domingo, 30 de junho de 2019

Brasil da real


Seis meses decepcionantes

O balanço dos seis primeiros meses de governo de Jair Bolsonaro não pode ser considerado positivo, pelo menos na visão deste repórter. A despeito da baixa taxa de juros e da inflação sob controle, heranças do governo de Michel Temer, é bom lembrar, a economia está empacada e o desemprego de 13 milhões de pessoas na idade economicamente ativa é desesperador. Quanto ao PIB, o próprio Banco Central reduziu a previsão de crescimento de 2% em 2019 para 0,8%. E ninguém descarta a possibilidade de nova redução nos próximos meses.


Quanto à reforma da Previdência, único projeto com potencial para dar uma sacolejada boa na economia e reconquistar a confiança de investidores, este praticamente saiu das mãos do governo, passando ao controle do Congresso. Mesmo com toda a dificuldade que propostas desse teor enfrentam, em qualquer lugar do mundo, é possível que o projeto seja aprovado mais por méritos do Congresso do que por esforço do Palácio do Planalto. O governo não se preocupou em criar uma equipe de articuladores competente, mas, sim, uma fórmula incompreensível de atuação, até há pouco tempo dividida entre o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o então secretário de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido no calor das discussões da reforma da Previdência. Não porque tenha falhado na articulação política, mas porque Santos Cruz não dava bola para a agenda conservadora do presidente e ainda era agredido com expressões de baixo calão pelo escritor Olavo de Carvalho, tido como guru do presidente.

Quanto ao pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, também não se vê da parte do governo um empenho grande para que seja aprovado logo. E olha que o combate ao crime foi uma das bandeiras de campanha do então candidato do PSL.

O ideal para qualquer um que escreva sobre política, e que vivenciou erros e acertos de todos os governos do período da redemocratização para cá (1985/1988), seria dizer que agora a coisa vai, que o programa de recuperação econômica é isso e aquilo, que o País caminha para o pleno emprego e que, por isso mesmo, o presidente, no auge de sua popularidade, desistiu de acabar com a reeleição para buscar mais um mandato. O que há é o avesso disso.

Seria também interessante dizer que estão com os dias contados estatais como a Empresa de Planejamento e Logística, criada no governo de Dilma Rousseff para administrar um trem-bala que faria o trajeto entre Rio e Campinas, passando por São Paulo, a tempo de carregar torcedores para a Copa de 2014. Isso, no entanto, não é possível. Passados mais de oito anos da criação da EPL, e sem que um único dormente para o trem de alta velocidade tenha sido assentado, tal empresa continua lá na sua sede, em Brasília, com presidente, diretoria, benefícios sociais, comissão de ética, assessoria de imprensa e milhões para torrar.

Nesses seis meses de governo, o que houve, em excesso, foi muito falatório. “Um festival de besteiras”, na definição de Santos Cruz, que costuma ser cuidadoso quando fala do governo. O general passou quase seis meses lá dentro. Vivenciou grandes e pequenos acontecimentos. Deve saber o que diz.

O certo é que o presidente, que tem falado constantemente em ser candidato à reeleição, continua a agir como se estivesse em campanha. A economia vai mal, não há um projeto de desenvolvimento, por exemplo, para a Amazônia, para o Nordeste, para reduzir a pobreza, para melhorar a educação. Mas Bolsonaro acha que daqui uns dias todos vão querer votar nele.

Para não ficar só nessa lenga-lenga, registre-se que houve o anúncio do fechamento de um acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul. Acordo que começou a ser costurado no governo de Fernando Henrique Cardoso, ainda em 1999.

Montanha de estupidez

Nós passamos as nossas vidas a lutar para conseguir que pessoas ligeiramente mais estúpidas que nós aceitem as verdades que os grandes homens conheceram desde sempre. Já há milhares de anos que eles sabiam que fechar uma pessoa doente num ambiente solitário torna-a ainda pior. Já há milhares de anos que eles sabiam que um homem pobre que é assustado, pelo seu patrão, e pela polícia, é um escravo. Eles sabiam. Nós sabemos. Mas será que a grande massa iluminada dos britânicos o sabem? Não. É o nosso dever, Ella, o teu e o meu, de lhes dizer. Porque os grandes homens são demasiado grandes para serem incomodados. Estão já a descobrir como colonizar Vénus e como irrigar a Lua. Isso é que é o mais importante para o nosso tempo. Tu e eu somos os empurradores da pedra. Todas as nossas vidas, tu e eu, temos que empregar as nossas energias, e todo o nosso talento, a empurrar uma enorme pedra por uma montanha acima. A pedra é a verdade que os grandes homens sabem por instinto, e a montanha é a estupidez da humanidade
Doris Lessing

O governo atirou no que viu, acertou no que não viu

O acordo entre Mercosul e União Europeia cria a maior zona de livre comércio do mundo e tem de ser bastante comemorado. Eu comemoro, agradeço e faço um brinde. Parabéns aos envolvidos – a todos os envolvidos. As negociações não começaram em janeiro, com a posse de Bolsonaro, mas há cerca de vinte anos. Entre idas e vindas, arranques e freadas, PT atrapalhando, enfim foi concluído.

Bolsonaro e sua equipe tiveram o mérito inegável de aparar as arestas, acelerar o processo e arrematar o negócio; o impulso liberal de Paulo Guedes e o peso comercial do Brasil terão sido decisivos, tudo somado aos interesses dos outros integrantes do grupo; Argentina, em especial. Ao vencedor, as batatas. Porém, não deixa de ser irônico, quase surpreendente, o desfecho do imbróglio.

Pouco tempo atrás, bem outra era ideia. Já na corrida eleitoral, Bolsonaro acenava com uma relação obsessiva com os EUA (e Israel), alinhado à visão de que existem dois polos de poder no mundo: EUA-Israel, representantes da civilização judaico-cristã; e o resto, representantes do bicho-papão. O resto consiste num amálgama de comunistas europeus, metacapitalistas, muçulmanos, chineses e longo etc., todos numa indecorosa suruba geopolítica.

De fato, os primeiros movimentos da política externa foram nessa direção. Para sorte do governo – e dos governados – a realidade na prática é outra.


A guerra comercial entre EUA e China deixava Europa e América Latina à deriva. As negociações de mais de duas décadas entre Mercosul e União Europeia estavam prestes a ter final melancólico. Interessava aos dois blocos que o tratado fosse assinado. Pareceu oportuno resgatar algum protagonismo num mundo em que EUA e China dão as cartas do poder, enquanto a Rússia esconde as suas sob a manga da espionagem.

Diante da perspectiva auspiciosa, o governo brasileiro, até então liberal na economia e conservador nos costumes, resolve ir de vez para a zona (de livre comércio) e se assume liberal nos costumes da economia. Deixou de lado as juras de amor e o casamento monogâmico com os EUA, saiu do armário e embarcou no poliamor. Em vez de relações bilaterais EUA-Brasil, relações multilaterais Europa-Brasil-EUA. Sem com isso enfraquecer a união com os americanos. Viramos país-da-vida, qualquer um pega.

Tudo isso que ora é comemorado, no entanto, quase não aconteceu. Não apenas por causa da fidelidade canina aos EUA de Trump, mas porque distinta era a concepção do governo sobre o Mercosul (deveríamos ter saído) e sobre o comércio internacional (deveríamos ter cuidado com os metacapitalistas). Há falas da família presidencial defendendo a saída intempestiva do Mercosul. Há declarações de Paulo Guedes garantindo, em brado retumbante, que o Mercosul não seria prioridade.

Pois agora é.

Os entusiastas latinos do Brexit, as Daianes dos Santos da política tupiniquim, deram o duplo twist carpado ideológico e passaram a defender, para o Brasil, o contrário do que defenderam para a Inglaterra.

“Oh, veja bem, são duas coisas muito diferentes!” – dirão eles. Os conspiracionistas são os maiores entendidos das próprias conspirações, reconheço.

A tese arrumadinha é a seguinte: globalização é uma coisa, globalismo é outra.

Globalização é integração comercial, zona de livre comércio, liberalismo do bom e do melhor.

Globalismo é sujeição política, zona de influência, submissão da soberania nacional aos (sempre suspeitos) interesses internacionais.

Existe um grande Centrão mundial, mais endinheirado e mais diabólico que o nosso Centrãozinho, que pretende fazer não sei o que com o mundo, e para isso tem de sufocar ou neutralizar a política nacional por meio de tratados supranacionais. Representantes não eleitos mandam mais do que representantes eleitos. ONU, Unesco, União Europeia contam mais do que Legislativo, Executivo e Judiciário.

Deixo de lado o debate sobre o que há de real – e, sendo real, o que há de diabólico – na tese do globalismo. A discussão seria longa e tortuosa em demasia, para o momento.

Assumindo, portanto, a premissa de que existe um fenômeno – ou “projeto”, como preferem os denunciadores – dito globalista, resta saber se ele pode funcionar a despeito do outro processo em curso – o da globalização econômica. E defendo que não. São dois movimentos integrados, mutuamente influentes e, nalguns aspectos, sinto dizer, indistinguíveis.

Um ponto que deveria ser óbvio: o globalismo é financiado, sustentado ou colocado em marcha por metacapitalistas globais, não por quitandeiros de bairro. Gente como Soros e os Rockefeller (os irmãos Koch são os metacapitalistas do bem). O metacapitalista tem dinheiro, muito dinheiro, dinheiro que não pode ser contado, dimensionado, rastreado, bloqueado. Esse dinheiro todo não seria possível num comércio puramente nacional. Ele só se viabiliza com a globalização, os grandes acordos, as zonas francas do mundo, a homogeneização regulatória, a especulação financeira. Globalistas se beneficiam – e se financiam – por meio da globalização. A globalização é o caixa-eletrônico do globalismo.

Mas há outra consideração importante a ser feita: ainda que com alguma boa vontade seja possível diferenciar globalização de globalismo, zona de livre comércio de zona de influência, economia livre de burocracia comprometida, o fato é que só mesmo a ingenuidade – ou pior: a má fé deliberada – para explicar a crença numa globalização comercial isenta de qualquer globalismo burocrático.

Ora, a economia, embora tenha sua própria lógica, não se dá no vácuo institucional. Transação econômica nenhuma acontece por meio de escambo. O Brasil, com a entrada no acordo, não mandará uns carroceiros à Europa para vender cana e carne seca, na confiança da palavra de homem, do fio de barba e do aperto de mão. Tratados comerciais implicam amplos tratados políticos, institucionais e burocráticos.

Alguns pontos de contato já apareceram. Questões ambientais terão impacto e não serão marginalizadas. Os cuidados com o meio ambiente não são mais vistos, mundo afora, como desperdício ou ideologia, mas como valor, postulado ético, conditio sine qua non. Macron deu o recado, Merkel idem. O Brasil terá de rapidamente ajustar o discurso – e a prática correspondente – às regras internacionais. Ou faz isso, ou não ganha dinheiro.

Também no que diz respeito às questões sanitárias, ao uso de agrotóxicos, às normas trabalhistas, estejam certos: o país estará sujeito a interferências importantes. Não é improvável que, ao longo do tempo, os problemas migratórios sejam colocados em pauta. Já ouviram falar dos tratados internacionais sobre direitos humanos? Acordos podem ser quebrados; vide o Brexit. Ou aceita, ou pede pra sair.

Isso tudo porque, afinal de contas, economia nunca é só economia, muito menos em negociações de magnitude transcontinental. Considero ótimo que a visão realista-liberal tenha se sobreposto à alucinação conspiratória. Não existe, fora da retórica bruta e oportunista de uns e outros, a opção de ganhar dinheiro de todo mundo sem se submeter a nada e a ninguém.

Que os nacionalistas à direita e à esquerda enfiem a viola preconceituosa e protecionista no saco, e saibam reconhecer o que é bom e dá certo. Um mundo livre, um mercado cada vez mais livre, é o que há de necessário. Reparem: um mundo livre mesmo, também para as gentes que vivem nele. Quer gostem, quer não gostem de admitir os cantadores de vitória, quem assina o contrato em letras maiúsculas da globalização também está assinando as letras miúdas do globalismo. É venda casada.

Bolsonaro conheceu a verdade! Ela o libertará?

Quando confrontado com um problema, Jair Bolsonaro pode não ter a solução. Mas ele tem sempre à mão um versículo multiuso que extraiu do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Às vésperas do aniversário de seis meses do seu governo, celebrado neste domingo, Bolsonaro conheceu a verdade. Descobriu que pode ser conservador sem ser arcaico. Essa verdade tem potencial libertador. Mas para se livrar dos grilhões do arcaísmo, o presidente teria de se manter fiel à racionalidade que levou ao fechamento do histórico acordo entre Mercosul e União Europeia.

O bom senso ensina que dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Ou num único governo. Dividida entre um e outro, a plateia não dá atenção a nenhum dos dois. Ou, por outra, acaba privilegiando o mais exótico. Estão aí em cartaz, faz um semestre, duas apresentações. Uma é aquela que o general e ex-ministro Santos Cruz chamou de "Show de besteiras". Outra é a coreografia encenada pelo pedaço da Esplanada que tenta provar que o governo não está sob o domínio da Lei de Murphy, segundo a qual quando algo pode dar errado, dará.

Desde que assumiu o trono, Bolsonaro tenta conciliar duas exigências conflitantes: ser Bolsonaro e exibir o bom senso que a Presidência requer. Ao desembarcar no Japão, para a reunião do G20, o capitão sentia-se cheio de tambores, metais e cornetas. Reagiu a uma cobrança da premiê alemã Angela Merkel sobre meio ambiente como se fosse o próprio Hino Nacional. Murphy o espreitava. O presidente francês Emmanuel Macron ecoou Merkel. Vão procurar a sua turma, bateu o general e ministro palaciano Augusto Heleno. Em vez de acalmar o amigo, Heleno revelou-se uma espécie de Murphy em dose dupla.

Bolsonaro e seu séquito tinham todo o direito —e até o dever— de responder a Merkel e Macron. O problema é que, considerando-se o timbre, pareciam tomar o partido não do Brasil, mas do pedaço mais atrasado do país, feito de desmatadores vorazes, trogloditas rurais e toupeiras climáticas. O interesse do moderno agronegócio brasileiro estava longe, em Bruxelas, na reunião em que se discutiam os termos do acordo entre Mercosul e União Europeia. Ali, sabia-se que a insensatez ambiental levaria à frustração do acordo comercial ambicionado há duas décadas.

Súbito, o Evangelho de João iluminou os caminhos do capitão, apaziguando-lhe a alma. Num par de reuniões bilaterais, Bolsonaro soou conservador sem fazer concessões ao atraso. Falou de uma certa "psicose ambiental" que fez Merkel arregalar os olhinhos. Mas declarou que o Brasil não cogita deixar o Acordo de Paris, dissolvendo as resistências de Macron. As palavras de Bolsonaro desanuviaram a atmosfera na sala de reuniões de Bruxelas. Por um instante, o "show de besteiras" saiu de cartaz. E a sensatez pariu um acordo.

Bolsonaro faria um enorme favor a si mesmo e ao país se aproveitasse o embalo para enganchar nas celebrações do aniversário de seis meses a estreia de um espetáculo novo. Nele, o Planalto deixaria de ser uma trincheira. O presidente trocaria o recrutamento de súditos pela busca de aliados. A ala familiar seria desligada da tomada. O guru de Virgínia perderia sua cota na Esplanada. Ministros cítricos e tóxicos seriam substituídos por gente técnica e limpinha.

O problema é que esse conjunto de modificações depende de uma mudança de chave no cérebro do próprio Bolsonaro. Algo que parece condicionado a um milagre. Não basta conhecer a verdade. É preciso querer se libertar do atraso.

Imagem do Dia

Bhaktapur (Nepal)

Bolsonaro cuida do 'circo' e deixa o 'pão' com os profissionais

Jair Bolsonaro está em campanha. Esquecendo a promessa eleitoral de acabar com a reeleição, o presidente está empenhado em falar a seu eleitorado mais fiel, hoje em torno de 30%, segundo pesquisas, e chegar à disputa de 2022 com essa base. Pode ser esse desejo que explique a assinatura de decretos em série sobre o porte e a posse de armas — sete no total — atropelando o debate na sociedade e no Congresso. Trata-se de um tema caro ao eleitor bolsonarista e uma de suas principais promessas na eleição de 2018.

O presidente sempre mostrou gosto em tratar da chamada agenda de costumes, deixando os temas mais duros aos auxiliares — como o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes. Ao assumir a vontade de seguir no poder, parece confirmar essa tendência. Cuida do “circo” e deixa o “pão”, que anda em falta, aos profissionais.


O projeto Bolsonaro, até aqui, caminha bem. Conseguiu do Congresso, por unanimidade, um crédito de R$ 248,9 bilhões que permitirá fechar as contas do ano sem pedaladas e chegar a 2020 com relativo conforto. A reforma da Previdência ganhou vida própria no Congresso. Não renderá o R$ 1 trilhão pedido por Paulo Guedes, mas será suficiente para abrir um horizonte de decisões de investimento privado a partir do primeiro trimestre do próximo ano. E ainda poderá contar com receitas extras de privatizações e leilões do pré-sal.

Se tudo correr dessa forma, Bolsonaro chega às eleições municipais de 2020, o primeiro passo para 2022, como cabo eleitoral importante. O problema dos planos, porém, são os imprevistos — e os planos dos outros. Correndo na mesma raia, Bolsonaro já tem como principal adversário o governador paulista João Doria. E não deve descartar a concorrência futura do ex-juiz Sérgio Moro, mesmo que hoje ele esteja acuado pelos diálogos vazados pelo site “The Intercept” e dependa do presidente para ter algum espaço de poder. Já a oposição ainda não tem plano. Apega-se ao grito de guerra “Lula livre”, sem um discurso para substituir a narrativa antipetista.

E há o cenário externo, que sempre pode atrapalhar. O risco de uma crise do petróleo devido aos conflitos entre Estados Unidos e Irã tem potencial para causar um terremoto na economia mundial. Sem falar nos efeitos econômicos das rusgas entre Donald Trump e a China. Faltam três anos e meio para as eleições presidenciais, e em política nada é linear. Mas Bolsonaro, até aqui, parece contar com um ingrediente fundamental na política — sorte.

Basta ter olhos

Há pessoas que estimulam e até justificam a antipatia que temos por elas
Raul Drewnick

Ao invés de focar na recuperação da economia, Bolsonaro só pensa em reeleição

Com seis meses, o governo ainda acha prematuro ser avaliado, mas o presidente Jair Bolsonaro não considera cedo para falar em reeleição. Já tocou no assunto várias vezes. Agora, arranjou uma justificativa. Como sabe que o Congresso não fará a reforma política, porque nenhum grupo social entrega poder voluntariamente, Bolsonaro então passou a dizer que só abrirá mão da reeleição se o Brasil passar por uma séria reforma política.

“Agora, se não tiver uma boa reforma política e o povo quiser, estamos aí para continuar mais quatro anos”, confirma.
Em tradução simultânea, Bolsonaro já está em campanha. É impressionante, e a impressão que Bolsonaro sugere é de deslumbramento com o cargo.

Se tivesse lido “Cândido ou O Otimismo”, obra-prima de Voltaire, o presidente conheceria um dos personagens principais, o professor Plangloss, conselheiro de Cândido, que era o otimismo em pessoa, arranjava sempre uma maneira de transformar um fato negativo em uma hipótese positiva, para concluir que estava “no melhor dos mundos”.

Infelizmente, o mundo não é assim. Na definição genial do escritor Ariano Suassuna: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato, Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.

Na correria da vida moderna, o tempo voa e não há margem para esperanças delirantes, diante de uma realidade implacável, que bate à porta de cada um.

Bolsonaro é a alegria em pessoa na Presidência, parece em eterna campanha política, querendo resolver problemas transcendentais, como a tomada elétrica de três bicos os radares nas rodovias e a duração da carteira de habilitação. Mas fazem parte do Plano A, que mira a reeleição.

Bolsonaro se comporta como se sua função fosse apenas nomear os ministros, e cada um que se vire como pode, para resolver os problemas do respectivo setor, enquanto o presidente viaja pelo Brasil e pelo mundo, em lua-de-mel com a política, sem perceber que lhe falta o Plano B, para tirar o país da recessão.

Até agora, nada se fez a esse respeito. Basta lembrar essa confissão do ministro Paulo Guedes, em audiência recente na Câmara. Segundo o jornalista Alberto Bombig, do Estadão, ao rebater comentários de que a economia não responde, disse o ministro: “Responder a quê? O que nós fizemos para ela crescer?”

Realmente, até agora, há apenas a tentativa de reforma da Previdência, sem nenhuma outra providência para reativar a economia.

No primeiro governo Lula, não existia programa econômico. Empossados no BNDES como presidente e vice, Carlos Lessa e Darc Costa (que passara 13 anos na Escola Superior de Guerra estudando o país), criaram seu próprio Plano B, incentivaram setores estratégicos da economia e popularizaram o Cartão BNDES, com juros baixíssimos, para financiar a expansão de micros, pequenas e médias empresas.

Usando o BNDESPar, Lessa e Darc evitaram a desnacionalização da Vale e tomaram muitas outras medidas importantes. O país deslanchou, e quando Lula entregou o poder, oito anos depois, o PIB tinha subido 4,75% 2010.

Agora, na gestão Bolsonaro, chega-se a seis meses de governo sem qualquer medida na área econômica. Guedes é esforçado, mas nada entende de macroeconomia, não sabe o que fazer. Seu prazo de validade está quase vencido. O prazo de Bolsonaro também está correndo rápido, mas ele não percebe.

Euclides da Cunha em tempos de Lula e Bolsonaro

Homenageado deste ano na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Euclides da Cunha é um personagem singular no panteão de nossa literatura. Seu romance "Os sertões: campanha de Canudos" costuma ser citado como conquista maior na cultura nacional. O relato de Euclides serviu de inspiração tanto a escritores (do peruano Mario Vargas Llosa ao húngaro Sándor Márai) quanto a cineastas (de Glauber Rocha a Sérgio Rezende). Publicado em 1902, cinco anos depois dos eventos, quando a destruição de Canudos pelas tropas da recém-proclamada República não despertava mais tanto interesse, "Os sertões"
foi um best-seller instantâneo e inesperado. Rendeu honras a Euclides até sua morte trágica, aos 43 anos, vítima de um assassinato passional. Quem lê o livro, no entanto, fica intrigado.

Primeiro, pelo estilo empolado e rebuscado. Difícil acreditar, pelo tom professoral, pelo vocabulário ainda mais árido que as paisagens sertanejas, que Euclides tenha sido contemporâneo de mestres da ironia, como Machado de Assis ou Lima Barreto (está numa geração intermediária). Segundo, pela falta de rigor nas descrições geográficas e pelas teorias científicas fajutas usadas para relacionar o clima da região ao espírito dos rebeldes de Canudos (apesar de Euclides ter sido engenheiro, professor de lógica e de, depois de famoso, ter chefiado missões de reconhecimento na Amazônia). Terceiro, pelo racismo flagrante e abjeto (ainda que Euclides fosse abolicionista e republicano convicto, cativado pelos ideais da Revolução Francesa e pelo positivismo de sua formação militar). Qual o motivo da sobrevivência de Euclides da Cunha como autor essencial nos dias de hoje?

Uma resposta foi ensaiada pelo crítico literário Roberto Ventura, um dos maiores especialistas na obra euclidiana, no opúsculo "A terra, o homem, a luta", que acaba de ser relançado. O título de Ventura reproduz a divisão que Euclides tomou emprestada do historiador francês Hippolyte Taine para organizar, de acordo com os cânones do naturalismo, as três partes de sua narrativa. 

"Os sertões" funcionou, segundo Ventura, como uma espécie de mea-culpa de Euclides pela cobertura ingênua da Guerra de Canudos para o jornal O Estado de S. Paulo, repleta de propaganda republicana, sem nem mencionar o massacre dos rebeldes liderados por Antônio Conselheiro. Logo na nota preliminar, Euclides encerra a questão sobre a campanha: “Foi, na significação integral da palavra, um crime”. “Em 'Os sertões', acusou o Exército, a Igreja e o governo pela destruição da comunidade e fez a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens”, escreveu Ventura (também morto trágica e prematuramente, aos 45 anos, num acidente rodoviário em 2002, quando preparava uma biografia de Euclides, cujos trechos estão reunidos no volume póstumo "Euclides da Cunha: esboço biográfico").

A atualidade de Euclides não se restringe à qualidade da narrativa jornalística, essencial para preservar a memória dos fatos. Mais que isso, está na persistência, quando não da realidade, certamente das mentalidades que conduziram ao embate no sertão baiano, presentes até hoje na sociedade brasileira.

De um lado, o fanatismo religioso, o sebastianismo, a visão messiânica de um líder com forte apelo popular, a quem se atribuem poderes sobrenaturais, derrotado e visto como injustiçado. Do outro, a força de uma milícia cruel e sanguinária, que se julga garantida pela razão e pela lei, munida, nas palavras de Euclides, do “argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”. Não é absurdo enxergar nas figuras que hoje polarizam o debate político brasileiro — o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro — decalques das ideias daquela época. Mais de 120 anos depois, o valor da obra de Euclides não está nas explicações geográficas, climáticas, raciais ou científicas, todas elas ultrapassadas. Está na explicação para a tragédia do Brasil.
Helio Gurovitz