sexta-feira, 31 de maio de 2019

Uma comédia de ministro

Não fosse incompetente para o cargo que ocupa, nem fizesse tanto mal a professores, alunos e, por tabela, aos seus pais, do ministro Abraham Weintraub, da Educação, até se poderia dizer que é um bom e surpreendente piadista. Ou uma comédia de ministro.

A última dele foi gravar um vídeo imitando o ator Gene Kelly, protagonista de um dos mais famosos musicais de todos os tempos, “Singin In The Rain” (Cantando na Chuva), para desmentir que cortara o dinheiro que serviria à reconstrução do Museu Nacional.

Ao som da música composta por Arthur Freed e Nacio Herb Brown, portando um guarda-chuva, Weintraub entra em cena dançando no seu gabinete, olha para a câmera e dá o seu recado. Culpa deputados pela falta da grana. Foi engraçado, mas não convincente.


Os números vividos por ele antes despertaram menos risos. No primeiro, Weintraub reuniu 100 chocolates sobre uma mesa para explicar o corte de 30% na verba para as universidades. Na ocasião, quem fez sucesso foi Bolsonaro ao comer metade de um chocolate.

No número seguinte, o ministro chamou o escritor polonês Franz Kafka, autor de “A Metamorfose”, de Kafta, uma iguaria árabe. Depois, para justificar as notas baixas que tirou como estudante gravou um vídeo mostrando uma cicatriz no ombro direito.

O expediente de Weintraub, ontem, poderia ter terminado sem que ele tivesse praticado mais uma maldade: soltou uma nota incentivando pais de alunos a denunciarem professores de escolas e universidades que estimulem manifestações políticas.

"O MEC está fazendo um esforço muito grande para que o ambiente escolar não seja prejudicado por uma guerra ideológica”, afirmou Weintraub. Ora. Ninguém mais do que ele anima a guerra ideológica no país. Talvez só Bolsonaro. Arriscam-se a dançar.

Natureza, capital nacional e da humanidade

Absoluta na Pré-História, ainda grande – pequena nunca será –, a natureza foi e continuará sendo o alicerce das civilizações. Essa dependência é inexorável e atemporal.

No passado, quando a população do mundo era fração da atual – um décimo há apenas três séculos –, não se pensava em razões que justificassem preocupação. A destruição das florestas da Europa reflete essa visão negligente, compreensível naquela época. Mas as necessidades da população hoje já imensa e crescendo, dia a dia mais consumista, recomendam a inclusão da proteção na moldura legal reguladora do uso da natureza, formulada pelos Estados. E a natureza e suas manifestações (clima, meteorologia... ) não respeitam fronteiras: a proteção deve atentar também para o preceituado em acordos supranacionais que visam o interesse da humanidade, imediato e no maior prazo – atenção comumente em conflito com o nacionalismo exacerbado e o conceito de soberania.

Como o Brasil vem se conduzindo nesse contexto?


Nossos macrociclos econômicos, que se deram em épocas de despreocupação com a natureza, aqui e no mundo, implicaram custos cobrados a ela. O ciclo do açúcar devassou grande de parte da Mata Atlântica no Nordeste. O do ouro exauriu as jazidas do Centro-Oeste. No Brasil já independente, o do café foi menos agressivo, mas também sacrificou áreas da Mata Atlântica no Sudeste – é bem verdade que com excelente contribuição para o desenvolvimento do País. O breve ciclo da borracha foi um caso singular: ocorreu sem agressão sensível à Floresta Amazônica e, como o transporte era essencialmente fluvial, não houve abertura de estradas, as quais incentivam a ocupação desordenada e predatória.

Precisamos rever e ajustar à realidade hoje reconhecida a cultura de descaso pela natureza, que contaminou por séculos (e ainda resiste, embora sujeita a alguma contestação) nossa atividade econômica dependente do exuberante capital natural brasileiro. Vivemos atualmente duas questões que complicam essa correção:

1) A excelente participação agropecuária na nossa economia induz pressão por mais território, atendida principalmente pelo desmatamento, nem sempre criterioso, quando não ilegal. Se a ciência e a realidade confirmarem (estão confirmando) a influência do desmatamento no clima global, o que substituirá as florestas destruídas? A expansão agropecuária e a exploração da madeira, comumente irregular e naturalmente predadora, inspiram preocupação.

2) A exploração do capital não renovável é influência positiva relevante na nossa agenda de exportação, em realce hoje o ferro, mas vem causando problemas, até dramáticos, como foi a ruptura das represas em Mariana e Brumadinho. E a exploração do ouro, hoje sem peso expressivo, tem criado garimpos clandestinos e predatórios em regiões remotas (frequentemente áreas de proteção ambiental) e alimenta o comércio ilegal.

Esses problemas só terão solução quando encontrarmos o equilíbrio sensato e responsável entre, de um lado, o desenvolvimento do País, as necessidades da população brasileira e a nossa contribuição às da população global – o lucro da agropecuária, desde que em limites ponderados, incide no equilíbrio – e, de outro, a proteção da natureza, a segurança da continuidade da sua contribuição por milênios à frente.

Precisamos desenvolver tecnologia e procedimentos que aumentem a produtividade e permitam moderar, sem prejudicar a população, o uso do capital renovável, até porque sua renovação, em tese sempre viável, pode ser política e/ou tecnicamente difícil e cara. A Embrapa é agente importante nesse processo, mas a rentabilidade da agropecuária justifica participação privada.

Quanto ao capital natural não renovável, importam essencialmente as inovações que reduzam seu consumo (no mundo). No maior prazo serão imprescindíveis as que o substituam pelo renovável – a exemplo da substituição do petróleo pelo vento e pelo sol na geração de energia elétrica, já em curso, mas ainda modesta. Outras inovações desse tipo virão (estão acontecendo) se houver pesquisa e desenvolvimento tecnológico adequados – tema em que desponta Israel, país sem petróleo e sem rios com potencial hidrelétrico, mas competente no desenvolvimento tecnológico.

Vivemos no passado recente uma tentativa de revisão do paradigma de desenvolvimento da Amazônia: no início dos 1990 a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, dirigida pelo visionário Eliezer Batista, deslanchou um projeto de levantamento ecológico-econômico que pretendia identificar a(s) atividade(s) econômica(s) ecologicamente menos agressiva(s) nas sub-regiões amazônicas. O apoio público (infraestrutura, BNDES, Banco do Brasil, exonerações...) passaria a considerar a coerência entre empreendimento econômico e vocação regional; já a incompatibilidade justificaria restrições. O projeto não prosperou.

Projetos e inovações inspirados em pesquisas de nossos vários ecossistemas (pesquisas de campo) e em laboratórios, que visem a orientar políticas e procedimentos úteis ao uso sensato e à proteção do capital natural, serão, evidentemente, bem-vindos. É possível? Difíceis na atual conjuntura, em que o tema ecologia é visto como secundário, quando não atentatório à soberania nacional, e chega a ser associado à ideia de complô global, os judeus dos “Protocolos dos Sábios do Sião” substituídos pela ideologia política. Difíceis enquanto persistir a cultura interesseira que vê como inesgotável nosso capital natural e como irrelevante seu uso desordenado. Difíceis na conjuntura fiscal em que recursos para pesquisas vêm sendo reduzidos – redução compreensível no atual quadro de ameaça econômica apocalíptica, mas lastimável sob a perspectiva do Brasil como país capaz de se afirmar no cenário internacional usando responsavelmente seu imenso capital natural.

Bolsonaro é inteligente?

Bolsonaro, afinal, é inteligente ou não? Ele estabelece objetivos e se vale de uma estratégia pensada para alcançá-los ou apenas vai se posicionando meio caoticamente diante das questões que se lhe apresentam? As opiniões se dividem.

Um bom argumento pró-inteligência é o de que ele venceu a eleição mais disputada do país. Velhas raposas da política, algumas com lustrosos títulos acadêmicos, já tentaram e fracassaram.

Admito que o presidente fez coisas certas durante a campanha, mas desconfio um pouco do uso de resultados discretos como métrica de capacidades individuais. O acaso e outras forças que não controlamos são muito mais decisivos para o desfecho de eventos do que nossas mentes fascinadas por comando estão prontas a admitir.

No caso em tela, não me parece despropositado afirmar que, em 2018, o que vimos foi mais o PT perdendo a eleição do que algum candidato a vencendo. Bolsonaro beneficiou-se de ter a imagem de ser o que de mais afastado do PT existia, além de, devido à facada, ter sido poupado de apresentar suas ideias e submetê-las a escrutínio.

Já os que advogam pela vacuidade presidencial apontam como prova principal a gratuidade das polêmicas em que ele se envolve. Via de regra, são questiúnculas com as quais ele tem pouco a ganhar e muito a perder.

Concordo em parte. A desnecessidade dos ataques bolsonaristas é de fato chocante, mas os defensores da hipótese de vida inteligente têm uma resposta fácil: a aparente superfluidade é parte da estratégia; o presidente é tão inteligente que está sempre alguns lances à frente dos que tentam interpretá-lo. Até que surja um momento no qual se possa carimbar o governo como definitivamente fracassado, não há como refutar essa possibilidade.

Isso vale só no plano teórico. No mundo real, quando vejo os despautérios presidenciais, fica difícil acreditar que sejam mais do que simples despautérios.

Banho de água fria

A expectativa de que esta fosse a melhor semana do presidente Jair Bolsonaro, em seus cinco meses de governo, ruiu ontem com o anúncio do PIB negativo e o despertar de um velho ator da política brasileira: a estudantada. Uma nova fase de recessão entrou no radar e o bolsonarismo conseguiu acionar o antibolsonarismo.

Desde as manifestações de domingo a seu favor, Bolsonaro andava saltitante e feliz. Propôs um “pacto” ao Legislativo e ao Judiciário (aliás, alvos dos atos bolsonaristas), aprovou sem dificuldade a MP que reformou a Esplanada dos Ministérios e foi a pé, simpaticamente, ao Congresso.

Dizem que “alegria de pobre dura pouco”, mas, desta vez, foi a alegria do presidente que durou apenas três dias. Já na quinta-feira, o desânimo voltou a turvar o ambiente político, econômico e, consequentemente, social. Agora, com uma novidade: o intocável Paulo Guedes começa a ser arranhado. Só a promessa de reforma da Previdência não está mais dando para o gasto.


A queda de 0,2% do PIB no primeiro trimestre não surpreendeu o mercado, mas contém alguns dados de doer. Foi o primeiro recuo desde 2016 e escancarou a dificuldade do País em garantir investimento. Por quê? Porque os erros políticos do governo Bolsonaro afetam a confiança e a economia. Quem investe num ambiente desses, cheio de trapalhadas e incógnitas?

Um dos erros é provocar, sistematicamente, um setor com alto poder de mobilização, a educação. O primeiro ministro, Vélez Rodríguez, foi engolido por um redemoinho ideológico. O segundo, Abraham Weintraub, já assumiu cutucando a onça com vara curta.

Ambos veem esquerdistas por todos os lados, mas Weintraub foi das palavras aos atos, com cortes no orçamento das universidades, desdém pela área de Humanas e redução das pesquisas (sem falar na desconfiança de órgãos de excelência como IBGE e Fiocruz, que têm fortes laços com a academia). De tanto insistir, o governo conseguiu devolver os estudantes às ruas, depois de anos e anos de preguiça, leniência e alegre promiscuidade da UNE com o poder na era PT.

Bolsonaro teve uma inegável vitória com as manifestações de domingo. Agora, está zero a zero. Os atos a favor dele tinham pauta genérica, com público aberto, e os de ontem tinham foco específico, reunindo estudantes, professores e suas famílias, mas também ocorreram em todos os Estados e no DF. Fazendo as contas, o resultado é que os times entraram em campo e não vão sair tão cedo. É bom para o governo ter “povo” nas ruas o tempo todo? Difícil achar que sim.

Foi embalado pelo apoio de domingo que o presidente resgatou a proposta de um “pacto nacional” feita pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli. Fala-se em pacto quando o ambiente político e econômico não é bom, recorre-se à “governabilidade” e o grande beneficiário é sempre o mesmo: o presidente da República.

Todos os presidentes pós-redemocratização tentaram articular em algum momento um pacto em torno de si, mas o único grande pacto realmente efetivo no País foi o governo Itamar Franco, na base do “quem pariu Mateus que o embale”. Todas as forças políticas relevantes, exceto o PT, cumpriram o compromisso de garantir uma travessia tranquila de dois anos após o impeachment/renúncia de Collor.

Para qualquer pacto é preciso uma disposição de acertar e de somar, não dividir. Se a previsão do PIB cai pela 13.ª semana, a sensação é de que o governo não está acertando. E os atos de ontem funcionam como um banho de água fria. Os bolsonaristas vão ter de fazer muita manifestação para tentar reverter o desânimo, mas nem eles nem Paulo Guedes podem tudo. O presidente precisa dar uma forcinha.

No céu do Brasil

Luc Descheemaeker

Ruas, corredores e gabinetes

Vivemos um momento de manifestações, de um lado e de outro, até com a velha disputa: a minha é maior que a sua. Não sou teórico no assunto, mas o fato de ter vivido muitas manifestações ao longo de 60 anos me autoriza a especular sobre elas de modo geral.

Para começar, sei que observadores de fora sempre são vistos com desconfiança. Há uma constante tensão entre manifestações e os modos de calcular seu alcance: técnicas aritméticas de contá-las, diferenças entre o que viram os manifestantes e a PM, os cálculos nunca coincidem. Enfim uma constante sensação de que os movimentos não foram devidamente reconhecidos.

Falando sobre o falso dilema entre governar com conchavos e obter o que o governo quer apenas com pressão popular, ouvi de uma leitora que estava equivocado. Ela parou de ler o texto supondo que condenaria as manifestações pró-governo. Pena, porque alguns parágrafos adiante descrevia as condições em que essas manifestações são perfeitamente possíveis: quando há convergência de propósitos entre manifestantes e governos, um momento em que é preciso mostrar a demanda social por um tema em debate.

Manifestar-se, para mim, é uma forma de autoexpressão válida em si. Jamais analiso as manifestações apenas por seu tamanho. Existem outros critérios decisivos. Até que ponto elas transcendem a pura autoexpressão e contribuem para a solução real do problema?



Neste último caso, elas são medidas por seu grau de eficiência. E isso não depende apenas dos manifestantes, mas de como as forças políticas que eles apoiam vão aproveitar seu impulso positivo.

Tanto nas manifestações pró-governo como nas contrárias a ele procuro encontrar essa lógica. Um pouco como no futebol: a equipe cria condições de gol, mas são os atacantes, em geral, que o completam. Nas manifestações pelas reformas era de esperar que, dentro das instituições, as aspirações coincidentes fossem levadas adiante.

Bolsonaro deu um passo, parecendo compreender a complementaridade política-manifestantes: a assinatura de um pacto com o Congresso e o STF. Acho o pacto inócuo. Não exclui as negociações específicas para que as pautas de reforma caminhem, o que significa obter de fato os votos necessários à sua aprovação.

No caso do Coaf nas mãos de Sergio Moro, houve um curto-circuito entre o que as pessoas pediam nas ruas e alguns políticos do governo prometiam. A realidade é que os prazos e ritos parlamentares tornariam muito arriscado devolver o Coaf ao Ministério da Justiça. Era possível perder toda a reforma do Ministério apenas para salvar um aspecto dela.

Em outro plano, as manifestações pela educação são ainda defensivas. Trata-se de não perder verbas essenciais para seu funcionamento. Mas um tema dessa dimensão para o País sempre se alarga quando entra em debate.

Não se trata apenas de verbas, mas da necessidade de manter a educação no topo da agenda. Nesse caso, cabe uma questão básica: estamos satisfeitos com a qualidade da educação? Como virar esse jogo?

Manifestantes trazem calor, despertam a esperança de uma grande ação para valorizar realmente esse tema no Brasil. Mas quem pode utilizar esse impulso são os grupos políticos.

A oposição apoia o que acontece nas ruas, mas não propõe ainda uma saída. Os dois ministros da Educação que vi passar pelo Congresso foram questionados sobre um plano estratégico. Não tinham. Senti que alguns deputados se contentaram em mostrar que a discussão, da parte do governo, está limitada ao marxismo cultural e ao método Paulo Freire. Não há ao menos um esboço do que deve ser feito nessa frente, a partir do olhar da oposição.

São espaços abertos. Assim como o governo, fortalecido com as manifestações, precisa aprimorar seus métodos de negociação para conseguir as reformas, a oposição será forçada a pensar o tema educacional com mais amplitude. E tentar algumas vitórias.

Quando as equipes jogarem com um mínimo de coordenação entre rua e Parlamento, o ritmo político no Brasil deixará de ser erradio e ineficaz.

A sociedade está dando régua e compasso. Apoiar uma ou outra manifestação, tirar selfies e louvá-las nas redes e mesmo votar de acordo com o prometido não basta. É preciso algo mais que demonstrações isoladas.

É possível argumentar que essa sintonia entre ruas e Parlamentos deveria ser pensada por partidos. Mas a verdade é que eles não existem como intérpretes e realizadores das aspirações. Em ambos os casos, nas reformas e na educação, será preciso criar frentes suprapartidárias para responder com algo mais profundo que um simples tapa nas costas ou um like nas redes sociais.

Possivelmente ainda encontraremos nas ruas grupos antidemocráticos nas suas propostas, como o fechamento do Congresso, ou mesmo na prática, como a violência ou o vandalismo. Essas forças ainda são minoritárias e insignificantes. Mas o que as alimenta é precisamente a ideia de que as manifestações não mudam nada.

Se houver sintonia entre instituições e as ruas, resultados práticos, a tendência é de manifestações cada vez mais pacíficas. E talvez menos frequentes.

Ser parlamentar com as ruas constantemente cheias é uma experiência interessante. Não há o que temer, apenas vislumbrar a oportunidade histórica que não tiveram mandatos em fases de indiferença.

Ali dentro do Parlamento, sozinho ninguém avança. O passo é descobrir quem está percebendo a mesma realidade ou vivendo a mesma ilusão. Só a prática vai mostrar.

Tudo isso acontece num momento difícil. Índices de crescimento baixos, perigo de recessão, gastos nas alturas. O governo depende de um crédito suplementar de R$ 249 bilhões. Isso dá à palavra experiência um interessante sotaque chinês da velha maldição: que vivam tempos interessantes.

Não há narrativa crível de aprovação da Previdência

Incutir no país o senso de urgência requerido para que a reforma da Previdência seja aprovada tem sido o grande desafio da equipe econômica do governo. E é natural que a campanha de persuasão tenha exigido certo grau de atemorização da opinião pública e do Congresso com as perspectivas desoladoras com que se defrontará o país, caso uma reforma abrangente, com potência fiscal adequada, se mostre, afinal, inviável.

Ao dar força redobrada à campanha conduzida pela equipe econômica do governo anterior, Paulo Guedes vem obrigando o país a fazer uma reflexão incômoda, procrastinada há décadas, sobre a insustentabilidade do quadro fiscal. E é inegável que boa parte da quebra de resistência à reforma adveio da disseminação de uma compreensão mais clara do que poderá ocorrer, caso os gastos previdenciários não possam ser contidos.


A esta altura do jogo, contudo, seria um erro supor que o segredo da viabilização de uma reforma da Previdência com potência fiscal adequada seja nova escalada de atemorização do país com cenários de fiasco da reforma. De um lado, há boas razões para crer que a tática de amedrontamento já tenha passado do ponto. Que seus efeitos colaterais já a tornaram disfuncional. De outro, parece claro que o verdadeiro entrave remanescente à aprovação da reforma não será removido pela aterrorização da opinião pública com os possíveis desdobramentos da não aprovação.

Na sexta-feira passada, o país foi alvoroçado pela divulgação de uma entrevista de Paulo Guedes à revista “Veja”. Tendo alertado que “se não fizermos a reforma, o Brasil pega fogo”, o ministro ameaçou: “Se só eu quero a reforma, vou embora para a casa... pego o avião e vou morar lá fora”. As reações de Bolsonaro não tardaram. De início, em tom defensivo: “Paulo Guedes está no direito dele. Ninguém é obrigado a ficar como ministro meu.” E, em seguida, fazendo coro com Guedes: “Se for uma reforminha ou não tiver reforma, não precisa mais de ministro da Economia, porque o Brasil pode entrar em um caos econômico. Ele vai ter que ir para a praia, vai fazer o que em Brasília?” (O GLOBO, 25/5)

Não se sabe que propósito podem ter tido explicitações tão espalhafatosas da extensão da insegurança do governo com a aprovação da reforma. Certamente não ajudaram a torná-la mais provável. Mas seus efeitos colaterais danosos saltam aos olhos. Ao brandir a iminência do caos, ajudaram a atrofiar ainda mais o que restava do já raquítico crescimento da economia.

Levará algum tempo até que se possa entender com clareza por que o círculo virtuoso de recuperação da economia, antevisto no início do ano, se mostrou tão decepcionante. Mas, entre as possíveis explicações, não poderá deixar de constar o efeito deletério da atemorização exagerada do país a que o governo recorreu, para viabilizar a reforma da Previdência. Não tendo conseguido produzir uma narrativa crível de aprovação da reforma, o governo tentou compensar essa falha com uma atemorização desmesurada, que teve impacto devastador sobre decisões de investimento.

E por que o governo não conseguiu produzir uma narrativa crível? Porque não teve como explicar como seria contornado o verdadeiro entrave à aprovação da reforma. A principal dificuldade que vem sendo enfrentada pela reforma não advém mais da falta de senso de urgência da opinião pública e do Congresso e, sim, da gritante incapacidade do governo de mobilizar o vasto apoio parlamentar de centro direita com que poderia contar.

Bolsonaro ainda não conseguiu entender que, no Brasil, presidencialismo de coalizão não é opção. E, sim, a única forma possível de governar o país. É esta falha de entendimento que tem impedido o governo de construir uma narrativa crível de aprovação da reforma da Previdência.

Não adianta tentar compensar essa deficiência com uma escalada de aterrorização da opinião pública, dos investidores e do Congresso. Quem tem de ser assombrado com o espectro de uma reforma pífia é o próprio Bolsonaro. E é melhor que seja atemorizado intramuros. Não em público.

Weintraub virou animador de protestos estudantis

Para o movimento estudantil brasileiro, a chegada de Abraham Weintraub ao Ministério da Educação foi revigorante. O afilhado do polemista Olavo de Carvalho conseguiu o impensável. Além de devolver a rapaziada às ruas, ressuscitou uma entidade moribunda: a União Nacional dos Estudantes. Sempre que alça a fronte, limpa o pigarro, enche o peito como uma segunda barriga e solta a voz, Weintraub oferece matéria-prima para manifestações estudantis anti-Bolsonaro.

Há um mês, o ministro declarou: "Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas". Com essa frase, transformou um congelamento corriqueiro de verbas educacionais numa bravata ideológica que empurrou professores, estudantes e pais de alunos para o megaprotesto de 15 de maio. Com tempo e energia sobrando, os "idiotas úteis" tomaram gosto pela rua, convocando nova manifestação.

Em vídeo levado às redes sociais na noite de quarta-feira, véspera do segundo protesto de estudantes, Weintraub alçou a fronte. Declarou que manifestações democráticas e pacíficas "são um direito do cidadão". O ministro limpou o pigarro. "O que não pode acontecer é a coação de pessoas que, num ambiente escolar público, criem algum constrangimento aos alunos para participarem dos eventos."

Enchendo o peito, Weintraub arrematou: "Nós estamos aqui recebendo no MEC cartas e mensagens de muitos pais de alunos citando explicitamente que alguns professores, funcionários públicos estão coagindo os alunos ou falando que eles serão punidos de alguma forma, caso eles não participem das manifestações. Isso é ilegal, isso não pode acontecer."

Ao referir-se aos alunos como seres incapazes de raciocinar por conta própria, o ministro ecoou a pecha de "idiotas úteis" que Bolsonaro grudara nos manifestantes do dia 15. Suas palavras potencializaram os protestos desta quinta-feira. Foram menores do que aqueles de duas semanas atrás. Ficaram aquém do anti-protesto pró-Bolsonaro do domingo passado. Entretanto, graças ao estímulo de Weintraub, não foram manifestações negligenciáveis. Encheram as manchetes e a tela do televisor que despejou realidade sobre o tapete da sala de estar minutos antes do início da novela.

Como que decidido a converter os protestos de estudantes num moto-contínuo, Weintraub forneceu material para uma terceira incursão da rapaziada ao asfalto. Mandou divulgar uma nota oficial. Nela, o MEC diz ter recebido 41 reclamações de coação a estudantes. Realça que nenhuma escola pode incentivar movimentos político-partidários.

O texto do MEC contém algo parecido com uma censura prévia. Esclarece que professores, servidores das escolas, alunos e até os seus pais não estão autorizados a divulgar e estimular os protestos durante o horário escolar.

O MEC estimulou a deduragem: "Caso a população identifique a promoção de eventos desse cunho, basta fazer a denúncia pela ouvidoria do MEC." Faltou dizer onde estão as 41 reclamações que supostamente já chegaram ao ministério.

Levadas ao pé da letra, as regras de Weintraub deixariam mal o presidente da República. Se professor desafia a lei ao atiçar protestos, que dirá o chefe da nação. Bolsonaro andou despejando nas redes sociais posts de estímulo à participação no protesto de cinco dias atrás, a favor do seu governo. No limite, o próprio Weintraub deveria sofrer descontos no contracheque por desperdiçar nacos do seu horário de trabalho como fornecedor de material para protestos de estudantes.

Bolsonaro ainda não se deu conta. Mas Weintraub vai se revelando aos pouquinhos uma espécie de cavalo de madeira em cuja barriga Olavo de Carvalho transportou para dentro do Ministério da Educação um presente de grego: a ideologização de um setor que deveria ser técnico. Se a cilada não for desmontada, o Brasil acaba virando uma Troia hipertrofiada.

Pensamento do Dia

Ángel Boligán

Um governo na contramão

Caros brasileiros,

Admiro-me com a persistência de vocês que saem às ruas protestando contra os cortes na educação. Parece que o povo brasileiro está mais ciente do valor da educação para o futuro do país do que o seu próprio governo.

Atrás da hashtag #tsunamidaeducacao, que chama para novas manifestações, se revela a indignação justa com um governo no qual muitos membros usufruíram do privilégio de ter acesso aos mais altos níveis de educação, mas negam o direito de acesso à educação básica aos seus cidadãos.


O governo atual parece estar na contramão da globalização: enquanto no mundo inteiro países competem para atrair os cérebros mais inteligentes e superar a escassez de mão de obra especializada para sobreviver à quarta revolução industrial, o governo brasileiro está em marcha a ré. Manda médicos cubanos para casa, anuncia cortes em todos os níveis de educação e aposta na exportação de umas poucas matérias-primas.

Para um presidente que venceu as eleições com uma campanha eleitoral quase completamente digital, isso é mais estranho ainda. O "tsunami" da manipulação digital causou um terremoto político no Brasil. Será que o "tsunami da educação" pode causar mais um?

É provável. Pois o mundo digital é mais amplo que o universo das fake news. Antes da eleições, viralizou a raiva de bolsonaristas em torno de temas como o "kit gay" e as urnas eletrônicas que supostamente sugerem um candidato. Agora, é a raiva dos estudantes e alunos que não querem ser chamados de "idiotas úteis" por um presidente da República, e não querem precisar sair do seu país para poder se formar.

Sinto muito, ministro Abraham Weintraub, mas não concordo com a sua afirmação de que "o ensino superior é um setor onde o país está, entre aspas, bem". O Relatório de Competitividade Digital divulgado pelo Núcleo de Inovação e Empreendedorismo da Fundação Dom Cabral não deixa dúvidas: a defasagem educacional no Brasil está em todas as áreas.

O ensino superior não escapa: segundo o relatório, enquanto na Índia o percentual dos graduados nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática alcança 31%, no Brasil somente chega a 15%. Mesmo em comparação com outros países latino-americanos esse desempenho é fraco. A taxa no México é 27%, no Chile é de 20%, e no Peru, de 18%.

No ensino fundamental, o cenário não é melhor: Segundo a OCDE, a média em matemática dos alunos brasileiros é bem inferior à média geral da avaliação (Brasil 377 pontos, média dos países avaliados: 490), ficando o Brasil próximo apenas de países como Peru (387 pontos), Indonésia (386 pontos) e Jordânia (380 pontos).

Diante dessas estatísticas, chego a uma certa desilusão: pessoas que tiveram acesso à educação não são necessariamente educadas e, infelizmente, nem sempre tomam sempre decisões baseadas no conhecimento. Mas isso não quer dizer que não vale a pena investir na área de educação.

Pelo contrário: para monitorar dirigentes e políticos que tomam decisões importantes e às vezes se baseiam mais em convicções ideológicas ou políticas do que em evidências científicas, é preciso um povo cada vez mais educado. E de uma educação que não se restrinja aos conhecimentos técnicos, mas se baseie em valores de cidadania e do bem comum. "Brasil acima de tudo"? Sem educação, o Brasil vai ficar abaixo de tudo e de todos.
Astrid Prange de Oliveira

Bom senso que falta

Pablo Picasso 
Parece que a tendência dos políticos é para desprezar as verdadeiras necessidades do povo, desbaratando os dinheiros públicos em gastos desnecessários e obras de injustificada realização. O bom senso parecer ser a faculdade que mais falta faz ao país
Antonio da Silva Mello

Estamos realmente salvando o mundo?

Hoje a pergunta com que nos confrontamos é simples: estamos nós realmente salvando o mundo? Não me parece que a resposta possa ser aquela que gostaríamos. O mundo só pode ser salvo se for outro, se esse outro mundo nascer em nós e nos fizer nascer nele.

Mas nem o mundo está sendo salvo nem ele nos salva enquanto seres de existência única e irrepetível. Alguns de nós estarão fazendo coisas que acreditam ser importantíssimas. Mas poucos terão a crença que estão mudando o nosso futuro. A maior parte de nós está apenas gerindo uma condição que sabemos torta, geneticamente modificada ao sabor de um enorme laboratório para o qual todos trabalhamos mesmo sem vencimento.

Se alguma coisa queremos mudar e parece que mudar é preciso, temos que enfrentar algumas perguntas. A primeira das quais é como estamos nós, biólogos, pensando a ciência biológica? Antes de sermos cientistas somos cidadãos críticos, capazes de questionar os pressupostos que nos são entregues como sendo «naturais». A verdade, colegas, é que estamos hoje perante uma natureza muito pouco natural.

E é aqui que o pecado da preguiça pode estar ganhando corpo. Uma subtil e silenciosa preguiça pode levar a abandonar a reflexão sobre o nosso próprio objecto de trabalho. Aos poucos cedemos ao comité de não mais colocarmos em causa quem somos, o que sabemos, o que fazemos. As últimas décadas tenderam a tecnicizar as ciências biológicas. De novo, insistem connosco em que as soluções virão de sofisticadas tecnologias e de que pouco vale questionarmos os desafios políticos e sociais do nosso tempo. À força de termos que sobreviver vamos aceitando encaixes, ofertas e arranjos. A ideia de que não vale a pena tentar uma outra utopia conduz à acomodação e ao conformismo intelectual.

A própria ideia de Ciência que nos parece isenta e acima de toda a suspeita é uma ideia tão exclusivista que pode ser entendida como uma ideia gulosa. Gulosa e glutona. Engorda não por comer mas por fazer dieta. E essa dieta consiste em ignorar outras sabedorias, outros sistemas de conhecimento.
Mia Couto, "Pensatempos"

Nem a galinha decolou

Até um voo de galinha, um crescimento sem fôlego, seria bem-vindo num país assolado pelo desemprego, mas nem isso os desempregados, subempregados e desalentados tiveram no primeiro trimestre do novo governo, quando a economia encolheu 0,2%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A atividade continuou fraca em abril e em maio, desanimando empresários e consumidores e derrubando as previsões para este ano. Até o governo cortou sua previsão. Com a confirmação oficial do péssimo começo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, falou sobre a liberação de dinheiro do PIS-Pasep e do FGTS. Um sinal, enfim, de um empurrãozinho nos negócios e no emprego? Nada disso, por enquanto. Só depois de aprovada a reforma da Previdência, disse o ministro. Se essas torneiras forem abertas “sem as mudanças fundamentais”, explicou, o resultado será um voo de galinha. E os vinte e tantos milhões de desocupados e marginalizados do mercado de empregos?

Terão de esperar, porque o ministro e seus colegas de governo parecem pouco preocupados com essa gente. Ou, no mínimo, pouco atentos a detalhes do dia a dia, como as condições para comprar comida, remédios, sabonetes e também passagens para ir em busca de ocupação ou até a uma entrevista de emprego.


Tudo se passa, em Brasília, como se só o longo prazo importasse. De fato, crescimento duradouro só se alcança com previsibilidade, confiança, investimentos produtivos, educação e treinamento. A reforma da Previdência é importante para criar um horizonte mais claro. Mas as pessoas precisam comer no curto prazo. Além disso, até um voo de águia depende de um impulso inicial.

Por que deixar esse impulso para depois de aprovada a reforma? Para manter a sensação de urgência, como se os mais de 13 milhões de desempregados e milhares de empresários em risco de quebra fossem usados como reféns?

Nem mesmo um pequeno impulso moveu a economia nos primeiros três meses. Nesse período, o Produto Interno Bruto (PIB) foi 0,2% menor que nos meses de outubro a dezembro de 2018, quando a produção, já se arrastando, avançou apenas 0,1%. Os sinais de otimismo em relação ao novo governo logo se dissiparam.

O presidente se manteve ocupado com estranhas prioridades, como armas e mudança da embaixada em Israel. Ministros se atropelaram ou se meteram em confusões, faltou coordenação no Executivo, a base parlamentar falhou e a equipe econômica se concentrou em assuntos de longo prazo, como se o País, sem milhões em condições dramáticas, pudesse esperar as grandes mudanças institucionais.

Sem recursos e sem confiança, as famílias consumiram apenas 0,3% mais que no trimestre final de 2019. Consumidores em condições melhores poderiam ter dado um impulso a mais à produção. Nesse quadro de estagnação interna e exportações travadas, a indústria de transformação produziu 0,5% menos que no trimestre imediatamente anterior. Poderia ter tido um desempenho muito melhor, sem dificuldade, porque o setor trabalha com cerca de 30% de capacidade ociosa. Poderia também ter oferecido mais empregos – e empregos formais.

Com ampla capacidade ociosa, o setor empresarial teria pouco estímulo para investir em máquinas, equipamentos e obras, especialmente diante de um horizonte opaco. O governo, sem dinheiro e enrolado em confusões, pouco poderia contribuir para a formação de capital fixo. Somados esses fatores, o investimento foi 1,7% menor que no trimestre final de 2019. Investir em infraestrutura será crucial para um crescimento duradouro, mas para isso será preciso avançar em licitações e em mobilização de capital privado.

A aprovação da reforma da Previdência, embora essencial, será insuficiente para prover o impulso necessário à movimentação da economia. Ao anunciar a liberação de recursos para as famílias, o ministro Paulo Guedes parece endossar esse ponto de vista. Seria melhor – e mais humano – antecipar esse impulso. Além disso, o presidente ajudará se der atenção às questões mais prementes, parar de agir por impulso, deixar as picuinhas, tuitar menos e começar a governar para todos os brasileiros.