistas críticos do novo czar da Rússia que foram assassinados, como Anna Politkovskaya, que morreu em 7 de outubro de 2006. Bastava prestar atenção nisso para saber que estava em marcha uma sangrenta escalada do arbítrio, impulsionada pela manipulação da opinião pública. Para Putin, a imprensa é uma hóspede indesejável, como para Erdogan, pois os jornais livres atrapalham o consenso compulsório. O jornalismo não é indispensável à democracia por ser bom, por ser virtuoso. Ele é indispensável, mesmo quando vicioso e pestilento, porque desorganiza os projetos autoritários. O jornalismo é vital porque atrapalha, não porque ajuda.

Se você quer saber se a democracia vai bem, vá pelo critério da liberdade de imprensa. Olhemos para o México, por exemplo. Lá existe claramente uma sociedade democrática. No México, quem ameaça, fere e mata profissionais de imprensa não é o poder, mas bandos armados ligados ao narcotráfico. Ainda assim, alguns aspectos da vida institucional daquele país inspiram preocupação. Em casos documentados e conhecidos internacionalmente, a morosidade das investigações policiais e dos processos judiciais obstruiu o esclarecimento e a punição de crimes cometidos contra jornalistas. Aí, é o caso de perguntar: será que a democracia vai bem numa sociedade em que não há expectativa de justiça? Existe democracia plena se o Estado não é capaz de proteger as pessoas que trabalham na imprensa? A questão não é simples.

Ao poder democrático não basta que não ataque jornalistas – é preciso que ele disponha de meios eficazes e de determinação política para assegurar a integridade e a segurança física, psíquica e moral dos jornalistas que o fiscalizam e o criticam. O poder democrático é aquele que respeita, com atos e com palavras, a dignidade das redações.

É por essa lente que devemos olhar agora para Donald Trump. Ao contrário de Erdogan, que por vezes disfarçou sua ferocidade, o novo presidente americano vangloria-se da própria. Tem uma briga declarada não com um ou outro setor da “mídia” (palavra que ele usa para designar a imprensa), mas com a imprensa por inteiro. Logo após tomar posse, durante uma visita oficial ao escritório da CIA, disparou suas ogivas verbais: “Estou 1.000% com vocês (ele se dirigia aos funcionários da CIA). E a razão de vocês serem a minha primeira opção é que, como vocês sabem, eu tenho uma guerra em curso contra a mídia. Eles estão entre as pessoas mais desonestas da Terra”.

Quando um presidente da República se declara em “guerra” contra a imprensa, a sociedade vê-se diante não de um discurso, mas de um ato material. Uma declaração nesses termos, vinda do chefe de Estado da maior potência militar do planeta, é uma agressão consumada. Para que não restassem dúvidas quanto a isso, poucos dias depois, na quinta-feira passada, o principal estrategista da Casa Branca, Stephen Bannon, afirmou que a mídia é um “partido de oposição” e reforçou a artilharia: “A imprensa deveria sentir-se envergonhada e humilhada. E manter sua boca fechada e apenas ouvir durante um tempo. A mídia elitista errou, errou 100%” (ele se referia às pesquisas publicadas nos jornais, e aos comentários da grande maioria dos articulistas, que davam como certa a vitória de Hillary Clinton).

Enunciado mais claro, impossível. Mesmo reconhecendo que boa parte dos veículos jornalísticos dos Estados Unidos errou em seus prognósticos, mesmo reconhecendo que houve partidarismo favorecendo a candidatura do Partido Democrata, mesmo reconhecendo que a imprensa deve aprender a ouvir mais do que tem o hábito de ouvir, nenhum integrante da cúpula do Poder Executivo em nenhum país democrático tem o direito de mandar a imprensa ficar de “boca fechada”. Ora, se a imprensa fecha a boca, a democracia emudece. Bannon não se abala. Exige com palavras (por enquanto) o que Putin e Erdogan impuseram com violência.

Costuma-se dizer que os Estados Unidos são a maior democracia da Terra. Pois essa democracia não é inabalável. Ela está em perigo. Veremos agora se as instituições democráticas darão conta de conter os excessos selvagens de Donald Trump e seus aduladores, excessos contra imigrantes, contra os vizinhos do México e contra a liberdade de imprensa. Veremos se a democracia resistirá.

A julgar pelo nível de infâmia de sua retórica, Trump é candidato a ser pior do que Putin e Erdogan somados. A ambição de poder que ele acalenta não cabe nos sonhos dos pais fundadores do federalismo americano e nos ideais de uma comunidade internacional regida pelos direitos humanos.