Tanto a pesquisa quanto a conceituação situam-se na motivação de gerar entre nós uma outra consciência do que a favela é. A começar da sua designação como “comunidade”. Sociologicamente, comunidade conceitua o padrão de organização social baseado na apropriação em comum e pré-capitalista das condições de existência. Mas a estrutura social das favelas é uma estrutura de classes desiguais, nada comunitária, que vai da extrema pobreza à surpreendente riqueza, o que a média não permite ver.
Os resultados da pesquisa aparentemente confirmam outros de 2013, que mostravam o crescimento da baixa classe média nesses redutos de habitações consideradas precárias e aquém do socialmente aceitável. A classe média das favelas havia pulado de 33% para 65% em dez anos. Basicamente, o que a pesquisa de agora revela é a vitalidade da sociedade de consumo nos redutos de pobreza.
O fato de os moradores serem pobres não quer dizer que sejam irrelevantes para o capitalismo. A média do rendimento por pessoa nas favelas é de R$ 714 por mês, o que é pouco e as situa na periferia da sociedade de consumo. Mas o capital não quer saber o que as pessoas consomem. Na reprodução ampliada do capital, o que interessa é o volume de dinheiro gasto pela sociedade, seja lá em que for. É isso que importa.
Para um país subdesenvolvido como o Brasil, essa economia das favelas movimenta quase R$ 120 bilhões por ano. A economia de um verdadeiro Estado sem governo nem regulação. Como se fosse um tipo de neoanarquismo, empreendedor e inventivo, com alta proporção de pretos e de mulheres chefes de família. Em confronto com os tormentos econômicos e políticos do neoliberalismo.
Uma pesquisa longitudinal, porém, indicaria que o que parece a prosperidade dos favelados é, muito provavelmente, resultado do empobrecimento de milhões de pessoas. Com a crise de desemprego, optaram pela redução do próprio custo de vida na habitação barata e precária e na supressão dos gastos com eletricidade e água. Levaram consigo o que sobrou dos tempos de segurança e estabilidade. Aqui e ali, notícias de aluguel da casa própria para custear a vida barata da favela sugerem uma estratégia de sobrevivência na opção pela decadência social.
É possível ver nessa geografia da pobreza indícios de um capitalismo paralelo que não se enquadra no capitalismo do grande capital. Nem a favela se enquadra nos estereótipos da ideologia da pobreza. E não é de agora.
Há 12 anos, o caderno econômico do jornal “O Estado de S. Paulo” publicou reportagem sobre economia de favelas do Rio de Janeiro. Uma das maiores agências bancárias do país era a da favela da Rocinha. Por sua vez, a favela de Heliópolis, em São Paulo, tinha 2.500 pontos comerciais.
Hoje, na favela de São Remo, ao lado da Cidade Universitária, há hotel e supermercado e igrejas famosas pela prosperidade do dízimo generoso. Na favela de Heliópolis, por iniciativa do maestro Sílvio Baccarelli e apoio de fora, há sala de concerto e orquestra sinfônica. Sinal do terreno propício à difusão de valores da classe média.
Há nas favelas ativo comércio imobiliário, de aluguéis até a compra e venda de barracos. Uma curiosa inovação é a da venda da laje da casa para que o comprador sobre ela construa sua própria casa, vendendo, por sua vez, sua laje a um terceiro comprador, que venderá sua laje a um quarto proprietário. A economia da favela inventa sua própria espacialidade, imita o capitalismo e cria dele sua própria versão.
Na favela, o urbanismo e a arquitetura são outros, como é outra a forma da economia. Uma variante do capitalismo subdesenvolvido, que é caracteristicamente o nosso. A que se expande precária e mutiladamente na modalidade de inclusão social que promove. A favela desdobrou o que os antropólogos há algumas décadas conceituavam como capitalismo do tostão. Uma lógica capitalista adaptada às condições limitadas da pobreza.
Em boa parte, resulta de um capitalismo rentista, de base territorial e não produtiva, que alcança pessoas cujos ganhos, mesmo salários, não lhes permite pagar a renda da terra embutida no preço dos terrenos de que carecem para construir suas casas. Não é pequeno o número de pessoas cujas casas de alvenaria crua têm internamente as características de uma casa razoavelmente boa, o oposto do que se vê de fora. Esse capitalismo de menos nasce da renda fundiária de mais.José de Souza Martins
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