sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

A aposta na energia solar contra a indústria do petróleo na Amazônia equatoriana

Alimentada por energia elétrica, uma canoa desliza silenciosamente rio acima em uma paisagem de nuvens luminosas que são refletidas no espelho d'água. A bordo está uma equipe de jovens indígenas achuar. Eles voltam para casa depois de participar de um treinamento em instalação e controle de painéis solares que ocorreu no rio Kapawari, um afluente do rio Pastaza na Amazônia equatoriana, perto da fronteira com o Peru.

Técnicos indígenas instala os painéis solares no teto do novo barco, no rio Capahuar
A canoa solar mal vibra. As vozes se escutam de proa à popa e, na confluência dos dois rios, alguns botos emergem para respirar, confiantes e próximos, devido ao ruído quase zero emitido pela canoa solar. Essa cena, que parece ficção, é completamente real. Isso é possível graças a um grupo de pessoas corajosas, que defende a floresta e enfrenta a indústria do petróleo, que tanto afetou a Amazônia equatoriana.

Petróleo significa a sentença de morte deste território, como aconteceu com os povos huaorani, mais ao norte. Competindo com o petróleo, a mineração, o desmatamento e a caça ilegal são ameaças esmagadoras para comunidades relativamente isoladas, como Sharamentsa, de aproximadamente 70 indivíduos localizados a cerca de 30 quilômetros ao norte de Capawari, à beira do próprio rio Pastaza.

Mas, em vez de lamentar o triste destino do extrativismo, renunciar ou fechar os olhos ao irremediável, os jovens dessa comunidade estão despertos. Eles se levantam e lutam para defender a floresta que encarna seu futuro e o de seus filhos. Eles sabem que a vida depende disso.

Nantu, como milhares de outros jovens indígenas de todo o Equador, atendeu ao chamado de seus líderes para enfrentar um governo disposto a se curvar às demandas do FMI e abrir ainda mais as portas aos interesses das grandes empresas extrativas transnacionais. Ao amanhecer, junto com 15 companheiros armados com lanças e vestidos com suas cintas tradicionais, Nantu embarcou em uma longa viagem de canoa rio acima para depois ir de caminhão até Quito, a centenas de quilômetros da comunidade.

“No país houve uma revolta indígena para enfrentar os empréstimos. Eles nos venderam, venderam nossos recursos. E eles estão expandindo os poços de petróleo”, diz Nantu. “Eles estão nos roubando, sem que percebamos. É por isso que nos levantamos para defender o que é nosso, nossos territórios”.

Essa expedição a Quito não foi uma mobilização pontual ou isolada. Não. Nantu (31 anos), junto assim como outros jovens da sua geração, está liderando um projeto futuro para sua comunidade. Ele sabe que o destino depende do que ele e seu povo façam, e não apenas um terreno milagrosamente preservado da floresta equatoriana, mas também em parte o futuro da bacia amazônica e, consequentemente, de um dos pulmões do planeta, hoje mais ameaçado.


Os achuar ainda têm a oportunidade de evitar o desastre que seus irmãos huaorani viveram mais ao norte, dizimados pela indústria do petróleo. Nantu sabe disso. Ele entende que, ou constrói uma alternativa ou vai acabar devorado pelo inexorável avanço da voracidade das indústrias de petróleo, madeira e mineração.

Uma estrada que parte de Puyo e que já penetrou dezenas de quilômetros no território do povo vizinho shuar está prestes a entrar no território achuar. “A estrada é um veneno”, diz José, parceiro de Nantu, que acrescenta: “A estrada não nos respeita, é imposta a nós pela cidade. É um meio terrestre muito perigoso para nós”.

Dada essa consciência lúcida, o envolvimento de Nantu, há vários anos, no desenvolvimento de canoas movidas a energia solar é fundamental para ter argumentos capazes de interromper o progresso dessa estrada letal.

O projeto, desenvolvido pela Fundação Kara Solar, com sede em Quito, é de grande ambição: conectar nove comunidades no território achuar por canoas de transporte coletivo movidas a energia solar. É um projeto com forte componente de pesquisa e desenvolvimento e projeção revolucionária para a região amazônica, principalmente para territórios indígenas.

Sua visão é a de uma Amazônia povoada por canoas solares que potencialmente substituirão dezenas de milhares de canoas que estão queimando milhares e milhares de metros cúbicos de gasolina todos os anos em motores de explosão.

Substituir essa tecnologia, que é pelo menos tão antiga quanto a dos motores elétricos de ímãs, mas que depende de um ciclo econômico absurdo e ineficiente, é o sonho que a Kara Solar tem. Oliver Utne, seu fundador, resume em uma frase: “Colaborações sustentadas e verdadeiramente interculturais podem criar soluções tecnológicas que atendem às comunidades indígenas, em vez de destruí-las”.

É incontestável que o
ciclo da gasolina é absurdo. O petróleo é extraído graças a um investimento formidável em vias de acesso e transporte de máquinas pesadas de extração em direção à floresta que contém os grandes depósitos. Tubulações caras são construídas que canalizam o hidrocarboneto fóssil para a costa e o embarcam em superpetroleiros movidos a diesel para refinarias localizadas milhares de quilômetros ao norte, na Califórnia.

Depois de refinado, é transportado de volta ao porto equatoriano, armazenado em grandes tanques de combustível para posterior distribuição em navios-tanque, também movidos a diesel, aos postos de gasolina. De lá, ele é carregado em tambores e transportado em caminhões e carros para aeronaves leves ou canoas movidas por motores Yamaha de dois ou quatro tempos, ou pequenas embarcações. Na forma de gasolina, o hidrocarboneto volta para a floresta, para o local de onde foi extraído.

Nantu entende que esse processo não para, a menos que seja com uma defesa fechada do território e construção de uma alternativa. Ela trabalha, por exemplo, em um projeto que instalará sistemas de energia alternativa muito mais amigáveis, com uma economia verde e circular de proximidade e subsistência. A harmonia de qualquer desenvolvimento com o ecossistema atual é essencial para Nantu.

Na floresta, que Nantu conhece bem, há recursos suficientes para a comunidade viver com tranquilidade e em equilíbrio. Existem frutas, raízes, fibras, caça, pesca e plantas medicinais. Contém solo fértil onde abrir pequenos pomares de subsistência para o cultivo do essencial. Madeira para casas, canoas, combustível.

"A floresta é vida para nós", diz Nantu. Uma floresta tão fértil e preservada quanto a do sudoeste equatoriano fornece generosamente. "É o mercado e a farmácia", diz ele, também são o pulmão e a fonte.

É o lugar de Arutam, a entidade sagrada que habita as cachoeiras, que abrange as diferentes forças que compõem a visão de mundo desses povos indígenas, para quem o sol, a água, a fertilidade e a própria selva governam a vida espiritual e proporcionam a subsistência material de uma comunidade que era nômade até muito recentemente.

Como qualquer projeto de P&D, as duas canoas solares que existem hoje apresentaram problemas técnicos e acidentes neste território hostil. O rio é vivo, sujeito à enchentes e reduções periódicas, experimenta uma corrente considerável que as canoas devem ser capazes de superar e também apresenta redemoinhos a serem superados, obstáculos como árvores afundadas, bancos de areia e solo rochoso.

A superfície do toldo deve ser otimizada para acomodar a área de superfície máxima das células fotovoltaicas sem comprometer a estabilidade do barco. É necessário melhorar a durabilidade e a capacidade de armazenamento das baterias, torná-las mais leves, substituir o chumbo por lítio idealmente sem custos.

A lista é longa, mas o processo está bem avançado. Na próxima fase do desenvolvimento, por exemplo, é prevista a instalação de estações de carregamento solar ao longo do itinerário das canoas, daí a importância de treinar os sete jovens achuar que participam do programa Kara Solar, conseguir fazer com que se apropriem da tecnologia, para que eles desenvolvam sua própria maneira de gerenciar o sistema. Estes são programas de “treinamento intercultural” ensinados entre pares, que também são instruídos por técnicos indígenas, ou seja, de indígena para indígena. Isso é fundamental para o aprendizado rápido e para o desembarque adaptado de tecnologias nos territórios.

É essa combinação entre o desenvolvimento de tecnologias e sociedades verdes que preserva uma visão de mundo descolonizada e um sistema de vida quase exclusivamente integrado a um território praticamente virgem, o que torna esse projeto excepcional.

Os achuar mantêm uma forma de assembleia de tomar decisões. Reúnem em grandes casas comunitárias e preservam rituais como beber chicha (uma bebida à base de mandioca mastigada e fermentada) ou wayusa —uma infusão que causa vômitos, purifica e fortalece diante de dias difíceis de trabalho, um ritual que fazem antes do sol nascer.

Preocupada com o futuro de uma população em crescimento, a comunidade está gradualmente introduzindo alguma diversificação em termos econômicos em Sharamentsa, que aponta para sua sustentabilidade além da autossuficiência. Já existe um projeto de ecoturismo, com duas cabines com capacidade total para 24 visitantes, gerenciadas pela comunidade, e um projeto alimentar equilibrado, com usina de energia solar. Mas a principal e iminente ameaça é, sem dúvida, a proximidade da estrada.

Nantu tem uma reclamação direta para o governo de Quito: “Eu diria ao governo para não realizar projetos sem consultar as nacionalidades. Que ele realize projetos consultando os povos, que são os donos dos territórios. Que pare de expandir as fronteiras do petróleo, pare de expandir as estradas que chegam a todos os cantos da Amazônia. Isso é super perigoso para nós”.

Em um momento vital de plenitude, Nantu lidera com sua geração uma comunidade jovem, equilibrada e em evolução. Ele está ciente de que as mudanças que estão ocorrendo no clima e como o aquecimento global afeta o território e o mundo. “Há variação de atividade aqui na floresta. O ciclo de floração mudou de data, estamos falando de um a dois meses. As chuvas são muito intensas e o sol é muito forte”.

O jovem Nantu tem uma visão para o futuro de seus cinco filhos. Imagina uma Amazônia capaz de ser economicamente autossuficiente, com centros de turismo comunitário gerenciados pelos próprios indígenas, com canoas solares gerenciadas pelos próprios achuar, com estações de carregamento ao longo do rio. Uma Amazônia sem estradas, capaz de proteger a selva, água limpa e ar puro. Para ele, para o seu povo e para toda a humanidade.

Para crescer, precisamos de mais Brasil e de menos brasileiros!

O Congresso fez a reforma da Previdência, enfrentando todas as dificuldades impostas pelo Executivo, e o Brasil não vai crescer, por isso, 4% — lembram-se das projeções deslumbradas? Nem 3%. Com o coranavírus como coadjuvante, as previsões já se acomodam em 2%. Os juros reais a menos de 1% merecem ser chamados de “históricos”. Qual é a armadilha que nos prende ao baixo crescimento?

Há um consenso entre os que defendem o ajuste liberal da economia. Pausa ligeira: “Há algum outro, Reinaldo?” Dizem que sim, mas não é o objeto deste texto. Meu assunto é política. E esse consenso nos diz que é preciso dar continuidade às reformas. O Estado brasileiro tem de gastar menos. É preciso diminuir a fatia do Orçamento comprometida com desembolsos obrigatórios. Os estados seguem quebrados.

A nova tábua de salvação para chegar à terceira margem do rio, consta, é aprovar a PEC da Emergência Fiscal, dando ao governo a licença para cortar jornada e salários do funcionalismo. De saída, parece uma resposta óbvia, mas não é trivial. Pensamos em alguns nababos do serviço público, e a resposta parece boa e moralmente justa, mas é sabido que isso acarretará, se a medida for posta em prática, a queda na qualidade dos serviços que o Estado presta aos mais pobres.

Uma ilustração: o governo Bolsonaro cortou a zero a dotação orçamentária do programa Casa da Mulher Brasileira para vítimas da violência. O presidente aplaudiu a decisão da ministra Damares Alves. Na expressão do nosso líder, “a Damares está sendo 10 nesta questão, não é dinheiro, recurso. É postura, mudança de comportamento que temos que ter no Brasil, é conscientização”.


Deve fazer sentido em alguma esfera inalcançável pela lógica convencional: corta-se o dinheiro para a mulher agredida na esperança de que o agressor tome consciência de seu comportamento inadequado. Estamos na esfera da “revolução moral”, certo? Os brasileiros precisam se emendar, como diria o jornalista Alexandre Garcia, com o endosso de Bolsonaro. Estivessem aqui os japoneses, e seríamos a maior potência da Terra. O pior do Brasil são os brasileiros.

Executivo, Legislativo e Judiciário dão largada a 2020 na certeza de que é imperioso enfrentar as reformas administrativa e tributária. Há um rascunho da primeira. O governo, até agora, não disse o que pretende para a segunda. Mais uma vez, pretende-se largar a bucha no colo do Congresso, e Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre que se virem, enquanto as milícias digitais do presidente continuam a massacrá-los nas redes sociais.

O que quer Bolsonaro? Na sua mais recente manifestação sobre aquela máxima de “mais Brasil e menos Brasília”, nós o vimos a desafiar os governadores a abrir mão do ICMS sobre combustíveis, hipótese, então, em que ele próprio renunciaria aos impostos federais. Bravata! Tal renúncia implicaria um aumento de R$ 27,4 bilhões no rombo das contas públicas. Bolsonaro estava apenas dando mais uma contribuição à crispação política inútil.

Eu não sei — mas ninguém sabe, o que não me contenta — como se procede ao ajuste drástico das contas, precondição, dizem, do crescimento, sem que se promova, nessa travessia, uma precarização ainda mais radical da vida dos pobres, o que sempre traz desdobramentos políticos. E, desde já, fica o convite: se alguém tem a pedra filosofal, que compartilhe. Tenho a impressão de que a equação, como está, não fecha. Importar os japoneses e mandar embora os brasucas não parece ser moralmente aceitável.

Talvez a ministra Damares tenha descoberto a vereda da salvação. A abstinência como barreira à gravidez precoce e à expansão das doenças sexualmente transmissíveis pode funcionar, assim, como metáfora e norte moral também na economia. Esse nosso povo tão mal acostumado, tão entregue a paixões — que, como lembraram Bolsonaro e Paulo Guedes, resultam em doenças que impactam os cofres públicos —, precisa ser menos Estado-dependente.

Está faltando coragem ao governo Bolsonaro para confessar que o modelo precisa de mais Brasil e de menos brasileiros.

Modelo de mercado esgotado

O modelo econômico aplicado na América Latina está esgotado: é extrativista, concentra a riqueza em poucas mãos e quase não tem inovação tecnológica. Ninguém é contra o mercado, mas ele deve estar a serviço da sociedade, e não vice-versa. Temos que encontrar novas maneiras de crescer, e isso exige políticas estatais. Não é o mercado que nos levará, por exemplo, a mais inovação tecnológica.
 (...) A desigualdade sempre foi vista da perspectiva da pobreza, mas deve ser vista do ponto de vista da riqueza
Alicia Bárcena , secretária-executiva da CEPAL

Economia de favela

Os institutos Data Favela e Locomotiva divulgaram resultados da pesquisa “Economia das Favelas - Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”. Ela nos permite ver aspectos desse mundo, que a ideologia da pobreza tem considerado um outro Brasil, com os olhos e os valores do Brasil da prosperidade.

Tanto a pesquisa quanto a conceituação situam-se na motivação de gerar entre nós uma outra consciência do que a favela é. A começar da sua designação como “comunidade”. Sociologicamente, comunidade conceitua o padrão de organização social baseado na apropriação em comum e pré-capitalista das condições de existência. Mas a estrutura social das favelas é uma estrutura de classes desiguais, nada comunitária, que vai da extrema pobreza à surpreendente riqueza, o que a média não permite ver.

Os resultados da pesquisa aparentemente confirmam outros de 2013, que mostravam o crescimento da baixa classe média nesses redutos de habitações consideradas precárias e aquém do socialmente aceitável. A classe média das favelas havia pulado de 33% para 65% em dez anos. Basicamente, o que a pesquisa de agora revela é a vitalidade da sociedade de consumo nos redutos de pobreza.

O fato de os moradores serem pobres não quer dizer que sejam irrelevantes para o capitalismo. A média do rendimento por pessoa nas favelas é de R$ 714 por mês, o que é pouco e as situa na periferia da sociedade de consumo. Mas o capital não quer saber o que as pessoas consomem. Na reprodução ampliada do capital, o que interessa é o volume de dinheiro gasto pela sociedade, seja lá em que for. É isso que importa.


Para um país subdesenvolvido como o Brasil, essa economia das favelas movimenta quase R$ 120 bilhões por ano. A economia de um verdadeiro Estado sem governo nem regulação. Como se fosse um tipo de neoanarquismo, empreendedor e inventivo, com alta proporção de pretos e de mulheres chefes de família. Em confronto com os tormentos econômicos e políticos do neoliberalismo.

Uma pesquisa longitudinal, porém, indicaria que o que parece a prosperidade dos favelados é, muito provavelmente, resultado do empobrecimento de milhões de pessoas. Com a crise de desemprego, optaram pela redução do próprio custo de vida na habitação barata e precária e na supressão dos gastos com eletricidade e água. Levaram consigo o que sobrou dos tempos de segurança e estabilidade. Aqui e ali, notícias de aluguel da casa própria para custear a vida barata da favela sugerem uma estratégia de sobrevivência na opção pela decadência social.

É possível ver nessa geografia da pobreza indícios de um capitalismo paralelo que não se enquadra no capitalismo do grande capital. Nem a favela se enquadra nos estereótipos da ideologia da pobreza. E não é de agora.

Há 12 anos, o caderno econômico do jornal “O Estado de S. Paulo” publicou reportagem sobre economia de favelas do Rio de Janeiro. Uma das maiores agências bancárias do país era a da favela da Rocinha. Por sua vez, a favela de Heliópolis, em São Paulo, tinha 2.500 pontos comerciais.

Hoje, na favela de São Remo, ao lado da Cidade Universitária, há hotel e supermercado e igrejas famosas pela prosperidade do dízimo generoso. Na favela de Heliópolis, por iniciativa do maestro Sílvio Baccarelli e apoio de fora, há sala de concerto e orquestra sinfônica. Sinal do terreno propício à difusão de valores da classe média.

Há nas favelas ativo comércio imobiliário, de aluguéis até a compra e venda de barracos. Uma curiosa inovação é a da venda da laje da casa para que o comprador sobre ela construa sua própria casa, vendendo, por sua vez, sua laje a um terceiro comprador, que venderá sua laje a um quarto proprietário. A economia da favela inventa sua própria espacialidade, imita o capitalismo e cria dele sua própria versão.

Na favela, o urbanismo e a arquitetura são outros, como é outra a forma da economia. Uma variante do capitalismo subdesenvolvido, que é caracteristicamente o nosso. A que se expande precária e mutiladamente na modalidade de inclusão social que promove. A favela desdobrou o que os antropólogos há algumas décadas conceituavam como capitalismo do tostão. Uma lógica capitalista adaptada às condições limitadas da pobreza.

Em boa parte, resulta de um capitalismo rentista, de base territorial e não produtiva, que alcança pessoas cujos ganhos, mesmo salários, não lhes permite pagar a renda da terra embutida no preço dos terrenos de que carecem para construir suas casas. Não é pequeno o número de pessoas cujas casas de alvenaria crua têm internamente as características de uma casa razoavelmente boa, o oposto do que se vê de fora. Esse capitalismo de menos nasce da renda fundiária de mais.
José de Souza Martins

Pensamento do Dia


Eles só pensam naquilo

Alguém precisa contar a Bolsonaro e Damares que os gregos e os romanos construíram civilizações e culturas tão formidáveis que são os fundamentos do Ocidente moderno, vivendo em pleno paganismo, cultuando Afrodite, Dionísio e Apolo como na África ancestral tinham fé em Oxalá, Xangô e Oxum. Como acreditar que o mundo começou com o nascimento de Jesus Cristo? Ou de Maomé?

Não havia divisões religiosas, ninguém era obrigado a acreditar em nada. Talvez não conhecessem a verdade, mas não precisavam ser libertados. O prazer e o sexo eram livres, hétero e homo, dos imperadores aos escravos, para homens e mulheres. Foi o imperador Constantino (272-337 d.C.) que teve uma visão da cruz, se converteu ao cristianismo e introduziu a crença de pecado e culpa no Império Romano. Não funcionou. Sob pressão popular, o imperador Juliano (330-363 d.C.) restaurou o paganismo.

Com o cristianismo, surge a interdição do sexo e do prazer, em nome do Velho Testamento judaico. Jesus nunca proibiu isso a seus discípulos, mas daí nascem o celibato dos padres e as perversões que gerou.

Sexo é bom. Se fosse ruim, doloroso, as espécies estariam extintas, nem existiriam, por isso a natureza o fez gostoso. E assim caminhou a humanidade.

Sexo faz bem. Todo mundo, de qualquer religião, de qualquer lugar e qualquer etnia, sabe como alguém se sente depois de um sexo prazeroso: pacificado, mais leve e calmo, menos ansioso e mais seguro, e às vezes até amado. Além das conquistas materiais e espirituais que trazem felicidade, pessoas sexualmente satisfeitas são mais felizes.

Cada um é o único dono de seu corpo e responsável pelos bens e males que faz a si mesmo, deveria ser clausula pétrea da Constituição. É a mais fundamental das liberdades.

Nova política !?

Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espiado, dirigido, legislado, regulamentado, enclausurado, doutrinado, pregado, controlado, avaliado, etiquetado, censurado, comandado.

Ser governado é estar presente a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notificado, registrado, recenseado, tarifado, timbrado, cotizado, autorizado, inculpado, reformado, corrigido.

É, em nome do interesse geral, ser submetido a contribuições, explorado, monopolizado, concessionado, mistificado, roubado; e, ao primeiro gesto de resistência, é ser reprimido, corrigido, vilipendiado, vexado, enganado, perseguido, internado, desarmado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído, ultrajado...

Oh, personalidade humana! E há 60 séculos que aguentas esta abjeção!

Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814 - 1876)

Rondônia manda recolher livros de Machado de Assis e Nelson Rodrigues, e depois recua

A Secretaria de Educação de Rondônia mandou recolher 43 livros das escolas da rede pública estadual e depois voltou atrás. Entre as obras, estavam as de autores como Machado de Assis, Ferreira Gullar, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Franz Kafka e Edgar Allan Poe.

No fim do dia, a secretaria enviou uma nota informando que recebeu a denúncia de que "haviam livros paradidáticos com conteúdos inapropriados" nas bibliotecas . Por conta disso, prossegue a nota, "a equipe técnica da secretaria analisou as informações e constatou que os livros citados eram clássicos da literatura".

"Sendo assim, o processo eletrônico que contém a análise técnica foi encerrado imediatamente sem ordem de tramitação para quaisquer órgãos externos, secretarias ou escolas públicas", afirma o texto. Leia a nota completa no fim do texto.


A determinação de se recolher os livros foi revelada por conta do vazamento de um ofício interno assinado pelo secretário estadual de Educação, Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu.

— Técnicos da secretaria estavam fazendo um estudo e de repente alguém entrou numa página e já publicaram — disse o secretário ao GLOBO.

No ofício, o governo pede que os servidores "verifiquem os kits de livros paradidáticos às escolas para compor o acervo das bibliotecas" e "procedam com o recolhimento dos mesmos imediatamente". A justificativa é a de que as obras contêm "conteúdo inadequado às crianças e adolescentes".

A lista de livros tem títulos como "Memórias póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis; "A vida como ela é" e "Beijo no asfalto", de Nelson Rodrigues; "Contos de terror, de mistério e de morte", de Edgar Allan Poe; "O castelo", de Franz Kafka; "Macunaíma", de Mario de Andrade, "Os Sertões", de Euclides da Cunha, além de livros de Carlos Heitor Cony e 19 trabalhos de Rubem Fonseca. Há ainda a seguinte observação: "Todos os títulos de Rubem Alves devem ser recolhidos".

O secretário chegou a afirmar ao site Rondônia Dinâmica que o documento era falso. O GLOBO confirmou, no entanto, que o ofício consta no Sistema Eletrônico de Informações (SIE), classificado como sigiloso.

O texto do ofício ressalta a importância de "estarem atentos às demais literaturas já existentes ou que chegam nas escolas para uso de atividades escolares, a fim de que sejam analisadas e assegurados os direitos do estudante de usufruir do mesmo com a intervenção do professor ou sozinho sem constrangimento e desconfortos".

Rondônia é governada pelo Coronel Marcos Rocha (PSL), aliado do presidente Jair Bolsonaro.

Educadores do estado já haviam reclamado de um ofício de setembro em que a secretaria de Educação determinava que qualquer realização de "debates, palestras, seminários" dentro das escolas da rede estadual só podem acontecer após autorização da pasta. A justificativa é a de que é preciso "avaliar a pertinência do tema proposto".

— Qualquer tema de debate aqui tem que passar pela secretaria antes — afirma um professor.

A Secretaria de Estado da Educação de Rondônia (Seduc) esclarece que recebeu uma denúncia que nas bibliotecas das escolas estaduais haviam livros paradidáticos com conteúdos inapropriados para o público alvo, alunos do ensino médio.

"Diante disso, a equipe técnica da secretaria analisou as informações e constatou que os livros citados eram clássicos da Literatura Brasileira, muitos deles usados em processos seletivos e vestibulares.

Sendo assim, o processo eletrônico que contém a análise técnica foi encerrado imediatamente sem ordem de tramitação para quaisquer órgãos externos, secretarias ou escolas públicas.

A Seduc reforça o compromisso com a Educação e reconhece que os livros são obras de autores consagrados a nível mundial e cumprem um papel importante para uma construção social, prova disso foram os extraordinários resultados dos alunos da rede pública estadual no último Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM, além de diversas ações e investimentos que foram feitos recentes para o início do ano letivo.

Serão tomadas todas as medidas necessárias para investigar o vazamento das informações internas equivocadamente documentadas.

Solicitamos aos servidores que verifiquem os kits de livros paradidáticos encaminhados às escolas para compor o acervo das bibliotecas, os livros relacionados no Adendo ID (10053329), e procedam com o recolhimento dos mesmos imediatamente, tendo em vista conterem conteúdo inadequado às crianças e adolescentes.

Na oportunidade, ressaltamos a importância de estarem atentos as demais literaturas já existentes ou que chegam nas escolas para uso de atividades escolares, a fim de que sejam analisadas e assegurados os direitos do estudante de usufruir do mesmo com a intervenção do professor ou sozinho sem constrangimento e desconfortos."

Autores que teriam livros recolhidos: Caio Fernando Abreu, Mário de Andrade, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Carlos Nascimento Silva, Rubem Fonseca, Ivan Rubino Fernandes, Euclides da Cunha, Nelson Rodrigues, Ana Lee, Sonia Rodrigues, Rosa Amanda Strausz, Machado de Assis, Franz Kafka, Edgar Allan Poe e Rubem Alves.
O Globo

Bolsonaro, um presidente de palavra

Dele não se poderá dizer que esconde o que lhe vai na alma. Muitos políticos agem assim – dissimulam, falam o que o interlocutor quer ouvir ou se recolhem ao silêncio. Bolsonaro é diferente. Para atrair os holofotes, exagera em algumas ocasiões, é fato, mas o exagero só reforça o que de fato pensa.

Quando disse que o índio está evoluindo para ficar parecido “conosco” é porque de fato acredita nisso – que se parecer com um homem branco, renunciando aos seus próprios valores, cultura, religião e modo de viver, significa um passo adiante e não atrás. O atraso seria se o índio teimasse em viver como sempre viveu.

Por acreditar em tal coisa, nada mais natural que Bolsonaro vá em frente e, como presidente da República, passe da teoria à prática, redesenhando o mundo ao seu gosto. Foi o que fez ao nomear um missionário evangélico para cuidar dos índios que vivem isolados e assinar o projeto que libera o garimpo em terras indígenas.

O esvaziado chefe da Casa Civil da presidência da República, Onyx Lorenzoni, da turma dos mortos-vivos deste governo, batizou o projeto de nova “Lei Áurea”. A antiga, de 1888, assinada pela Princesa Isabel, ficou conhecida como a que extinguiu a escravidão no Brasil. Não ficou claro o que Lorenzoni quis dizer.

Que o projeto do seu chefe libertará os índios da escravidão de viverem em partes ainda preservadas do seu habitat? Ou que o projeto libertará os garimpeiros e, no rastro deles, as grandes empresas de mineração, da obrigação prevista em lei de respeitarem os limites das reservas indígenas?


Lorenzonni não entende nem de índio nem de garimpo. De garimpo, Bolsonaro entende. Às escondidas dos seus superiores, o cabo Bolsonaro, para embolsar mais algum, garimpou no Mato Grosso. Recebeu mais tarde uma advertência por conta disso. Sujou sua folha corrida. Mas encantou-se pelo garimpo.

Em campanha para presidente, prometeu aos garimpeiros que derrubaria todos os entraves ao exercício de sua arte. Como homem de palavra, começou a cumprir. Havia assumido o mesmo compromisso com empresas de mineração. Elas não poderão se queixar. Mais uma vez, só o Congresso poderá contrariá-lo.

Seus adversários dirão que nem sempre Bolsonaro honra a palavra empenhada. No caso do combate à corrupção, por exemplo. Ele se elegeu como o candidato do partido da Lava Jato. Chamou o cabeça da Lava Jato para ministro da Justiça. Mas só tem feito enfraquecê-lo. Convenhamos… Dê-se um desconto.
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Deve ser duro ver alguns dos seus filhos como investigados por suspeitas de corrupção. Aos filhos, ele só imaginava servir filé. Um deles ganharia a embaixada do Brasil em Washington. Não passou de um sonho. Por mais que se empenhe, Bolsonaro ainda não conseguiu livrar os filhos da condição de investigados.

O combate sem trégua à corrupção pode esperar.

Populismo à direita

Populistas adoram oferecer gasolina barata. Populistas que controlam uma estatal de petróleo, mais ainda. Repararam nas palavras do presidente Bolsonaro? “Eu já cortei o preço três vezes, e o preço não cai na bomba”.

Ora, a Petrobras não tinha autonomia para administrar os preços de combustíveis? Bolsonaro já havia feito uma intervenção direta, quando a estatal elevara seus preços, mas a questão acabou sendo contornada, e — disseram — o presidente da República havia sido convencido de que era melhor deixar a coisa por conta da Petrobras.

Devem ter dito a ele que a então presidente Dilma quebrara a estatal ao obrigá-la a vender gasolina e diesel a preços mais baratos do que pagava na importação. Ele não era contra tudo do PT?

Então, ficou assim: o custo do combustível tem uma estrutura que envolve diversos fatores, inclusive externos, e a Petrobras administra isso.

Acontece que os fatores externos, desta vez, estão ajudando: os preços do petróleo estão em queda por causa da demanda menor causada pela crise do coronavírus. Há menos aviões, navios e caminhões circulando na China, que é uma das maiores consumidoras do combustível.

Pintou a chance para Bolsonaro. Na verdade, não foi ele que reduziu os preços três vezes e mais uma vez ontem. O preço caiu no mundo todo, e o presidente achou que poderia tirar uma boa lasquinha e oferecer ao consumidor uma gasolina mais barata — sem quebrar a Petrobras.

Para os governadores estaduais, porém, o preço mais barato do combustível é até uma oportunidade de arrecadar mais — oportunidade de ouro para administrações que estão em dificuldades financeiras.

Logo, na cabeça de Bolsonaro, a culpa é dos governadores e daí a aposta: “Eu zero o federal se eles zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui, agora”, disse o presidente numa daquelas conversas na saída do Palácio da Alvorada.

Claro que os jornalistas foram perguntar no posto Ipiranga. Paulo Guedes, claro, fugiu do assunto.

Se fosse dizer qualquer coisa sensata, só poderia ser algo assim: bobagem, impossível, falta de informação etc.

Os impostos federais (PIS/Cofins e Cide, que não são impostos, mas contribuições) somaram R$ 27,3 bilhões no ano passado. O déficit primário do governo central ficou em torno dos R$ 90 bilhões. Seria um terço maior sem as contribuições sobre os combustíveis.

Para os estados, o ICMS sobre os combustíveis representa de 20% a 30% do total da receita. Todos também apresentam déficit primário.

Ou seja, Bolsonaro partiu para o populismo e deu errado. Para os governadores ficou fácil responder: o senhor corta primeiro os impostos federais.

O que coloca Guedes numa saia justa. Se bobear, a culpa vai para ele.

Tirante a confusão, o episódio revela muita coisa, a começar pela incapacidade administrativa de Bolsonaro. O sistema tributário brasileiro, sem exagero, é o pior entre as nações relevantes. Não apenas as pessoas e empresas pagam impostos demais, como é difícil e caro, especialmente para pequenas e médias empresas, manter em dia suas obrigações fiscais.

Há propostas de reforma tributária tramitando no Congresso, complexas e boas, o governo federal ficou de enviar sua sugestão e, no meio disso, o presidente entra nesse populismo irresponsável. “Zero o imposto hoje”.

Nem zera, nem faz o que devia — coordenar a tramitação de uma completa reforma, que, registre-se, vai precisar do apoio e do empenho dos governadores.

Portanto, não se trata de apenas uma bobagem.

Trata-se de uma manifestação de insegurança jurídica e econômica. Empresas nacionais e sobretudo o capital internacional esperam a reforma tributária para organizar seus investimentos no Brasil. Precisam saber quanto e onde vão pagar os impostos.

A expectativa, digamos, otimista depende de dois personagens, Guedes e Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. Guedes, contornando a coisa dentro do governo. E Maia, continuando a tocar a reforma como se nada tivesse acontecido.

De todo modo, fica claro mais uma vez o caráter autoritário do presidente Bolsonaro. Parece que ele não se conforma com o fato de que não pode mandar na Petrobras, ou no Banco Central ou na Polícia Federal.

Qualquer dia desses dá um rolo maior.