sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Restos a pagar

O fim de ano coincide com a divulgação do número de assassinatos no Brasil, nos primeiros 15 anos do século 21: 278.839. Mais do que a Síria, que vive uma longa guerra.

Anualmente são assassinadas 60 mil pessoas. A cada dez minutos alguém perde a vida pelas mãos de outro.

Essa mortandade dispersa passou ao largo da agenda política brasileira. Lembro-me de que, no início do processo de democratização, o foco voltou-se para os direitos humanos.

Em São Paulo, foi criada a Comissão Teotônio Vilela, da qual fiz parte. No Rio, Brizola implodiu o presídio da Ilha Grande.

A visão dominante na época tendia a considerar o crime nas ruas do Brasil como consequência direta da desigualdade social, da aspereza da vida nos bairros pobres. Mas os números indicam que países ainda mais pobres que o Brasil têm índices menores de assassinatos. É preciso mais que políticas sociais.

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Uma projeto nacional de segurança, monitorado diretamente pelos presidentes que mais ficaram no cargo, Fernando Henrique e Lula, nunca veio à luz. Suponho que exista uma certa tendência aristocrática a considerar o fato policial algo secundário diante dos grandes temas do País.

Os jornais de qualidade, no passado, estruturavam seu trabalho como se fossem uma réplica do próprio governo, com suas pastas ministeriais: política, relações exteriores, economia e agricultura. Havia setor policial, com legendários repórteres, mas era de longe um setor secundário. Não dava o que pensar. Era como se multiplicassem pequenas tragédias, o que desde os gregos parecia algo integrado ao destino humano.

No momento em que se esgota o período inicial da democratização, o abismo entre a gravidade da violência no Brasil e seu lugar na agenda brasileira cresceu enormemente.

Estamos no limiar do ano novo, em que as eleições prometem ser o tema central. Com vários pré-candidatos em cena, a questão da violência ainda passa ao largo, exceto para Jair Bolsonaro, que enfatiza sua importância. Suas propostas, no meu entender, tocam num tema inescapável: como envolver a sociedade na autoproteção, como descentralizar uma tarefa maior que o Estado?

A resposta de Bolsonaro para esse tópico é legalizar o porte de arma, ampliando a capacidade de defesa individual. É um caminho seguido nos EUA, certamente confirmado nas urnas com a vitória de Trump. Mesmo lá é cotidianamente combatido, pela sucessão de massacres cometidos por atiradores isolados.

O mesmo princípio de envolvimento social levaria ao uso de outras armas que não as de fogo: a informação e uma intensa troca entre polícia e sociedade. Sempre que falo dessa tema, os defensores das armas contestam: que fazer num assalto, com um smartphone na mão?

Possivelmente, nada, a não ser configurá-lo antes para ser rastreado e oferecer a pista à polícia. Mas em outras situações, a capacidade de prevenir por meio de avisos, mapas e dados que brotam da interação permanente pode salvar muitas vidas.

Se é para falar em experiência americana, a mais útil no Brasil seria a de estimular iniciativas da sociedade, até independentes do governo. Nossa expectativa de que o governo resolva sozinho é mais parecida com a tendência europeia.

Para alcançar esse projeto de cooperação será preciso uma longa marcha através de uma cultura que desconfia da polícia e romantiza o crime. Certamente isto tem raízes em nossa História colonial. Não foi à toa que Dilma sacou Joaquim Silvério dos Reis, o traidor da Inconfidência Mineira, para compará-lo aos delatores da Lava Jato. É um absurdo igualar uma luta de libertação nacional ao assalto à maior empresa pública do País. Mas ela escolheu a imagem pelo seu conteúdo emocional.

Claro que essa cultura tem também alguma referências concretas: a qualidade da polícia. Transplantada dos EUA para o Brasil, a campanha antidrogas nas escola, feita com palestras de policiais, é uma a experiência não funcionou bem. Os policiais brasileiros não despertavam a mesma empatia nos estudantes.

Mas se o argumento para não cooperar está baseado na qualidade da polícia, por que não dar uma volta nele e perguntar: o que vem primeiro, a baixa qualidade da polícia ou a subestimação cultural do seu papel?

Os países em guerra põem esse tema no topo da agenda, entre outras razões, porque morre muita gente. Se esse argumento tem algum peso, a violência deveria estar no topo da agenda nacional num país onde morre muito mais gente do que na guerra.

A diferença é que na guerra as pessoas se organizam para matar. Aqui alguns se organizam em quadrilhas e em grande parte os assassinos são indivíduos atomizados. Matam as outras vivendo sob a mesma bandeira nacional, às vezes no mesmo bairro ou o sob o mesmo teto. Vivemos uma guerra visceral.

Os contornos da campanha de 2018 ainda são muito difusos. Se o tema da segurança pública for tratado com a formalidade burocrática típica dos nossos programas políticos, os candidatos farão discursos para um País imaginário.

A experiência dos últimos anos nos desgastou muito. Brigas, ofensas, isso enfraquece a possibilidade acordos nacionais em alguns temas.

Em segurança pública, reconheço que é difícil um acordo com forças que romantizam o crime e veem na polícia um instrumento de opressão das classes dominantes. Se também aí não for possível um acordo nacional, que nossa geração de políticos, cujo ciclo se encerra, ao menos reconheça o fracasso retumbante num tema: o saneamento básico. Esquerda, direita, centro, estamos todos na mesma m...

Avançar numa tarefa que alguns países alcançaram ainda no século 19 é algo que dispensa mimimis, estrelismos e bate-bocas: seria uma maneira digna de encerrar um período cuja etapa derradeira foi uma distância abissal entre sistema político e sociedade.

Fernando Gabeira

Brasil tem maior concentração de renda do mundo entre o 1% mais rico

Quase 30% da renda do Brasil está nas mãos de apenas 1% dos habitantes do país, a maior concentração do tipo no mundo. É o que indica a Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, coordenada, entre outros, pelo economista francês Thomas Piketty. O grupo, composto por centenas de estudiosos, disponibiliza nesta quinta-feira um banco de dados que permite comparar a evolução da desigualdade de renda no mundo nos últimos anos.

Os dados sobre o Brasil se restringem ao período de 2001 a 2015, e são semelhantes em metodologia e achados aos estudos pioneiros publicados pelos pesquisadores brasileiros Marcelo Medeiros, Pedro Ferreira de Souza e Fábio Castro a partir de 2014. No caso de Souza, pesquisador do IPEA, o trabalho construiu série histórica sobre a disparidade de renda no Brasil desde 1926. A World Wealth & Income Database (base de dados mundial de riqueza e renda) aponta que o 1% mais rico do Brasil detinha 27,8% da renda do país em 2015, enquanto no estudo do brasileiro, por diferenças de metodologia, a cifra é 23%.

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Segundo os dados coletados pelo grupo de Piketty, os milionários brasileiros ficaram à frente dos milionários do Oriente Médio, que aparecem com 26,3% da renda da região. Na comparação entre países, o segundo colocado em concentração de renda no 1% mais rico é a Turquia, com 21,5% em 2015 — no dado de 2016, que poucos países têm, a concentração turca subiu para 23,4%, de acordo com o levantamento.

O Brasil também se destaca no recorte dos 10% mais ricos, mas não de forma tão intensa quanto se observa na comparação do 1% mais rico. Os dados mostram o Oriente Médio com 61% da renda nas mãos de seus 10% mais ricos, seguido por Brasil e Índia, ambos com 55%, e a África Subsaariana, com 54%.

A região em que os 10% mais ricos detêm menor fatia da riqueza é a Europa, com 37%. O continente europeu é tido pelos pesquisadores como exemplo a ser seguido no combate à desigualdade, já que a evolução das disparidades na região foi a menor entre as medidas desde 1980. Eles propõem, de maneira geral, a implementação de regimes de tributação progressivos e o aumento dos impostos sobre herança, além de mais rigidez no controle de evasão fiscal.

O grupo de economistas reconhece que existe "grandes limitações para nossa capacidade de medir a evolução da desigualdade". Muitos países não divulgam ou sequer produzem dados detalhados sobre renda ou desigualdade econômica. A pesquisa se baseia, portanto, em múltiplas fontes, como contas públicas, renda familiar, declaração de imposto de renda, heranças, informações de pesquisas locais, dados fiscais e rankings de patrimônio. O brasileiro Pedro Ferreira de Souza concorda: "Na minha tese, do ano passado, o Brasil também aparece em primeiro na concentração de renda no topo, mas não gosto de falar em campeão mundial porque há muito ruído e incompatibilidade nos dados. Prefiro dizer que está sem dúvida entre os piores", diz o pesquisador, cujo trabalho se tornará livro no ano que vem por ter recebido o Prêmio Anpocs de Tese em Ciências Sociais.
Investimentos

Os pesquisadores que trabalham sob a grife de Piketty, que se tornou mundialmente famoso com a publicação em inglês de O Capital no Século XXI, em 2014, destacam ainda a importância de investimento público em áreas como educação, saúde e proteção ambienta. Mas chamam atenção para a perda de poder de influência dos governos dos países mais ricos do mundo.

"Desde os anos 1980, ocorreram grandes transferências de patrimônio público para privado em quase todos os países, ricos ou emergentes. Enquanto a riqueza nacional aumentou substancialmente, o patrimônio público hoje é negativo ou próximo de zero nos países ricos", diz a pesquisa. Segundo os autores, isso obviamente limita a capacidade dos governos de combater a desigualdade.

Para os pesquisadores, o combate à desigualdade econômica pode contribuir inclusive para o combate à pobreza — que caiu no mundo nos últimos anos, inclusive no Brasil. "A pobreza é essencialmente uma forma de desigualdade. Não acho possível separar as duas", diz Marc Morgan Milá, responsável pela parte do Brasil na pesquisa. Para ele, a meta deveria ser promover um crescimento mais balanceado, em vez do cenário de livre mercado em que os mais pobres se beneficiam de forma modesta dos ganhos dos mais ricos.

Diferente aqui?

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Ordinariamente todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a concessão, nem o instinto político, nem a experiência que faz o estadista. É assim que há muito tempo em Portugal, são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?
Eça de Queiroz

Ricos e pobres no Brasil

Ser rico no país é bom, mas deve ser dissimulado. Provavelmente porque a riqueza (mas não a nobreza) tem, na sua concepção brasileira, um toque balzaquiano de roubalheira

Na “Folha de S.Paulo” do dia 6 do corrente, leio que “90% dos brasileiros acreditam estar entre os mais pobres” — ou seja, nove entre dez de nós se classificam como estando na população com renda mais baixa do país, escapando da classificação como ricos, de acordo com a pesquisa realizada pelo Datafolha.

A matéria assinada por Júlia Barbon reitera os mesmos achados de uma pesquisa qualitativamente orientada que realizei com a colaboração da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, em 2003, ao mesmo tempo em que abre a oportunidade de elaborar outras dimensões afins a esse tema crucial.

Numa pesquisa realizada há mais de uma década, encontrei os mesmos resultados: apenas 2% dos brasileiros seriam ricos! A maioria absoluta (98%) dos investigados considerava-se “classe média” ou “pobres”. E, eis um dado surpreendente: 33% da classe de consumo A-B (caracterizada pelos parâmetros da época) definiam-se como pobres!


Ser rico no Brasil é bom, mas deve ser dissimulado. Provavelmente, porque a riqueza (mas não a nobreza) tem, na sua concepção brasileira, um toque balzaquiano de roubalheira, de má-fé ou de — adivinhem! — corrupção. E os jornais estão aí para demonstrar isso de modo avassalador.

Numa entrevista realizada em São Paulo, em 1992, numa pesquisa que originou o projeto da FGV, um informante de “classe média” insistia em dizer que era “pobre” enquanto eu tentava inutilmente demovê-lo, apontando para os bens que possuía. Um ponto demarcador de sua opinião porém, era definitivo. “Sou ‘pobre’ — explicava — porque tenho que trabalhar!” O trabalho como batente e castigo, e não como chamado, ideal ou vocação, obrigava-o a sair de casa.

Não há dúvida de que os “ricos” são lidos no Brasil como milionários e, por isso, quem pertence tecnicamente e por critérios “objetivos” (bens, moradia, educação etc...) à chamada “classe média” se diz “pobre”. Na minha opinião, o eixo rico/pobre é fundacional na cosmologia brasileira marcada pela escravidão e por gradações.

O sumiço dos ricos não seria porque os pobres não têm ideia da miséria geral e da imensa desvalorização do trabalho, mas porque têm uma clara noção da enormidade dos seus ganhos e estilo de vida, tal como encontrei nos meus achados dos anos 90 (a serem publicados em livro no próximo ano). Os “ricos” são os que escapam do trabalho. São os que, além de terem mochilas e malas de dinheiro, têm os bens bloqueados pela Justiça, possuem sítios e muitas moradias e — eis um ponto importante — são abençoados com sorte, talento (caso dos artistas e astros de futebol) e com a “política” que os leva ao “governo” — cujos tesouros, sendo vagamente de todos, não são de ninguém...

A desconfiança da riqueza obriga a escondê-la. Bom seria fazer uma pesquisa com os muitos ricos.

Suas respostas ajudariam a determinar quem é pobre e, indo além, compreender a mitologia da “classe média” — essa criação do capitalismo americano.

Um outro elemento que o nosso trabalho revelou foi a crença absoluta na impossibilidade de jamais liquidar a polaridade rico e pobre. Para os nossos entrevistados, ricos e pobres estavam ligados por laços de dependência, o que certamente explicava a legitimação de riqueza espúria, desde que quem conseguisse locupletar-se não deixasse de lado suas obrigações morais com os pobres. E aí, penso, está o centro do nosso populismo. Os ricos precisam dos pobres e estes dos ricos. Há um enlace ético que, obviamente, dispensa soluções liberais, leva à tentação do despotismo populista, amplia a idealização do Estado como um estabilizador social exclusivo e elimina as classes intermediarias.

Não teríamos luta de classes, mas um pacto entre ricos e pobres. Estes “cuidando” daqueles, como gostam de prometer os populistas.

A ausência da visão quantitativa (saber com mais precisão quanto ganham os outros) leva a um reforço da desigualdade, vista não como um erro ou engano do sistema, mas como um valor cosmológico essencial e, neste sentido, correto, como mostram as análises críticas do capitalismo. A “classe média” como uma mediatriz entre os extremos de riqueza e pobreza não tem lugar numa sociedade que saiu do escravagismo sem abandonar sua matriz aristocrática, na qual ninguém é igual.

Nem perante a lei, nem perante o Estado, o qual, no caso do Brasil, salvou da “pobreza” a massa de “brancos” apadrinhados que não podiam realizar as tarefas destinadas aos ex-escravos. Não era por acaso que minha avó chamava a nossa família de funcionários públicos de “pobres envergonhados”.

Há mais a dizer, mas sugiro que o leitor aguarde o livro.

Gente fora do mapa

C'est la belle vie : Foto

Como pôde o governo perder o controle da base que um dia teve?

Jornalista liga; quer compreender o que, para ele, é paradoxo: como pode o mesmo governo que, há um ano, colecionava vitórias no Congresso, ralar, agora, o couro para aprovar a reforma da Previdência Social. Como pôde perder o controle do processo e a tutela da própria base que despachou Dilma e o instalou no Planalto?

A política do Brasil não é nem mesmo para profissionais. Frequentemente, dá volta em torno do próprio eixo; sem voltar ao mesmo ponto, gira e evolui como espiral. Como disse Riobaldo, se vive ''puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro, não fantaseia''. Compreender — e explicar — esse processo é um pouco disso: desvendar sertões e se sujeitar às armadilhas do caminho.

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Com efeito, os mais afoitos vislumbraram o sucesso inicial do governo, sem compreender, no entanto, a natureza e a fonte do triunfo momentâneo. O sistema se esgotou, travou, com Dilma; Temer deu um reloading, sem renovar as bases do pacto de governabilidade, o fisiologismo, que a dinâmica política transformou em hiperfisiologismo: a super e desmedida distribuição de recursos oficiais. Dá certo, às vezes, mas depende de muita coisa para ser durável.

Acontece que, como tudo no mundo da escassez, há um descompasso entre o querer e a realidade; enquanto a voracidade é infinita, os recursos são limitados, sobretudo, em tempos de crise econômica e fiscal. Se no princípio, o espólio deixado pelo PT pôde ser redistribuído, no médio prazo, eles se escassearam tendendo ao esgotamento.

Antes de moral, a questão é de simples aritmética: na crise, os recursos tendem a zero enquanto o descontentamento cresce em progressão geométrica. Desejo e ambição ardem, mas a fonte seca. Processos assim exigem repactuação e habilidade dos lideres para protelar recompensas num sistema que ligou o ''salve-se quem puder''.

Todavia, o costume cega e o sistema se nega a admitir sua fragilidade. Torna-se um crente, que confia, fundamentalmente, no final feliz. Assim, a mentalidade torna-se dependente do hábito, corrompendo a relação e despertando o vício. Ninguém se tocou que, no longo prazo, as contas não fechariam?

Acresce a isto o fato de o governo ter-se visto obrigado a queimar mais recursos, em questões paralelas. No processo movido pelo procurador-geral da República, a aflição foi tanta que o gasto resultou perdulário, tantas as concessões feitas à bancadas, corporações e lideranças. No limite da salvação, tudo foi prometido: mudanças de legislação, refinanciamentos de empresas, estados, municípios. A fonte secou.

O governo comprometeu recursos de que já não dispunha; para boa parte da base, prometeu e não pagou — e, àquilo que honrou, deixou concentrar nas mãos de caciques que limparam o pasto, deixando as bases sem chão. Revelou-se a síndrome do cobertor curto: a cabeça está aquecida, mas como resolver o frio nos pés? Deputados reclamam de ministros de seus próprios partidos.

Na retomada do esforço das reformas, o governo tornou-se o pior tipo de devedor: o cara-de-pau que, sem ter saldado a dívida anterior, outra vez bate à porta e pede mais. Vender e comprar fiado compreende toda uma arte de coordenação, confiança e cooperação. Faz parte do passado.

Hoje, o governo se esforça, mas pelos canais institucionais tudo é muito complicado. Executar orçamentos implica em burocracia e demanda o tempo que se escasseia freneticamente, em véspera de eleição. De que adianta prometer recursos se a ''inauguração'' chegará após a eleição? Se é que chegará.

Restariam dois caminhos igualmente duvidosos: a esperança de sucesso econômico capaz de empolgar o eleitor e favorecer as bases; ou a ação externa do empresariado, consciente da necessidade das reformas e disposto a pressionar deputados e suas bases.

Ora, se a reforma é impopular e desgastante, seu efeito na economia deveria ser certo e exuberante para que, de fato, potencialize o governo, favoreça as bases e, portanto, valha o risco. Mas, quem pode garantir o vigor eleitoral extraordinário, quase mágico, da retomada econômica?

Por sua vez, em tempos em que doações eleitorais (legais) de empresas já não são mais permitidas, a influencia do mercado é declinante. As possibilidades e a disposição de empresas e setores econômicos em contribuir eleitoralmente para as campanhas não são as mesmas de 2014, por exemplo.

''Como sair dessa?'', pergunta por fim o repórter. Difícil dizer. O governo pode ter opções que desconhecemos, por pouco ortodoxas e transparentes — não seria inédito. Leviano, porém, é especular de onde viriam recursos capazes de saciar apetites, a termo; sem atiçar a mídia, o Ministério Público e a Justiça.

O pragmatismo não se prende a questões abstratas, mas também é fato que órgãos de controle são hoje muito mais concretos. Tudo fica complexo e imprevisível; o desempenho no passado não oferece saídas para o presente, respondo ao repórter. Voltando Riobaldo, o jornalista conclui: então, ''é o diabo na rua, no meio do redemoinho''? É. Mais ou menos isso.

Carlos Melo  

Na contramão do clima, Brasil subsidia indústria do petróleo

Em sua última semana de trabalho do ano, a Câmara dos Deputados rejeitou, na noite desta quarta-feira, uma emenda do Senado e manteve no texto da Medida Provisória 795 a suspensão de impostos cobrados de petrolíferas nacionais e estrangeiras até 2040. Assim, a medida, apelidada de "MP do trilhão" e que também inclui perdão de dívidas, incentiva a exploração de petróleo.

A MP foi enviada ao Congresso pelo presidente Michel Temer. Diante de um plenário vazio, foi discutida no Senado dois dias antes da aprovação final na Câmara. Senadores pediram uma alteração, que diminuía o prazo da isenção de 2040 para 2022, como determina a Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita qualquer beneficio fiscal a cinco anos.

Os deputados, porém, derrubaram a emenda por 206 votos a 193 e duas abstenções. Após a aprovação final pela Câmara, a medida provisória segue agora para sanção presidencial.

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A MP suspende tributos cobrados sobre bens e equipamentos relacionados a atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo no país. Os itens podem ser adquiridos no Brasil ou importados. Também há isenção para compra de matérias-primas e produtos intermediários destinados à atividade.

Um estudo técnico assinado pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados calculou que, com a entrada em vigor da MP 795, os cofres públicos deixarão de arrecadar cerca de 1 trilhão de reais, daí o apelido "MP do Trilhão". Posteriormente, uma nota do Ministério da Fazenda argumentou que o impacto seria positivo e desmentiu a cifra, alegando um erro de cálculo. Por outro lado, a nota não apresentou um valor alternativo.

"Quando se provê um ambiente jurídico seguro, regras alinhadas com o mercado internacional de petróleo e condições equilibradas de competitividade, o país ganha em termos de arrecadação em decorrência do aumento nos ágios oferecidos pelas companhias de petróleo e a atração de novos investimentos", diz a nota. Foi o argumento adotado pelo senador Romero Jucá, que defendeu a medida no Senado.

"Essa MP tem dois lados perversos: o que o país vai deixar de arrecadar no futuro e a dívida que ela perdoa", afirma Kleber Cabral, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco).

À frente do órgão que reúne profissionais que combatem sonegação, Cabral traça paralelos. "Infelizmente, o Brasil virou um balcão de negócios. Benefício fiscal e isenção setorizada estão potencialmente ligadas a pagamento de propina. Os casos da Lava Jato e outros comprovam isso", analisa.

Em 2009, a Receita Federal identificou uma prática considerada abusiva e muitas vezes ilegal: empresas que exploravam petróleo em plataformas enviavam 90% da receita para fora do país sem pagar qualquer imposto. Fiscalizadas, as empresas envolvidas deviam multas que chegavam a 54 bilhões de reais.

Cinco anos mais tarde, a Medida Provisória 651/2014 legalizou esse "jeitinho” de sonegar. A tramitação da medida no Congresso não ficou livre de suspeita de corrupção: em agosto último, a Procuradoria-Geral da República denunciou Jucá por receber propina de 150 mil reais para atuar a favor da Odebrecht na tramitação da mesma MP.

Além das isenções fiscais, a Medida Provisória 795 aprovada agora perdoa a dívida antiga que a Receita Federal tentava, desde 2009, cobrar pela sonegação de impostos. Ela beneficia petroleiras como Shell, Exxon, BP e Petrobras.

"Para nós, da fiscalização da Receita, o que mais dói é o trabalho de mais de uma década ser jogado pela janela", lamenta Cabral.

No debate no Senado, parlamentares acusaram o governo Temer de ceder ao lobby da indústria internacional de petróleo. A MP 795 foi enviada ao Congresso pouco antes do último leilão de petróleo e gás, realizado em setembro. Na ocasião, 17 empresas arremataram áreas para exploração, sete delas estrangeiras.

"Antes de o próprio Congresso aprovar a medida, o presidente Temer já tinha prometido às petroleiras de que elas teriam segurança fiscal. Foi uma promessa feita sem saber se a MP seria aprovada", ressalta Nicole Oliveira, diretora da América Latina da ONG 350, que se opõe a novos projetos de carvão, petróleo e gás.

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Que venha 2018!

Creio que, como eu, a maioria da população brasileira deve encerrar o ano de 2017 como aquela sensação de que “já vai tarde”, tal a carga de notícias negativas que tivemos que suportar ao longo dos últimos doze meses. E creio que, tal como eu, a maioria anseia pela chegada de 2018, pois cultivamos a ilusão – necessária para que possamos sobreviver – de que a simples mudança no calendário trará modificações substantivas na vida pessoal e coletiva. Embora no fundo saibamos que tudo não passa de fantasia, jogamos fora o caderno velho, cheio de anotações, amassados e rabiscos, para iniciarmos outro, novinho, que prometemos usar com capricho.

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Mas o que será que, efetivamente, nos aguarda em 2018? Porque, por mais que almejemos os melhores cenários, temos que estar preparados para as intempéries. É como naquela história dos Três Porquinhos, na qual o mais prudente, o que construiu sua casa de alvenaria, consegue não só escapar do Lobo Mau, como ainda pode dar guarida aos dois irmãos mais negligentes, que ergueram suas casas com palha e madeira. De certo, temos que o evento mais importante do ano, as eleições para Presidente da República, governador, deputados federal e estadual e senador, ganharão as ruas somente após a Copa do Mundo da Rússia. E isso, por si só, já é preocupante...

O Brasil deve fechar o ano com um crescimento pífio do Produto Interno Bruto(PIB), algo em torno de 0,89%, segundo o mercado financeiro, o que é trágico, se lembrarmos que os últimos dois anos foram de crescimento negativo – 3,77% em 2915 e 3,6% em 2016. Para o ano que vem, o Fundo Monetário Internacional(FMI) estima um crescimento de 1,5%, condicionado à estabilidade política. O desemprego, pelas mesmas projeções, deve encerrar 2017 com uma taxa de 13% e para 2018 a perspectiva ainda é de uma altíssima taxa por volta dos 12%. A inflação prevista, 2,88%, segundo levantamento do Banco Central, mostra, muito mais que controle de preços, a profunda retração do mercado.

Se a planilha nos exibe apenas números frios, basta caminharmos pelas ruas de qualquer cidade do país para que transformemos as estatísticas em histórias reais. Tomemos um exemplo. A avenida Paulista, em São Paulo, considerada o maior centro financeiro da América Latina – portanto, símbolo da riqueza do sistema capitalista periférico -, mostra com todos os detalhes a areia movediça na qual estamos afundando. Nas calçadas, largas e em geral relativamente limpas, homens de terno e mulheres de tailleur desviam-se apressados de sem-teto, muitos deles novos pobres, que entraram porta adentro do mundo da mendicância recentemente.

Devemos terminar 2017 com um regime de insegurança jurídica em relação ao sistema trabalhista – e talvez também em relação ao sistema previdenciário – e com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário totalmente desacreditados, envolvidos, todos, em denúncias de corrupção. Com um Estado débil, liderado por um presidente sem legitimidade, vagamos por mares tempestuosos. A violência urbana deve vitimar cerca de 60 mil pessoas – jovens, pobres e negros, em sua absoluta maioria –, enquanto outros 34 mil perderão estupidamente a vida no trânsito. E um número indefinido de brasileiros morrerá por falta de assistência médica e outros milhões verão seus caminhos interrompidos por falta de educação de qualidade.

A Copa do Mundo da Rússia começa no dia 14 de junho e tem seu último jogo no dia 15 de julho. Um mês depois, no dia 16 de agosto, tem início o período de propaganda eleitoral – a propaganda gratuita no rádio e televisão começa dez dias depois. No dia 2 de outubro, iremos às urnas para decidir nosso futuro, que, é bom lembrar e repisar, não está ligado apenas a definir o nome do novo Presidente da República, mas também para desenhar o novo Congresso que ditará as regras nos quatro anos seguintes e, em nível mais local, o novo governador e a nova Assembleia Legislativa. Muito pouco tempo para tanta coisa...

Paisagem brasileira

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Canion do Espraiado (SC)

Governo Temer entra na fase de carnavalização

Michel Temer e seus aliados devem à plateia uma explicação. Precisam informar por que insistem em prometer o que não vão entregar. O governo não dispunha de votos para aprovar a reforma da Previdência há seis meses. Continua sem votos para prevalecer no plenário da Câmara antes do Natal, como pretendia. Mas jura que os votos cairão do céu até o Carnaval de 2018. Chegou-se ao impensável: conseguiram carnavalizar a mãe de todas as reformas. Por quê?, eis a pergunta que o presidente deveria responder a si mesmo.

A reforma enviada por Temer ao Congresso era ambiciosa. Coisa incompatível com sua impopularidade. Aconselhado a restringir a proposta ao tema quase consensual da idade mínima para a aposentadoria, o presidente deu de ombros. Alegou que sua base congressual era sólida. Enrolado na bandeira da austeridade, armou um campo de batalha, aprovou uma emenda constitucional instituindo um teto de gastos e seguiu em frente. Súbito, explodiu o grampo do Jaburu. E o governo perdeu o nexo.


Temer desperdiçou cinco meses do seu governo-tampão para obter o congelamento das denúncias criminais que a Procuradoria atravessou no seu caminho. Nesse intervalo, trocou a austeridade pela promiscuidade, pois teve de comprar a solidariedade dos deputados. Madou para o beleléu uma obviedade: o que contém os gastos é o ato de não gastar. Espetou no déficit público o custo do fisiologismo que levou as investigações ao freezer.

Além da reforma da Previdência, naufragaram os planos do governo de aprovar neste ano um pacote de medidas fiscais que garantiriam a meta de 2018, que prevê uma cratera nas contas pública de R$ 159 bilhões. E o mesmo governo que dizia que a omissão do Congresso levaria ao Apocalipse agora considera plausível elevar sua previsão de crescimento econômico para o ano que vem. Em vez de 2%, o PIB crescerá 3%, informou o ministro Henrique Meirelles (Fazenda). Prestaria melhor serviço à coletividade se explicasse como fará para fechar as contas e impedir que o teto de gastos suba no telhado.

O economista Mário Henrique Simonsen, muito admirado por Meirelles, gostava de dizer que os brasileiros costumam ser otimistas entre o Natal e o Carnaval. Mas o governo, sob Michel Temer, exagera. Prepara-se para entrar na avenida de 2018 sem samba-enredo. Na comissão de frente, há um denunciado se fingindo de presidente e um presidenciável fantasiado de ministro da Fazenda. Atrás deles, desfila uma ala hipertrofiada da Lava Jato. Skindô-skindô.

'Mas que diacho de democracia é esta?'

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso praticamente lançou uma campanha nacional pela anistia exclusiva de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, na convenção de seu partido, o PSDB, que fingiu, ao longo de 13 anos e meio, ser oposição e depois entrou, mas agora saiu, do governo-tampão de Michel Temer. “Prefiro combatê-lo na urna do que vê-lo na cadeia”, disse. Noves fora o erro de português na frase (do que no lugar de uma simples preposição a), a sentença é um habeas corpus preventivo que nem Gilmar Mendes concederia. O “presidenciável” do PT foi condenado a nove anos e meio de prisão na primeira instância, aguarda julgamento de recurso na segunda e as possibilidades de ele vir a ser inocentado são mínimas. O que autoriza o sociólogo a considerá-lo apto a ser votado, se a Lei da Ficha Limpa não o permitiria?

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Bem, os destaques da reportagem que relatou esse disparate, assinada por Anne Warth, Daiene Cardoso, Felipe Frazão e Pedro Venceslau, publicada na página A4 deste jornal no domingo 10, a respeito da convenção da véspera, sábado 9, passam a impressão, talvez imprecisa, de que os tucanos têm uma razão forte para isso. “As urnas os condenarão (Lula e o PT) pelo desgoverno, pelo desmonte e pelas obras inacabadas”, disse o presidente nacional do PSDB, Geraldo Alckmin, governador de São Paulo e pule de dez na posição de disputante da sucessão presidencial pela legenda. Como Mané Garrincha perguntou ao técnico Feola no vestiário da partida contra a União Soviética na Copa da Suécia, os senhores combinaram com os russos?

Que nada! As ruas roucas de tanto gritar se calaram, mas qualquer pessoa que frequente um bar de periferia em qualquer metrópole brasileira sabe que nada disso resiste a um átimo de raciocínio racional. Primeiramente, para Lula se candidatar a Justiça terá de absolvê-lo, partindo do pressuposto de que o multirréu está certo: é perseguido pela Polícia Federal (PF), pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Justiça. Ou seja, sem chance!

Last but not least – por último, mas não menos importante –, como diriam os súditos de Elizabeth II, o ninho do tucanato empavonado afunda na titica. O senador Aécio Neves (PSDB-MG) chegou tão perto de vencer a eleição contra Dilma e Temer que não faltam argumentos lógicos a quem acredita que a disputa foi fraudada. Desse fato emergiu a possibilidade de o neto do dr. Tancredo brilhar no cenário nacional como a voz do contra, aquele que poria fim aos desmandos e à roubalheira patrocinados pela aliança PT-PMDB na dúzia de anos anteriores. Mas qual o quê?! O sonho de consumo da sociedade indignada perdeu o cartaz ao ser identificado como “Mineirinho” no propinoduto da Odebrecht.

Flagrada com a boca na botija imunda, a esperança nacional reencarnada passou a ser vista como um réprobo, uma figura a respeito da qual nenhuma família decente comenta algo na ceia diante das crianças. Seus instintos assassinos revelados entre palavras de baixíssimo calão lhe reservaram um lugar no fundo do lixo da História, ao lado dos notórios Eduardo Cunha e Sérgio Cabral. E o partido afundou junto no lamaçal da vergonha alheia. Sua passagem pelo ato em que Fernando Henrique e Alckmin falaram foi sintetizado no olho da reportagem do Estado a esse respeito: “Investigado na Lava Jato, senador mineiro não foi anunciado em convenção, não fez discurso e foi vaiado”.

Essas duas evidências, se não eliminam, no mínimo dificultam esse paraíso na Terra dos tucanos emplumados no qual o multirréu será perdoado e ungido candidato só para perder para Alckmin. Baseados em quê? “Eu ganhei de Lula duas vezes”, contou Fernando Henrique. É verdade. E daí? Por enquanto, o PSDB perdeu até o respeito pela própria História, ao aceitar cargos do presidente que os derrotou nas urnas e não fechar questão em prol da reforma da Previdência – não por ele, mas por nós.

Há, entretanto, algo ainda mais sórdido e grave na escolha de Lula como rival preferencial pelos tucanos nas eleições gerais do ano que vem: é a suprema soberba que os maiorais do partido assumem de que eles se acham acima do bem, do mal e da Constituição. Que autoridade tem o PSDB para abolir o Estado de Direito, no qual o império deve ser da lei (e não dos parlapatões da política), para atropelar uma norma legal de iniciativa popular e firmar um alvará de soltura para um condenado contra o qual foram apresentadas carradas de denúncias, delações e provas? A Veja da semana traz uma foto de Lula com o ex-ditador líbio Muamar Kadafi ilustrando a notícia de que, em sua proposta de delação, o ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de madame Rousseff promete contar que o PT recebeu US$ 1 milhão para a campanha do então candidato e presidente, em 2002. Agora já não se trata apenas de corrupção pesada, mas de grave crime de traição à Pátria. Ao qual os tucanos se acumpliciam.

Enquanto Lula “voltava à cena do crime” (no dizer de Alckmin) no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e cometia o desatino de inculpar policiais federais, procuradores e o juiz Sergio Moro pela roubalheira na Petrobrás, cometida em seus dois mandatos e em mais um e meio de sua afilhada, os tucanos ofereciam seu pescoço ao eleitorado. Isso lembra o conselho de Antônio Carlos Magalhães, que os tucanos adotaram como deles, de não votarem o impeachment do “sapo barbudo” (apud Brizola) para “sangrarem o porco” na eleição de 2006. Resultado: Lula esmagou Alckmin em 2006 e Dilma repetiu o feito sobre Serra em 2010 e Aécio em 2014. Como disse Talleyrand sobre os Bourbons, os sabichões “não aprenderam nada e não esqueceram nada”.

Será que eles acham que, se anistiarem seu adversário preferido, também serão eles perdoados? OK, está tudo muito bom, está tudo muito bem, eles venceram, batatas fritas... Mas, nesse caso, que diacho de democracia é a esta, hein?

Dirceu, Gambetta e Lula

No meu tempo de colégio – é isso mesmo, leitor, e pode dizer: ”mas isso foi há muuuuito tempo” – o ensino de História era levado a sério. Dizem que nós éramos obrigados a decorar datas e outros detalhes sem muita importância, do que discordo veementemente. As datas nos ajudavam a situar os personagens históricos em seu tempo, o que é muito útil, digam o que quiserem. Além do detalhe das datas, havia professores que gostavam de ilustrar as aulas com informações curiosas que, a bem da verdade, pouco nos serviriam na vida, mas que mal não faziam, pois como o leitor bem sabe, o saber não ocupa espaço. Por exemplo, que a mãe de Napoleão Bonaparte, dona Letízia, ao ver o filho com toda aquela pompa se coroar Imperador dos franceses, fez o seguinte comentário, no francês estropiado que falava: “Pourvu que ça dure” (contanto que isso dure).

Essas curiosidades ficaram em minha memória e às vezes, por um motivo ou outro, lembro da aula e do professor que nos encantava com essas pequenas notas. Como agora, quando li que José Dirceu anda militando para que petistas se mobilizem "em defesa de Lula."


Lula entregou Dirceu aos leões e nunca foi visita-lo em sua jaula. Foi um dos maiores amigos da onça de que se tem notícia. Mas, no entanto, aí está Dirceu terçando armas em defesa de seu ex-chefe. O que foi que esse fato me trouxe de volta das aulas de história no colégio? Vou contar: a França teve um político que fez nome como orador brilhante, mago das palavras, grande orientador de seus seguidores. Seu nome era Léon Gambetta (1838/1882). Sua morte, ainda muito jovem, chocou o país. De tal modo a inteligência de Gambetta impressionou seus contemporâneos, que resolveram examinar seu cérebro para concluir porque ele era como era. Para surpresa de muitos seu cérebro era pequeno, pesava muito pouco, ninguém daria nada por ele.

Não sei, nem procurei saber, qual a conclusão dos examinadores do cérebro de Gambetta. Mas tive uma ideia: quando José Dirceu vier a falecer, daqui uns 50 anos, seria bom que examinassem seu cérebro para que todos pudessem saber o que move um homem a ser tão leal a outro, mesmo em situações bastante adversas.

Volto ao Gambetta que nos deixou uma boa frase. A luta mais forte na França de seu tempo era a que envolvia os departamentos da Alsácia e da Lorena. Luta fratricida e sem quartel. Dela, disse Gambetta: “ Y penser toujours, n'en parler jamais” (Pensar nisso sempre, mas falar sobre isso, jamais”.

Será que é esse mesmo tipo de pensamento que move Dirceu em relação a Lula? “Pensar nele sempre, mas falar nele jamais?”.

Ou será que Dirceu está militando em causa própria e só quem não viu isso fui eu? Ou ele está preocupado com o provável desmoronamento do PT? Tudo é possível nesse ninho de jararacas em que o Lula nos envolveu...

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Robert Longo (Papel e carvão)

No limiar do ano velho

O gordinho da Coreia do Norte, por exemplo, daria um bom Papai Noel? Claro que não. Comuna de verdade lá quer saber desse negócio de Papai Noel, compras e mais compras, presentes, votos de boas festas, em especial nesta época do ano, quando o capitalismo disfarçado de bom velhinho mostra a sua cara e pior - não há por aqui um Cazuza a lhe instar a que diga qual é o seu negócio, o nome do seu sócio e tal?

Há um consenso de que a China, outrora dragona do comunismo sob a batuta de Mao, só passou a ver mesmo "a força da grana, aquela que ergue e destrói coisas belas" (Caetano), depois que se assumiu como capitalismo de estado. Daí os espaços conquanto ainda parcos para uns pálidos e tímidos bons velhinhos em seus trajes vermelhos e sacos de presentes.

As desavenças entre o gordinho malvado da Coreia do Norte e o fogoió maluco da Casa Branca já convenceram a China de que as coisas podem se desarrumar a qualquer hora entre o mar do Japão e uma base americana que fica numa ilha ali por perto. Daí que, prevendo a debandada de milhares de norte-coreanos, começou a construir campos e mais campos de refugiados.

É possível que num cenário desse ninguém ouse ser voluntário para vestindo o macacão vermelho, cor que, aliás, tem algo a ver, desfilar carregando um saco cheio e acenando às crianças que não precisam de ninguém que lhes deem lições de esperanças.

Quando eu era criança, em Caxias, vi um Papai Noel pela primeira vez. Não tinha a barrigona que para alguns ainda hoje no Maranhão é sinal de poder politico e de prosperidade financeira. Também não tinha bundão flácido, outro atributo.

Da carroceria de uma camionete o Papai Noel magrelo dava bombons ou picolés à criançada. Um alto-falante sobre a boleia anunciava que ele era de carne e osso. Ensimesmado, sem interesse algum nos bombons e picolés, fitava-o imaginando como deveria ser o Papai Noel sem carne e osso. Então, o Papai Noel feito de gente só poderia ser aquele.

Aos poucos, fui diferenciando o Papai Noel gordão e bundudo do Papai Noel de carne e osso, o Papai Noel igual a gente. Anos depois descobri que aquele Papai Noel era o Elmar, o locutor do Gigante do Ar, o serviço de Alto-falante da Babilônia, o que viria a ser um shopping para a época, do José Delamar.

Ontem, quarta feira, em Itatiba, cidade do interior paulista um pouco maior que Barra do Corda ou Caxias, um Papai Noel muito conhecido da população foi atacado por crianças a rebolos e pedradas quando o saco de bolos e bombons se esvaziou.

Todo ano, nessa época do ano, seu Luizão, o dono de uma funerária, veste-se como o bom velhinho, instala-se num trenó e com a ajuda três amigos desfila pelos bairros distribuindo agrados à criançada.

Ontem como se fosse um dia de tenebrosos tempos, seu Luizão escapou ao ver-se acuado por aqueles pelotões armados com paus e pedras, tudo criança entre 9 a 12 anos de idade. Oh tempos, afastem de nós esses graneleiros de maus exemplos! Oh meu Deus, quanta violência se espalhando neste mundo!

“Vinde a mim as criancinhas”? Okey,vinde a mim.

Seu Luizão nunca foi politico, não é politico, não quer ser politico. Anunciou que “sem ressentimentos” voltará às ruas dos subúrbios desfilando no seu trenó com o seu saco de bombons e outros doces para a criançada.

Edson Vidigal

O homem que não salvou o mundo


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 “Salvator Mundi”, Leonardo da Vinci

Mês passado, “Salvator Mundi”, o retrato que Leonardo da Vinci fez de Jesus como Salvador do mundo, foi vendido em um leilão por $400 milhões de dólares (mais que o dobro do recorde anterior para um trabalho de arte vendido em leilão). O comprador também teve que pagar taxas e comissões adicionais de $50,3 milhões de dólares. A pintura teve inúmeros retoques, e alguns especialistas questionam se é, de fato, um Da Vinci.

O comprador – que muitos acreditam ser o príncipe coroado Saudita, Mohammed bin Salman, representado por um primo distante – pagou um preço altíssimo por uma pintura de um homem que disse a um homem rico: “Vai, vende teus bens, dá o dinheiro aos pobres, e terás o tesouro no céu”. Isto torna relevante a pergunta: O que alguém conseguiria fazer disponibilizando $ 450 milhões de dólares para os pobres?

A visão de 9 milhões de pessoas poderiam ser restaurada, para aquelas com cegueira curável, ou, alternativamente, seria possível prover 13 milhões de famílias com ferramentas e técnicas que permitiriam um aumento de 50% na produção de seu plantio de alimentos.

Se quiser seguir a sugestão de Jesus de forma mais literal, você pode simplesmente entregar o dinheiro para as famílias mais pobres do mundo, para que elas o utilizem como quiserem. (…)

Caso ache que os recebedores vão gastar em álcool, apostas ou prostituição, a instituição Give Directly (EUA) fez uma avaliação independente mostrando que, em geral, isso não acontece. As transferências de dinheiro da Give Directly aumentam a segurança alimentar, a saúde mental e mesmo as posses das famílias.

Por $450 milhões, é possível ainda comprar redes de proteção para camas para 271 milhões de pessoas, as protegendo da malária.

Quando uma pessoa escolhe comprar “Salvator Mundi” ao invés de restaurar a visão de 9 milhões de pessoas, o que pode ser imaginado a cerca de seus valores? Uma coisa é clara: ela não se importa muito com outras pessoas. Qualquer prazer que ela, sua família, ou amigos terão ao observar a pintura não pode ser comparado com o benefício de restaurar a visão mesmo que de uma pessoa, quanto mais de milhões.

Certo ou errado, nós damos muito mais importância para os próprios interesses (e o de nossos filhos, parentes e amigos), do que para os interesses das demais pessoas. Quanto mais distante, mais diferentes de nós, maior a taxa de desconto que aplicamos na prática sobre o interesse dos outros.

De fato, existe um ponto a partir do qual o desconto é tão grande, que os interesses dos outros são tratados com tanta indiferença, que precisamos dizer “Chega, isso foi longe demais”.

Podemos, inclusive, dizer que as pessoas mais influentes já ultrapassaram este ponto. Para mim, é inquestionável dizer que este ponto foi muito ultrapassado quando a pessoa se preocupar mais em possuir uma pintura do que com a visão de milhões de pessoas.

Peter Singer

A 30 Km de Ipanema, a vida passa com menos de três reais por dia

Em Jardim Gramacho não se vive, se sobrevive. A apenas 30 quilômetros da praia de Ipanema há pessoas morando em condições tão precárias como num pobre povoado da África. Jardim Gramacho, a comunidade que abrigou até 2012 o maior lixão de América Latina, famosa no mundo inteiro por um documentário do artista plástico Vik Muniz que chegou ao Oscar, poderia construir um monumento dedicado ao descaso e a promessas descumpridas. Mas não há tempo para pensar nisso. O bairro, em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio, é um bolsão de pobreza extrema, a face dura e invisível da desigualdade do Brasil, do abandono do poder público, um lugar onde se vive, rodeado de cachorros sarnentos, com menos de três reais por dia.

Jardim Gramacho não tem água encanada, a eletricidade depende dos gatos e da aleatoriedade dos picos de energia que estouram os poucos eletrodomésticos que ainda funcionam. Aqui tampouco há rede de esgoto e, em algumas casas, nem banheiro. A higiene pessoal, para quem nem chuveiro tem, é feita numa laguna próxima e verde. As moradias construídas com portas de armários e chapas de madeira velha, servem para pouco nos dias de chuva. “Quando chove, cai mais água dentro do que fora”, ouve-se com frequência.


– Quando foi a última vez que você comeu carne?

– Ah, pouco tempo, umas duas semanas atrás.

– E peixe?

– Ihhh, nem lembro.

– E fruta?

– Fruta? Isso aqui é um luxo.

O lixo é a principal fonte de renda do Jardim Gramacho (Ariel Subirá)
Vanessa Dias, grávida do sexto filho aos 31 anos, está sentada no degrau da entrada da sua casa de madeira. Uma cerca improvisada com tábuas delimita um quintal cheio de entulho e lixo. A precária dieta da família de Vanessa, longe de qualquer recomendação do que seria uma alimentação saudável, é só mais um exemplo da sua exclusão. A mulher, com vários dentes a menos e aparentando 20 anos a mais, trabalhou no antigo lixão desde a adolescência e nunca teve carteira assinada. O marido, um pedreiro desempregado de 42 anos, há tempos que não consegue um biscate. Suas duas únicas fontes de renda são os 150 reais que recebe do Bolsa Família pelos três filhos que moram com ela e uns 200 reais que consegue vendendo desinfetante.
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Se divididos esses 350 reais pelos cinco membros da família, os Dias vivem com uma renda de 2,3 reais por dia e por pessoa. O último cálculo do Banco Mundial para determinar a linha da pobreza extrema é de 1,90 dólares por dia, ou 6,18 reais. Os brasileiros que vivem abaixo deste patamar devem passar de 2,5 milhões a 3,6 milhões entre 2016 e o final deste ano, segundo a instituição.

Enquanto Vanessa fala da sua rotina, três dos seus filhos de nove, oito, e dois anos brincam com dois gatinhos recém nascidos entre os escombros. Os bichos miam ao caírem torpemente no chão. Estão lançando eles alto demais. Um dos meninos, que só neste ano já foi internado sete vezes por pneumonia, briga com o outro. A mãe põe ordem com apenas um par de gritos. As moscas pousam com insistência no rosto da mulher, mas ela nem se move. Dentro da residência, limpa na medida do possível, é ainda pior. No interior do quarto e sala, onde todos dormem, elas voam em nuvens. Por todas partes. Ela não reclama de quase nada, “apenas gostaria de que chegasse água”.

A miséria no Jardim Gramacho percebe-se não apenas na dieta dos seus 20.000 moradores, as cáries das crianças, a alta evasão escolar, o analfabetismo, ou os ratos, insetos e escorpiões que infestam o bairro. A miséria exclui, ela isola. O morador de Jardim Gramacho não sai de Jardim Gramacho. Vanessa puxa a média para baixo, mas o resto dos seus vizinhos não tem dinheiro nem para pagar uma passagem de ônibus para ir no médico.

Segundo um levantamento da ONG Teto, que atua no local construindo casas desde 2013, a renda média per capita dos moradores de Jardim Gramacho é de 331,96 reais, 11 reais por dia, praticamente o valor de duas passagens de metrô ou de trem. A renda para os que trabalham triplica-se, mas aqui cerca de 45% dos vizinhos não tem emprego (a taxa nacional de desemprego é de 12,4%), segundo essa pesquisa realizada com mais de 700 moradores. Não é falta de vontade. Dezenas de vizinhos estão doentes, não tem formação nenhuma, ninguém com quem deixar os filhos ou precisam cuidar da casa.

A história do bairro é também a historia do seu lixão, o maior de América Latina, de onde seus mais de 1.500 catadores oficiais retiravam duas toneladas diárias de materiais recicláveis. Aquela montanha de 60 metros de lixo fez o bairro crescer e inspirou os cenários de uma das tramas da novela Avenida Brasil. Não era o melhor dos empregos, mas servia de sustento a famílias inteiras. Quando o local foi fechado, em 2012, foi como tirar os jalecos salva-vidas de gente que não sabe nadar no meio de uma tempestade. Prometeram a eles, nos diferentes níveis do poder público, cursos profissionalizantes, urbanização do bairro, novas fontes de renda... Mas ninguém cumpriu. Os antigos catadores chegaram a receber uma indenização de cerca de 14.000 reais quando o aterro fechou. Muitos abriram uma conta de banco pela primeira vez, mas esse dinheiro há tempos que acabou.