quarta-feira, 18 de junho de 2025
I.ntimidade A.rtificial
Em 2013, o filme Her (Ela) foi nomeado para mais de 100 galardões, e ganhou vários. Contava a história de um homem que se apaixonava por uma namorada virtual (um “operating system”). À data, parecia um filme de ficção científica, que explorava as implicações filosóficas das nossas interações com a tecnologia, o que é amor e o que é ser humano.
Dez anos depois, a app Character.AI tem mais de 20 milhões de utilizadores diários, que, em média, passam duas horas online trocando mensagens com o seu amigo ou namorado virtual. A app Replika divulga ter mais de 30 milhões de utilizadores permanentes, que, em média, trocam 70 mensagens por dia com a sua “personagem”.
No filme, os companheiros virtuais partem, abandonando os humanos, que consideram emocional e intelectualmente limitados. Não deixa de ser um final feliz, ao obrigar-nos a aceitar a imperfeição das relações humanas. Imperfeitas, mas verdadeiras. Mas o mundo real não é Hollywood e, em 2024, um rapaz de 14 anos – Sewell Setzer – nos Estados Unidos, suicidou-se para “se juntar” à sua namorada virtual. Os promotores destas apps afirmam contribuir para resolver o problema da solidão nas sociedades modernas. No entanto, estudos realizados por entidades independentes como MIT (Massachusetts Institute of Technology) demonstram que a utilização diária destas apps agrava sentimentos de solidão e torna os seus utilizadores menos sociáveis. É natural. O “companheiro virtual” não julga, está sempre presente, é sempre gentil.
Não admira. O seu modelo de negócio é cobrar uma subscrição, vender espaço publicitário e obter os dados dos utilizadores para os vender a terceiros. Para isso, há que assegurar o máximo tempo de utilização da app. O “companheiro virtual” não gosta de nós, nem está empenhado no nosso bem-estar.
Não tem sentimentos, mas parece ter…
E assim, ainda Alice não tinha sido capaz de retornar do “país das maravilhas”, que são as redes sociais, e já mergulhou num mais perigoso e viciante, onde agora já não é apenas a nossa atenção que é sequestrada, mas a nossa intimidade.
Trocamos o esforço de fazer e manter amigos e cultivar relações saudáveis com colegas e familiares por um “mentor”, “amigo”, “namorado” que não nos contraria nem nunca se sente negligenciado. A quem pedimos conselhos, recomendações, conforto moral para os dilemas que nos assolam e inclusive prazer sexual (de acordo com informação divulgada, sexo é o segundo tópico mais abordado).
O Regulamento da Inteligência Artificial proíbe “sistema de IA que explore vulnerabilidades de uma pessoa singular (…) devid(o) à sua idade, incapacidade ou situação socioeconómica específica, com o objetivo ou o efeito de distorcer substancialmente o comportamento dessa pessoa”. Naturalmente, não é possível afirmar que as empresas criadoras de AI companions visam distorcer comportamentos, mas não o fazem? Ou não existe, pelo menos, um perigo sério de o fazerem? O regulamento também obriga a medidas para gerir risco elevado de um sistema ter repercussões negativas em menores de 18 anos ou pessoas vulneráveis. No entanto, as AI companion apps estão disponíveis e desconhece-se que medidas de gestão do risco foram implementadas.
Nos EUA, os pais de Sewell Setzer interpuseram uma ação por produto defeituoso. Numa decisão preliminar, o juiz veio admitir o processo, depois de a AI companion ter alegado que não vendia um produto, mas um serviço e que estava protegida pela Primeira Emenda da Constituição. Uma vitória neste processo seria um primeiro passo para uma efetiva responsabilização das empresas pelos produtos que desenvolvem.
No entretanto, estejamos alerta, por nós e pelos que nos rodeiam, para não substituirmos uma relação humana – com os seus desafios – por um papagaio eletrónico, que nunca nos visitará quando estamos doentes, não nos apresentará à nossa alma gémea nem nos recomendará para um emprego. A vida é aqui e agora, no mundo real.
Dez anos depois, a app Character.AI tem mais de 20 milhões de utilizadores diários, que, em média, passam duas horas online trocando mensagens com o seu amigo ou namorado virtual. A app Replika divulga ter mais de 30 milhões de utilizadores permanentes, que, em média, trocam 70 mensagens por dia com a sua “personagem”.
No filme, os companheiros virtuais partem, abandonando os humanos, que consideram emocional e intelectualmente limitados. Não deixa de ser um final feliz, ao obrigar-nos a aceitar a imperfeição das relações humanas. Imperfeitas, mas verdadeiras. Mas o mundo real não é Hollywood e, em 2024, um rapaz de 14 anos – Sewell Setzer – nos Estados Unidos, suicidou-se para “se juntar” à sua namorada virtual. Os promotores destas apps afirmam contribuir para resolver o problema da solidão nas sociedades modernas. No entanto, estudos realizados por entidades independentes como MIT (Massachusetts Institute of Technology) demonstram que a utilização diária destas apps agrava sentimentos de solidão e torna os seus utilizadores menos sociáveis. É natural. O “companheiro virtual” não julga, está sempre presente, é sempre gentil.
Não admira. O seu modelo de negócio é cobrar uma subscrição, vender espaço publicitário e obter os dados dos utilizadores para os vender a terceiros. Para isso, há que assegurar o máximo tempo de utilização da app. O “companheiro virtual” não gosta de nós, nem está empenhado no nosso bem-estar.
Não tem sentimentos, mas parece ter…
E assim, ainda Alice não tinha sido capaz de retornar do “país das maravilhas”, que são as redes sociais, e já mergulhou num mais perigoso e viciante, onde agora já não é apenas a nossa atenção que é sequestrada, mas a nossa intimidade.
Trocamos o esforço de fazer e manter amigos e cultivar relações saudáveis com colegas e familiares por um “mentor”, “amigo”, “namorado” que não nos contraria nem nunca se sente negligenciado. A quem pedimos conselhos, recomendações, conforto moral para os dilemas que nos assolam e inclusive prazer sexual (de acordo com informação divulgada, sexo é o segundo tópico mais abordado).
O Regulamento da Inteligência Artificial proíbe “sistema de IA que explore vulnerabilidades de uma pessoa singular (…) devid(o) à sua idade, incapacidade ou situação socioeconómica específica, com o objetivo ou o efeito de distorcer substancialmente o comportamento dessa pessoa”. Naturalmente, não é possível afirmar que as empresas criadoras de AI companions visam distorcer comportamentos, mas não o fazem? Ou não existe, pelo menos, um perigo sério de o fazerem? O regulamento também obriga a medidas para gerir risco elevado de um sistema ter repercussões negativas em menores de 18 anos ou pessoas vulneráveis. No entanto, as AI companion apps estão disponíveis e desconhece-se que medidas de gestão do risco foram implementadas.
Nos EUA, os pais de Sewell Setzer interpuseram uma ação por produto defeituoso. Numa decisão preliminar, o juiz veio admitir o processo, depois de a AI companion ter alegado que não vendia um produto, mas um serviço e que estava protegida pela Primeira Emenda da Constituição. Uma vitória neste processo seria um primeiro passo para uma efetiva responsabilização das empresas pelos produtos que desenvolvem.
No entretanto, estejamos alerta, por nós e pelos que nos rodeiam, para não substituirmos uma relação humana – com os seus desafios – por um papagaio eletrónico, que nunca nos visitará quando estamos doentes, não nos apresentará à nossa alma gémea nem nos recomendará para um emprego. A vida é aqui e agora, no mundo real.
Trump e Musk põem ideia de progresso em xeque
O homem mais rico do mundo, Elon Musk, entrou em choque com o homem mais poderoso do mundo, Donald Trump. Uma semana depois, fizeram as pazes. Mais que o conteúdo da divergência, interessa perguntar que mundo é este, em que são simultaneamente o mais rico e o mais poderoso.
É um mundo tecnológico e cientificamente sem paralelo na História da humanidade. Eles discordam do ritmo da conquista de Marte. Ambos dispõem de redes sociais próprias e nelas se comunicam com milhões com um movimento de dedos.
No entanto são dois egos inflados, prontos para um embate juvenil porque se consideram grandes demais para o espaço que ocupam. A noção das imensas responsabilidades pareceu desaparecer diante do orgulho ferido.
O que isso diz sobre o mundo, se é que diz? Parece que o imenso avanço científico não significou amadurecimento emocional. Pelo contrário, passa uma sensação de que estamos regredindo.
Quando penso em imperadores como Adriano e Marco Aurélio, estadistas como Churchill e De Gaulle, combatentes como Ho Chi Minh e Nelson Mandela, sinto Trump como um milionário brincando de governar. Ele constrói muros no lugar de pontes, reaviva prisões fora do país, como a de Guantánamo, transforma países em presídio, como El Salvador, e ressuscita a prisão de Alcatraz.
A campanha contra os imigrantes mostra algo muito sério: Trump caminha para um roteiro autoritário, conhecido na História, mas que representa um abalo na democracia americana.
Famílias são separadas pela polícia, pessoas são detidas no caminho da igreja, um dançarino brasileiro com dez anos de trabalho nos Estados Unidos perde sua licença, estudantes são proibidos de entrar, países inteiros não têm mais acesso a visto, cientistas deixam o país.
Tamanha insensatez só poderia provocar as reações que começaram na Califórnia e tendem a se estender. Parece que Trump esperava por isso para acionar tropas federais, passando por cima de governadores.
Um das formas de explicar Trump é a análise da conjuntura mundial, o exame do peso da imigração e o resultado das políticas ocidentais, suscitando o avanço da extrema direita.
Mas, às vezes, suspeito que há algo transcendendo às conjunturas, algo que é uma característica humana pronta a renascer em cada momento histórico. Essa suspeita me leva aos livros de Primo Levi, um escritor e cientista italiano que ficou preso em Auschwitz. Refletindo sobre sua experiência no campo de extermínio, ele acha que a raiz do mal reside numa assimetria inseparável da vida.
Da mesma forma, segundo ele, que a ciência pode ser usada com fins destrutivos, a racionalidade humana contém o germe que pode engendrar violência mortal. Auschwitz era a derrocada absoluta da razão, ao mesmo tempo que havia uma metódica organização racional no funcionamento do campo.
Neste momento, o homem mais poderoso do mundo persegue imigrantes que foram, parcialmente, o dínamo da grandeza de seu país. O homem mais rico do planeta comandou a política que retirou a ajuda americana ao mundo, ameaçando a saúde e a segurança alimentar de milhares de crianças.
Enquanto Trump chamava o outro de louco, e Musk insinuava que seu adversário é pedófilo, minha pegunta é bastante singela: o que queremos dizer quando falamos em progresso?
Essa reflexão não pode negar as imensas conquistas materiais e culturais dos Estados Unidos. Mas reacende a dúvida de que algo estava contido em seu modo de vida que acabaria resultando nesses dois personagens que ocupam o topo da pirâmide nacional.
Talvez a resposta seja mesmo a de Primo Levi: uma assimetria inseparável da vida. Como detectá-la? Como combatê-la? Primo Levi já morreu, e as perguntas seguem no ar.
É um mundo tecnológico e cientificamente sem paralelo na História da humanidade. Eles discordam do ritmo da conquista de Marte. Ambos dispõem de redes sociais próprias e nelas se comunicam com milhões com um movimento de dedos.
No entanto são dois egos inflados, prontos para um embate juvenil porque se consideram grandes demais para o espaço que ocupam. A noção das imensas responsabilidades pareceu desaparecer diante do orgulho ferido.
O que isso diz sobre o mundo, se é que diz? Parece que o imenso avanço científico não significou amadurecimento emocional. Pelo contrário, passa uma sensação de que estamos regredindo.
Quando penso em imperadores como Adriano e Marco Aurélio, estadistas como Churchill e De Gaulle, combatentes como Ho Chi Minh e Nelson Mandela, sinto Trump como um milionário brincando de governar. Ele constrói muros no lugar de pontes, reaviva prisões fora do país, como a de Guantánamo, transforma países em presídio, como El Salvador, e ressuscita a prisão de Alcatraz.
A campanha contra os imigrantes mostra algo muito sério: Trump caminha para um roteiro autoritário, conhecido na História, mas que representa um abalo na democracia americana.
Famílias são separadas pela polícia, pessoas são detidas no caminho da igreja, um dançarino brasileiro com dez anos de trabalho nos Estados Unidos perde sua licença, estudantes são proibidos de entrar, países inteiros não têm mais acesso a visto, cientistas deixam o país.
Tamanha insensatez só poderia provocar as reações que começaram na Califórnia e tendem a se estender. Parece que Trump esperava por isso para acionar tropas federais, passando por cima de governadores.
Um das formas de explicar Trump é a análise da conjuntura mundial, o exame do peso da imigração e o resultado das políticas ocidentais, suscitando o avanço da extrema direita.
Mas, às vezes, suspeito que há algo transcendendo às conjunturas, algo que é uma característica humana pronta a renascer em cada momento histórico. Essa suspeita me leva aos livros de Primo Levi, um escritor e cientista italiano que ficou preso em Auschwitz. Refletindo sobre sua experiência no campo de extermínio, ele acha que a raiz do mal reside numa assimetria inseparável da vida.
Da mesma forma, segundo ele, que a ciência pode ser usada com fins destrutivos, a racionalidade humana contém o germe que pode engendrar violência mortal. Auschwitz era a derrocada absoluta da razão, ao mesmo tempo que havia uma metódica organização racional no funcionamento do campo.
Neste momento, o homem mais poderoso do mundo persegue imigrantes que foram, parcialmente, o dínamo da grandeza de seu país. O homem mais rico do planeta comandou a política que retirou a ajuda americana ao mundo, ameaçando a saúde e a segurança alimentar de milhares de crianças.
Enquanto Trump chamava o outro de louco, e Musk insinuava que seu adversário é pedófilo, minha pegunta é bastante singela: o que queremos dizer quando falamos em progresso?
Essa reflexão não pode negar as imensas conquistas materiais e culturais dos Estados Unidos. Mas reacende a dúvida de que algo estava contido em seu modo de vida que acabaria resultando nesses dois personagens que ocupam o topo da pirâmide nacional.
Talvez a resposta seja mesmo a de Primo Levi: uma assimetria inseparável da vida. Como detectá-la? Como combatê-la? Primo Levi já morreu, e as perguntas seguem no ar.
ChatGPT, aquele agente russo
A Agência de Pesquisa da Internet, a agência russa de desinformação fundada por Yevgeny Prigozhin em São Petersburgo, tornou-se infame por usar contas falsas para semear a divisão política e manipular a opinião pública em países como os EUA. A estratégia do Pravda, o novo ecossistema de propaganda e desinformação do Kremlin, é “inundar” os mecanismos de busca para que os modelos de inteligência artificial (IA) sejam “treinados” com informações falsas. Como disse o propagandista John Mark Dougan em uma conferência para autoridades russas em Moscou: “Ao divulgar essas narrativas russas a partir da perspectiva russa, podemos mudar a inteligência artificial globalmente.”
A dificuldade é mínima. Por um lado, as plataformas digitais desmantelaram seus departamentos de verificação de conteúdo e pararam de financiar os externos. Por outro, as empresas de IA coletam conteúdo da internet de forma tão indiscriminada para treinar seus modelos que imagens de violência bruta e abuso sexual infantil escapam da rede. Um terceiro argumento é que as narrativas do Kremlin e da Casa Branca estão tão alinhadas quanto durante a campanha presidencial de 2016. Mas agora as empresas que criam os modelos de IA estão trabalhando para Donald Trump.
Talvez seja por isso que modelos de IA estejam envenenando os protestos anti-imigração que começaram em Los Angeles e agora se espalham para 50 estados. Grok e ChatGPT juram que a foto real e verificada de soldados da Guarda Nacional dormindo no chão durante os protestos do primeiro fim de semana é do Afeganistão ou do Capitólio em 2021. E que a imagem de uma pilha de tijolos empilhados que um varejista de ferragens malaio postou online anos atrás era munição que Soros havia deixado para os manifestantes do fim de semana atirarem contra as autoridades policiais e de imigração. Ambas parecem confirmar a falsa narrativa de que os protestos são violentos e secretamente financiados e equipados por misteriosas facções externas como Soros e outros setores do Partido Democrata.
Fundado em abril de 2022, o Pravda mantém centenas de domínios repletos de notícias falsas direcionadas a diferentes países ao redor do mundo, incluindo a Espanha, onde espalhou algumas das principais farsas sobre o Dana e o grande apagão de 28 de abril em espanhol, catalão e basco. Por exemplo, que o apoio à Ucrânia deixou a ajuda a Valência sem fundos, ou declarações falsas de Ursula von der Leyen atribuindo o apagão a um ataque cibernético russo, 23 minutos após o apagão geral.
De acordo com um relatório do American Sunlight Project, mais de 3,6 milhões dos artigos publicados pelo Pravda no ano passado foram digeridos por grandes chatbots ocidentais. “Ao inundar os resultados de busca e os mecanismos de busca com desinformação pró-Kremlin, a internet está distorcendo a maneira como os grandes modelos de linguagem processam e apresentam notícias e informações”, observa o relatório. O NewsGuard descobriu que, em um terço dos casos, chatbots da Microsoft, Google, OpenAI, You.com, xAI, Anthropic, Meta, Mistral e Perplexity reciclam argumentos apresentados pelo Pravda e os regurgitam externamente.
Nós os usamos para pesquisar, entender e traduzir coisas, para fazer terapia e para saber o que está acontecendo no mundo, mas os modelos de IA são tão vulneráveis a campanhas de desinformação quanto um Gymbro no Telegram de Alvise. Eles são os novos canais de massa de desinformação.
A dificuldade é mínima. Por um lado, as plataformas digitais desmantelaram seus departamentos de verificação de conteúdo e pararam de financiar os externos. Por outro, as empresas de IA coletam conteúdo da internet de forma tão indiscriminada para treinar seus modelos que imagens de violência bruta e abuso sexual infantil escapam da rede. Um terceiro argumento é que as narrativas do Kremlin e da Casa Branca estão tão alinhadas quanto durante a campanha presidencial de 2016. Mas agora as empresas que criam os modelos de IA estão trabalhando para Donald Trump.
Talvez seja por isso que modelos de IA estejam envenenando os protestos anti-imigração que começaram em Los Angeles e agora se espalham para 50 estados. Grok e ChatGPT juram que a foto real e verificada de soldados da Guarda Nacional dormindo no chão durante os protestos do primeiro fim de semana é do Afeganistão ou do Capitólio em 2021. E que a imagem de uma pilha de tijolos empilhados que um varejista de ferragens malaio postou online anos atrás era munição que Soros havia deixado para os manifestantes do fim de semana atirarem contra as autoridades policiais e de imigração. Ambas parecem confirmar a falsa narrativa de que os protestos são violentos e secretamente financiados e equipados por misteriosas facções externas como Soros e outros setores do Partido Democrata.
Fundado em abril de 2022, o Pravda mantém centenas de domínios repletos de notícias falsas direcionadas a diferentes países ao redor do mundo, incluindo a Espanha, onde espalhou algumas das principais farsas sobre o Dana e o grande apagão de 28 de abril em espanhol, catalão e basco. Por exemplo, que o apoio à Ucrânia deixou a ajuda a Valência sem fundos, ou declarações falsas de Ursula von der Leyen atribuindo o apagão a um ataque cibernético russo, 23 minutos após o apagão geral.
De acordo com um relatório do American Sunlight Project, mais de 3,6 milhões dos artigos publicados pelo Pravda no ano passado foram digeridos por grandes chatbots ocidentais. “Ao inundar os resultados de busca e os mecanismos de busca com desinformação pró-Kremlin, a internet está distorcendo a maneira como os grandes modelos de linguagem processam e apresentam notícias e informações”, observa o relatório. O NewsGuard descobriu que, em um terço dos casos, chatbots da Microsoft, Google, OpenAI, You.com, xAI, Anthropic, Meta, Mistral e Perplexity reciclam argumentos apresentados pelo Pravda e os regurgitam externamente.
Nós os usamos para pesquisar, entender e traduzir coisas, para fazer terapia e para saber o que está acontecendo no mundo, mas os modelos de IA são tão vulneráveis a campanhas de desinformação quanto um Gymbro no Telegram de Alvise. Eles são os novos canais de massa de desinformação.
Verdade
O que está acontecendo em Gaza se encaixa na definição de genocídio, uma tentativa de destruir um grupo como tal.
Omer Bartov, professor de estudos sobre Holocausto e genocídio na Universidade Brown, nos Estados Unidos
Que o Irã não nos faça esquecer Gaza
Há 30 anos que Benjamin Netanyahu desejava uma guerra entre Israel e o Irã. Desde que se tornou líder do Governo, pela primeira vez, em 1996, o primeiro-ministro israelita sempre assentou carreira e discurso contra a possibilidade da República Islâmica do Irão de possuir armas nucleares. Um relatório da Agência Internacional de Energia Atómica que acusava Teerão de não cumprir as suas obrigações de não-proliferação nuclear, e o consequente argumento da ameaça existencial que daí poderia decorrer, uma nova ronda de negociações entre EUA e Irã, os crescentes protestos contra a ocupação e as atrocidades cometidas em Gaza ou na Cisjordânia e a cimeira que a França se preparava para organizar em nome da solução dos dois Estados criaram a conjuntura para os ataques unilaterais de sexta-feira.
Como faz quando se sente acossado, Netanyahu optou por uma fuga para a frente. Com os ataques de surpresa, Israel abortou as negociações de um eventual acordo sobre o desenvolvimento de energia nuclear iraniana, como sempre fez quando negociações para um cessar-fogo em Gaza registavam algum avanço. O que fica por saber é até onde vai a anuência do Presidente dos EUA, que queria aquele acordo, depois de desmantelar um acordo semelhante que tinha herdado de Barack Obama, aos planos do primeiro-ministro israelita. Daniel Shapiro, embaixador dos EUA em Israel de 2011 a 2017, disse à Foreign Affairs que Donald Trump teria pedido mais tempo a Netanyahu para negociar e que este se tinha recusado a ceder. A ser verdade, não é um grande indicador sobre a capacidade de influência de Trump e da política externa dos EUA, que tem estado à prova no Médio Oriente.
O Irão fez saber que estava disponível para aceitar um acordo que impeça o país de adquirir armas nucleares, caso isso signifique terminar com esta guerra, e Israel prometeu massacrar Teerão e aconselhou a população a deixar a capital. Trump tentará forçar um acordo nuclear como o Irão para acabar com esta guerra?, perguntava-se esta segunda-feira no Haaretz. O homem que foi eleito para terminar as guerras que com ele em Washington não teriam começado não fará mais do que galhofar na sala oval ou no G7, onde se recusou a contribuir para atenuar a dimensão do conflito. Já antes, o secretário de Estado Marco Rubio dissera o que se esperava do posicionamento dos EUA. Basicamente, a mensagem é: não estamos envolvidos nos ataques e não é nada connosco. Trivial. Muito MAGA.
Netanyahu vai aproveitar a oportunidade que lhe dá o Presidente dos EUA, distraído com o orgulho da parada militar em dia de festa de aniversário, e tentar aplicar ao regime do Irã que fez ao Hezbollah ou ao Hamas: a decapitação das cúpulas militares e políticas. E continuar com o seu plano de reconfiguração do Médio Oriente, depois das derrotas iranianas irremediáveis em Gaza, Líbano ou Síria.
Esta guerra preventiva, como lhe chama Israel, para prevenir que outra possa acontecer, é um paradoxo. É mais um atentado ao direito internacional. Israel demonstrou com estes ataques a capacidade de infiltração e de neutralização que já tinha exibido nos seus ataques ao Hezbollah. Mas este crescendo militar israelita não irá trazer os reféns de Gaza de volta, dificilmente acabará com as ambições e possibilidades iranianas de enriquecerem urânio, o que se seguir à eventual queda do regime dos ayatollahs será uma incógnita, e a única certeza é que Benjamin Netanyahu prolongará a sua vida política. Não é certo que o que move Netanyahu seja a segurança dos seus cidadãos. Caso o regime iraniano sobreviva, teremos um cenário mais bélico do que nunca, uma crise petrolífera, na certa, e quiçá o envolvimento dos EUA, o que talvez seja o próximo desejo de “Bibi”, o que é pouco MAGA.
Esta fuga para a frente significa uma guerra contra uma teocracia que não respeita os direitos civis de ninguém, e em particular das mulheres, e que tem sido um apoio determinante na propagação do terrorismo e no esforço de guerra russo na Ucrânia. Mas a simpatia que Israel poderá obter por enfrentar um regime nada simpático aos nossos olhos ocidentais não nos pode fazer esquecer os crimes e a catástrofe de Gaza. Caso isso aconteça, será uma das façanhas de Netanyahu: fazer com que Israel deixe de ser o Estado pária que deve ser, por causa dos crimes de guerra praticados naquele território, com a fome a ser usada como uma arma de guerra, e a fomentar uma milícia palestiniana para combater o Hamas, e passe a ser o aliado em apuros, a vítima a precisar de ajuda para enfrentar um regime condenável.
Como faz quando se sente acossado, Netanyahu optou por uma fuga para a frente. Com os ataques de surpresa, Israel abortou as negociações de um eventual acordo sobre o desenvolvimento de energia nuclear iraniana, como sempre fez quando negociações para um cessar-fogo em Gaza registavam algum avanço. O que fica por saber é até onde vai a anuência do Presidente dos EUA, que queria aquele acordo, depois de desmantelar um acordo semelhante que tinha herdado de Barack Obama, aos planos do primeiro-ministro israelita. Daniel Shapiro, embaixador dos EUA em Israel de 2011 a 2017, disse à Foreign Affairs que Donald Trump teria pedido mais tempo a Netanyahu para negociar e que este se tinha recusado a ceder. A ser verdade, não é um grande indicador sobre a capacidade de influência de Trump e da política externa dos EUA, que tem estado à prova no Médio Oriente.
O Irão fez saber que estava disponível para aceitar um acordo que impeça o país de adquirir armas nucleares, caso isso signifique terminar com esta guerra, e Israel prometeu massacrar Teerão e aconselhou a população a deixar a capital. Trump tentará forçar um acordo nuclear como o Irão para acabar com esta guerra?, perguntava-se esta segunda-feira no Haaretz. O homem que foi eleito para terminar as guerras que com ele em Washington não teriam começado não fará mais do que galhofar na sala oval ou no G7, onde se recusou a contribuir para atenuar a dimensão do conflito. Já antes, o secretário de Estado Marco Rubio dissera o que se esperava do posicionamento dos EUA. Basicamente, a mensagem é: não estamos envolvidos nos ataques e não é nada connosco. Trivial. Muito MAGA.
Netanyahu vai aproveitar a oportunidade que lhe dá o Presidente dos EUA, distraído com o orgulho da parada militar em dia de festa de aniversário, e tentar aplicar ao regime do Irã que fez ao Hezbollah ou ao Hamas: a decapitação das cúpulas militares e políticas. E continuar com o seu plano de reconfiguração do Médio Oriente, depois das derrotas iranianas irremediáveis em Gaza, Líbano ou Síria.
Esta guerra preventiva, como lhe chama Israel, para prevenir que outra possa acontecer, é um paradoxo. É mais um atentado ao direito internacional. Israel demonstrou com estes ataques a capacidade de infiltração e de neutralização que já tinha exibido nos seus ataques ao Hezbollah. Mas este crescendo militar israelita não irá trazer os reféns de Gaza de volta, dificilmente acabará com as ambições e possibilidades iranianas de enriquecerem urânio, o que se seguir à eventual queda do regime dos ayatollahs será uma incógnita, e a única certeza é que Benjamin Netanyahu prolongará a sua vida política. Não é certo que o que move Netanyahu seja a segurança dos seus cidadãos. Caso o regime iraniano sobreviva, teremos um cenário mais bélico do que nunca, uma crise petrolífera, na certa, e quiçá o envolvimento dos EUA, o que talvez seja o próximo desejo de “Bibi”, o que é pouco MAGA.
Esta fuga para a frente significa uma guerra contra uma teocracia que não respeita os direitos civis de ninguém, e em particular das mulheres, e que tem sido um apoio determinante na propagação do terrorismo e no esforço de guerra russo na Ucrânia. Mas a simpatia que Israel poderá obter por enfrentar um regime nada simpático aos nossos olhos ocidentais não nos pode fazer esquecer os crimes e a catástrofe de Gaza. Caso isso aconteça, será uma das façanhas de Netanyahu: fazer com que Israel deixe de ser o Estado pária que deve ser, por causa dos crimes de guerra praticados naquele território, com a fome a ser usada como uma arma de guerra, e a fomentar uma milícia palestiniana para combater o Hamas, e passe a ser o aliado em apuros, a vítima a precisar de ajuda para enfrentar um regime condenável.
Como refletir sobre o que está acontecendo com o Irã e Israel
O ataque em larga escala de Israel à infraestrutura nuclear do Irã na sexta-feira ) precisa ser adicionado à lista de guerras marcantes que remodelaram o Oriente Médio desde a Segunda Guerra Mundial e que são conhecidas apenas pelas suas datas —1956, 1967, 1973, 1982, 2023— e agora 2025.
É cedo demais, e as possibilidades são tão variadas, para dizer como o jogo de nações do Oriente Médio será alterado pelo conflito Israel-Irã de 2025. Tudo o que posso dizer agora é que tanto a possibilidade extremamente positiva —de que isso inicie uma reação em cadeia que acabe derrubando o regime iraniano e o substituindo por um governo mais decente, secular e consensual— quanto a possibilidade extremamente negativa —de que isso incendeie toda a região e envolva os Estados Unidos— estão na mesa.
Entre esses extremos ainda existe uma possibilidade intermediária — uma solução negociada —, mas talvez não por muito tempo. O presidente Donald Trump tem usado o ataque israelense de forma astuta para, na prática, dizer aos iranianos: "Ainda estou disposto a negociar um fim pacífico para seu programa nuclear, e vocês podem querer fazer isso rápido —porque meu amigo Bibi (como também é conhecido Netanyahu) é L-O-U-C-O. Estou esperando seu telefonema."
Diante desse leque de possibilidades, o melhor que posso oferecer a quem acompanha de casa são as variáveis principais que acompanharei para determinar qual dessas —ou alguma outra que eu não consiga prever— será o desfecho mais provável.
1) O que torna esse conflito entre Irã e Israel tão profundo é a promessa de Israel de continuar a luta até eliminar a capacidade do Irã de fabricar armas nucleares — de uma forma ou de outra.
O Irã provocou isso, acelerando fortemente seu enriquecimento de urânio para níveis próximos aos de armamento. Começou a disfarçar esses esforços com tanta agressividade que até a Agência Internacional de Energia Atômica declarou na quinta-feira que o Irã não está cumprindo suas obrigações de não proliferação —a primeira vez em 20 anos que a agência faz tal declaração. Israel já apontou sua arma para o programa nuclear iraniano várias vezes nos últimos 15 anos, mas em todas recuou no último momento, seja por pressão dos EUA, seja por dúvidas internas —o que torna impossível exagerar o que está acontecendo agora.
2) A grande dúvida técnica que tenho é se os bombardeios israelenses às instalações nucleares iranianas, como Natanz —que está enterrada profundamente no subsolo— causaram impacto suficiente para danificar as centrífugas usadas no enriquecimento de urânio, superando seus amortecedores, e tornando-as inoperantes, ao menos por um tempo. No mínimo, é provável que o ataque israelense tenha bombardeado as entradas das instalações subterrâneas, atrasando seus trabalhos. O porta-voz do Exército israelense disse que Israel causou danos significativos a Natanz, sua maior instalação de enriquecimento, mas não está claro o que aconteceu com Fordo, outra instalação semelhante.
Se Israel conseguiu danificar o projeto nuclear iraniano o suficiente para forçar ao menos uma paralisação temporária nas operações de enriquecimento, isso já representaria um ganho militar importante, justificando a operação.
3) O que me interessa tanto quanto isso é o impacto que esse conflito pode ter na região —particularmente sobre a longa e maligna influência do Irã sobre o Iraque, o Líbano, a Síria e o Iêmen, onde Teerã nutriu e armou milícias locais para controlar indiretamente esses países e impedir que se aproximassem de governos consensuais e pró-Ocidente.
Remover essa mão morta do Irã de cima desses regimes —um processo que começou com a decisão do premiê Binyamin Netanyahu de decapitar e incapacitar a milícia Hezbollah— já gerou dividendos no Líbano e na Síria, onde novas lideranças pluralistas assumiram o poder. Ainda são frágeis, mas têm uma esperança —inclusive no Iraque— que não existia antes. E a saída da esfera de influência iraniana tem sido amplamente popular entre seus povos.
4) Uma coisa que sempre me impressionou em Netanyahu é sua habilidade estratégica como jogador no teatro regional, e sua incompetência estratégica como jogador local frente aos palestinos. No campo regional, sua mente está em geral livre de amarras ideológicas e políticas. Mas, como jogador local, especialmente na Faixa de Gaza, suas decisões são dominadas por sua necessidade de sobrevivência política pessoal, seu compromisso ideológico em impedir um Estado palestino sob qualquer condição e sua dependência da extrema direita para se manter no poder. Por isso, atolou o Exército israelense no pântano de Gaza —um desastre moral, econômico e estratégico— sem nenhum plano para sair de lá.
5) Se você está se perguntando como esse conflito pode afetar seus investimentos para a aposentadoria, o ponto principal a observar é se o Irã tentará desestabilizar o governo Trump ao tomar ações que façam o preço do petróleo disparar —e provoquem inflação no Ocidente. Por exemplo, o Irã pode afundar petroleiros no Estreito de Hormuz ou enchê-lo de minas marítimas, efetivamente bloqueando as exportações de petróleo e gás. Só essa possibilidade já está pressionando os preços para cima.
6) Como a inteligência israelense sobre o Irã é tão boa a ponto de localizar e matar seus dois principais líderes militares, além de outros oficiais seniores? Claro, o Mossad e a unidade de cibercomando da NSA israelense, a Unidade 8200, são excelentes no que fazem. Mas, se você quiser saber o verdadeiro segredo, assista à série Teerã da Apple TV+. Ela ficcionaliza o trabalho de uma agente do Mossad em Teerã. O que você aprende com a série — e que é verdade na vida real — é que muitos agentes iranianos estão dispostos a trabalhar para Israel por odiarem seu próprio governo. Isso facilita muito o recrutamento dentro do alto escalão do governo e das forças armadas iranianas.
Essa realidade não só oferece vantagens diretas, como os alvos precisos do ataque de sexta-feira, como também gera uma vantagem indireta para Israel: toda vez que líderes militares e políticos do Irã se reúnem para planejar algo contra Israel, cada um precisa se perguntar se a pessoa ao lado não é um agente israelense. Isso desacelera bastante o planejamento e a inovação.
Somado a isso, o líder supremo do Irã acabou de ver seus dois principais generais serem assassinados —o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e o comandante da Guarda Revolucionária. Ele certamente sabe que Israel pode eliminá-lo também. Portanto, deve estar escondido em algum bunker profundo, o que também atrasa as decisões.
7) Se Israel fracassar nessa empreitada —e fracasso aqui significa o regime iraniano conseguir se recompor e continuar tentando construir uma arma nuclear e controlar capitais árabes—, isso pode levar a uma guerra de atrito entre os dois Exércitos mais poderosos da região. Isso tornaria o Oriente Médio ainda mais instável, gerando crises no fornecimento de petróleo e possivelmente levando o Irã a atacar regimes árabes pró-EUA e tropas americanas na região. Isso deixaria o governo Trump sem escolha a não ser intervir, provavelmente com o objetivo não apenas de encerrar a guerra, mas de derrubar o regime iraniano. E aí, quem sabe o que pode acontecer?
Por fim, ao contrário do que faz em Gaza, Israel fez questão de evitar matar muitos civis iranianos, porque quer que a população direcione sua raiva contra o regime por desperdiçar tantos recursos com armas nucleares —e não contra Israel.
Falando em inglês num vídeo logo após o ataque, Netanyahu se dirigiu diretamente ao povo iraniano: "Não odiamos vocês. Vocês não são nossos inimigos. Temos um inimigo em comum: um regime tirânico que os oprime. Há quase 50 anos, esse regime os roubou da chance de uma vida melhor."
Os iranianos não vão se inspirar em Netanyahu, mas não há dúvida de que esse já era um regime impopular — e ninguém pode prever o que acontecerá agora que foi humilhado militarmente por Israel. Há apenas três anos, o regime clerical do Irã prendeu mais de 20 mil pessoas e matou mais de 500 — algumas executadas— para reprimir um levante popular que explodiu após a "polícia da moralidade" deter a jovem Mahsa Amini, 22, por não cobrir totalmente os cabelos com o véu obrigatório. Ela morreu sob custódia.
Olhando para frente, duas lições da história são importantes: regimes como o do Irã parecem fortes —até que deixam de ser— e podem cair rapidamente. E, no Oriente Médio, o oposto da autocracia nem sempre é a democracia. Pode ser o caos prolongado. Então, por mais que eu queira ver esse regime cair, é preciso cuidado com os pilares que desabam.
É cedo demais, e as possibilidades são tão variadas, para dizer como o jogo de nações do Oriente Médio será alterado pelo conflito Israel-Irã de 2025. Tudo o que posso dizer agora é que tanto a possibilidade extremamente positiva —de que isso inicie uma reação em cadeia que acabe derrubando o regime iraniano e o substituindo por um governo mais decente, secular e consensual— quanto a possibilidade extremamente negativa —de que isso incendeie toda a região e envolva os Estados Unidos— estão na mesa.
Entre esses extremos ainda existe uma possibilidade intermediária — uma solução negociada —, mas talvez não por muito tempo. O presidente Donald Trump tem usado o ataque israelense de forma astuta para, na prática, dizer aos iranianos: "Ainda estou disposto a negociar um fim pacífico para seu programa nuclear, e vocês podem querer fazer isso rápido —porque meu amigo Bibi (como também é conhecido Netanyahu) é L-O-U-C-O. Estou esperando seu telefonema."
Diante desse leque de possibilidades, o melhor que posso oferecer a quem acompanha de casa são as variáveis principais que acompanharei para determinar qual dessas —ou alguma outra que eu não consiga prever— será o desfecho mais provável.
1) O que torna esse conflito entre Irã e Israel tão profundo é a promessa de Israel de continuar a luta até eliminar a capacidade do Irã de fabricar armas nucleares — de uma forma ou de outra.
O Irã provocou isso, acelerando fortemente seu enriquecimento de urânio para níveis próximos aos de armamento. Começou a disfarçar esses esforços com tanta agressividade que até a Agência Internacional de Energia Atômica declarou na quinta-feira que o Irã não está cumprindo suas obrigações de não proliferação —a primeira vez em 20 anos que a agência faz tal declaração. Israel já apontou sua arma para o programa nuclear iraniano várias vezes nos últimos 15 anos, mas em todas recuou no último momento, seja por pressão dos EUA, seja por dúvidas internas —o que torna impossível exagerar o que está acontecendo agora.
2) A grande dúvida técnica que tenho é se os bombardeios israelenses às instalações nucleares iranianas, como Natanz —que está enterrada profundamente no subsolo— causaram impacto suficiente para danificar as centrífugas usadas no enriquecimento de urânio, superando seus amortecedores, e tornando-as inoperantes, ao menos por um tempo. No mínimo, é provável que o ataque israelense tenha bombardeado as entradas das instalações subterrâneas, atrasando seus trabalhos. O porta-voz do Exército israelense disse que Israel causou danos significativos a Natanz, sua maior instalação de enriquecimento, mas não está claro o que aconteceu com Fordo, outra instalação semelhante.
Se Israel conseguiu danificar o projeto nuclear iraniano o suficiente para forçar ao menos uma paralisação temporária nas operações de enriquecimento, isso já representaria um ganho militar importante, justificando a operação.
3) O que me interessa tanto quanto isso é o impacto que esse conflito pode ter na região —particularmente sobre a longa e maligna influência do Irã sobre o Iraque, o Líbano, a Síria e o Iêmen, onde Teerã nutriu e armou milícias locais para controlar indiretamente esses países e impedir que se aproximassem de governos consensuais e pró-Ocidente.
Remover essa mão morta do Irã de cima desses regimes —um processo que começou com a decisão do premiê Binyamin Netanyahu de decapitar e incapacitar a milícia Hezbollah— já gerou dividendos no Líbano e na Síria, onde novas lideranças pluralistas assumiram o poder. Ainda são frágeis, mas têm uma esperança —inclusive no Iraque— que não existia antes. E a saída da esfera de influência iraniana tem sido amplamente popular entre seus povos.
4) Uma coisa que sempre me impressionou em Netanyahu é sua habilidade estratégica como jogador no teatro regional, e sua incompetência estratégica como jogador local frente aos palestinos. No campo regional, sua mente está em geral livre de amarras ideológicas e políticas. Mas, como jogador local, especialmente na Faixa de Gaza, suas decisões são dominadas por sua necessidade de sobrevivência política pessoal, seu compromisso ideológico em impedir um Estado palestino sob qualquer condição e sua dependência da extrema direita para se manter no poder. Por isso, atolou o Exército israelense no pântano de Gaza —um desastre moral, econômico e estratégico— sem nenhum plano para sair de lá.
5) Se você está se perguntando como esse conflito pode afetar seus investimentos para a aposentadoria, o ponto principal a observar é se o Irã tentará desestabilizar o governo Trump ao tomar ações que façam o preço do petróleo disparar —e provoquem inflação no Ocidente. Por exemplo, o Irã pode afundar petroleiros no Estreito de Hormuz ou enchê-lo de minas marítimas, efetivamente bloqueando as exportações de petróleo e gás. Só essa possibilidade já está pressionando os preços para cima.
6) Como a inteligência israelense sobre o Irã é tão boa a ponto de localizar e matar seus dois principais líderes militares, além de outros oficiais seniores? Claro, o Mossad e a unidade de cibercomando da NSA israelense, a Unidade 8200, são excelentes no que fazem. Mas, se você quiser saber o verdadeiro segredo, assista à série Teerã da Apple TV+. Ela ficcionaliza o trabalho de uma agente do Mossad em Teerã. O que você aprende com a série — e que é verdade na vida real — é que muitos agentes iranianos estão dispostos a trabalhar para Israel por odiarem seu próprio governo. Isso facilita muito o recrutamento dentro do alto escalão do governo e das forças armadas iranianas.
Essa realidade não só oferece vantagens diretas, como os alvos precisos do ataque de sexta-feira, como também gera uma vantagem indireta para Israel: toda vez que líderes militares e políticos do Irã se reúnem para planejar algo contra Israel, cada um precisa se perguntar se a pessoa ao lado não é um agente israelense. Isso desacelera bastante o planejamento e a inovação.
Somado a isso, o líder supremo do Irã acabou de ver seus dois principais generais serem assassinados —o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e o comandante da Guarda Revolucionária. Ele certamente sabe que Israel pode eliminá-lo também. Portanto, deve estar escondido em algum bunker profundo, o que também atrasa as decisões.
7) Se Israel fracassar nessa empreitada —e fracasso aqui significa o regime iraniano conseguir se recompor e continuar tentando construir uma arma nuclear e controlar capitais árabes—, isso pode levar a uma guerra de atrito entre os dois Exércitos mais poderosos da região. Isso tornaria o Oriente Médio ainda mais instável, gerando crises no fornecimento de petróleo e possivelmente levando o Irã a atacar regimes árabes pró-EUA e tropas americanas na região. Isso deixaria o governo Trump sem escolha a não ser intervir, provavelmente com o objetivo não apenas de encerrar a guerra, mas de derrubar o regime iraniano. E aí, quem sabe o que pode acontecer?
Por fim, ao contrário do que faz em Gaza, Israel fez questão de evitar matar muitos civis iranianos, porque quer que a população direcione sua raiva contra o regime por desperdiçar tantos recursos com armas nucleares —e não contra Israel.
Falando em inglês num vídeo logo após o ataque, Netanyahu se dirigiu diretamente ao povo iraniano: "Não odiamos vocês. Vocês não são nossos inimigos. Temos um inimigo em comum: um regime tirânico que os oprime. Há quase 50 anos, esse regime os roubou da chance de uma vida melhor."
Os iranianos não vão se inspirar em Netanyahu, mas não há dúvida de que esse já era um regime impopular — e ninguém pode prever o que acontecerá agora que foi humilhado militarmente por Israel. Há apenas três anos, o regime clerical do Irã prendeu mais de 20 mil pessoas e matou mais de 500 — algumas executadas— para reprimir um levante popular que explodiu após a "polícia da moralidade" deter a jovem Mahsa Amini, 22, por não cobrir totalmente os cabelos com o véu obrigatório. Ela morreu sob custódia.
Olhando para frente, duas lições da história são importantes: regimes como o do Irã parecem fortes —até que deixam de ser— e podem cair rapidamente. E, no Oriente Médio, o oposto da autocracia nem sempre é a democracia. Pode ser o caos prolongado. Então, por mais que eu queira ver esse regime cair, é preciso cuidado com os pilares que desabam.
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