sábado, 17 de setembro de 2016

Charge (Foto: Moisés)

Calamidade histórica

Inundações, terremotos, deslizamentos, filas de desempregados são calamidades visíveis que assustam; mas, felizmente, duram pouco tempo. Mas há calamidades invisíveis cujos efeitos só são percebidos quando já não há mais tempo para corrigi-las: são calamidades históricas. Nesta semana foi divulgado o estado de nossa educação de base no ano de 2015, conforme avaliada pelo Índice de Desenvolvimento da Educação de Base (Ideb).

A catástrofe não é visível de imediato, mas indica uma tragédia anunciada e duradoura por décadas. A falência do sistema educacional impede preparar nossas crianças para que elas enfrentem o próprio futuro e para que participem da construção do futuro do país. Há décadas pode-se perceber as consequências deste descaso. Mas, ao não ser visível, não tem sensibilizado o Brasil a dar o necessário cuidado à educação de base.

Os resultados do Ideb mostram estagnação do ensino fundamental em baixíssimas notas — 5,5 e 4,5 — nos seus dois níveis e mostram o retrocesso do ensino médio, em pleno século XXI, com a vergonhosa nota 3,7. Por estas notas, o Brasil foi reprovado em 2015. Esta média é ainda mais assustadora se levarmos em conta que metade das crianças brasileiras ficou fora da avaliação por ter abandonado a escola antes do ensino médio — com a nota desse grupo, o Ideb seria muito menor.

Resultado de imagem para escola no brasilcharge

O Ideb também não reflete plenamente a gravidade do nosso problema educacional, se lembramos também que ele não indica a brutal desigualdade na educação de nossas crianças conforme a renda da família; nem mostra que os outros países estão ultrapassando o Brasil, oferecendo melhor a educação a suas crianças. Esta calamidade deveria ser tão visível quanto a seca no Nordeste, a avalanche em Mariana, as filas de desempregados e a falência financeira do Estado brasileiro.

Mas nossos governos têm sido cegos para percebê-la. Por isso, nossos presidentes não manifestaram até hoje horror diante desta tragédia, não declararam calamidade histórica, não indicaram o que deve ser feito para o Brasil enfrentar a maior e mais duradoura de nossas crises. Bastaria uma política decidida, para, ao longo de alguns anos, substituirmos as deficientes escolas estaduais e municipais por escolas federais, cujos Idebs estão se aproximando da nota 7,0.

Este enfrentamento permitiria superar a crise social e econômica que assola o país. O abandono da educação, que o Ideb-2015 indica, é uma das causas da crise econômica que vem, sobretudo, da baixa produtividade e da irrisória capacidade de inovação; a violência, a corrupção, o populismo, a irresponsabilidade fiscal têm como uma das causas a deseducação geral.

Talvez esta seja a maior de nossas calamidades, que o Ideb tem mostrado ao longo dos últimos anos: os governos descomprometidos com a educação e, por omissão, condenando o futuro do nosso país. Pior é que, no lugar de despertarmos usando o Ideb para corrigir a calamidade histórica, algum governo possa tomar a iniciativa de parar de estimar o Ideb, como um médico curando a febre ao quebrar o termômetro.

O festim da República

Na política brasileira, os fatos chocam menos que sua enunciação. Quem acompanha de perto os desdobramentos da Lava Jato, em curso há dois anos, já conhecia cada um dos fatos narrados pelos procuradores na quarta-feira passada, em Curitiba.

Não houve, pois, espanto quanto ao conteúdo. A surpresa foi a ousadia, rara, de dar nome (e patente) ao boi, Lula, brindando-o com os títulos de “chefe”, “maestro” e “general”, que, se não eram inéditos (e não eram), ganharam agora o selo institucional.

O próprio procurador-geral Rodrigo Janot, em junho, já o havia denunciado ao STF, ao lado de Dilma, Aloizio Mercadante e José Eduardo Cardoso, por tentativa de obstrução da Justiça, em decorrência da delação do ex-senador Delcídio do Amaral.

Ora, inocentes não obstruem a Justiça; anseiam por ela. Há dias, o ministro Teori Zavaski, incumbido da Lava Jato no âmbito do STF, rejeitou recurso da defesa de Lula, que queria evitar Sérgio Moro. Não apenas rejeitou, como a acusou de estar querendo embaraçar as investigações. A diferença é que o fez sem estardalhaço. Mas fez.

Desde o Mensalão, a responsabilidade central de Lula nos acontecimentos criminosos da República era óbvia - e até mesmo a blindagem política que recebia (e ainda recebe) o evidenciava.


O temor de afrontar a popularidade que então tinha fez com que mesmo o denunciante-mor, o então deputado Roberto Jefferson, o poupasse. Somente quando o processo já estava em curso, e era tarde para incluí-lo, acusou-o. Na ocasião, chegou a ser publicado um livro sobre o Mensalão, com densa documentação, tendo Lula na capa e o título: “O Chefe”, de autoria do jornalista Ivo Patarra.

Como Lula não estava nos autos – já que o então procurador geral Antonio Fernando de Souza não ousou acusá-lo -, sentiu-se à vontade até para afirmar que o Mensalão não existira.

O que excita e surpreende na entrevista desta semana dos procuradores não é o que revelaram, mas o que ainda ocultam. Pela ousadia e segurança de suas afirmações, ficou claro que dispõem de lastro para sustentá-las. O que a defesa de Lula considerou “verborragia”, é apenas manifestação de pânico, algo assim como “o que mais eles já têm?” Santo André, talvez.

Os advogados sabem que a entrevista não se confunde com a denúncia e suas 149 páginas, de que constam provas as mais variadas: testemunhal, documental, pericial, indiciária.

É o relatório, não a sequência de slides, exibida aos jornalistas, que irá fundamentar a decisão de Sérgio Moro. A entrevista apenas resume a peça acusatória, que irá se somar às delações de empresários – as já feitas e as por fazer.

E há gente graúda por depor - Emílio Odebrecht, por exemplo, e outros, do mesmo naipe, que já o fizeram. E Lula está em todas essas confissões, em que o enredo é um só. Lula sabe que há muito mais por vir. O que o aflige é não saber ainda o que dele já se sabe.

O tríplex e o sítio, por exemplo, são café pequeno, mas mesmo assim evidências concretas de um vasto esquema de pagamento de propinas com dinheiro roubado da Petrobras.

Leo Pinheiro, da OAS – de todos os empreiteiros, o mais intimamente ligado a Lula -, já confessou que sítio, tríplex, reformas em ambos e mobiliário eram doações a Lula, a serem “descontadas” do montante de propinas que a empreiteira devia ao PT do botim da Petrobras. O que foi revelado, pois, é apenas o que se chama de fio da meada de um imenso novelo, que abarca todos os segmentos da administração pública, ao longo de quatro governos petistas.

E é esse vasto esquema que já está mapeado, tendo no comando e como beneficiário principal o ex-presidente Lula.

Lula e seus advogados sabem disso. O PT sabe disso. Daí o empenho, já demonstrado na fala inicial de Lula, de transformar denúncia de caráter penal em perseguição política.

Os desdobramentos desse entrechoque entre acusação e defesa, que em circunstâncias normais se daria nas barras do tribunal, preocupam. O ambiente está radicalizado. O PT irá às últimas consequências para se firmar no papel de vítima. Resta saber se haverá povo para segui-lo. Até aqui, os sinais são escassos.

O que está em pauta é apenas a primeira parte do processo, que é saber quem fez o quê. A seguinte é saber para onde foi tanto dinheiro – os bilhões da Petrobras não esgotam a rapina.

Há ainda os cofres da Caixa Econômica, do BNDES, do Dnit, dos fundos de pensão. Tanto dinheiro – até aqui, mais de R$ 100 bilhões – não cabe no bolso de ninguém. Parte dele foi para governos bolivarianos e ditaduras africanas. Com que propósito? Esse é o capítulo seguinte, que se inicia na sequência.

Brasil, um país em dois tempos

Às vezes me dá a nítida impressão de que o Brasil vive simultaneamente em dois tempos históricos: o passado, que resiste em ser enterrado, e o futuro, que promete, mas não acontece. Foi o caso desta semana entre o evento de posse da ministra Cármen Lúcia na presidência do Supremo Tribunal Federal e a sessão de cassação do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. Parecia que o túnel do tempo – apelido da passagem entre o plenário do Senado Federal e seu anexo, uma vez que guarda uma exposição fixa em painéis sobre a história da Casa desde o Império – tinha se deslocado para o edifício do outro lado da avenida, do Supremo. Não faz duas semanas que acabamos de assistir à narração do tempo passado no capítulo da cassação da presidenta da República e, desta vez, a narrativa prosseguia numa espécie de replay, com a cassação do ex-presidente da Câmara dos Deputados.

Um Poder Legislativo eleito pelo cidadão resistindo a lhe servir, centrado apenas em seus interesses corporativos, para falar o mínimo, pois, na verdade, grande parte de seus membros está lá para cuidar de seus próprios interesses, muitos deles inconfessáveis. Do outro lado, o Supremo, cúpula de um poder não eleito, onde magistrados entram na carreira por concurso e progridem por mérito, que tem tentado desempenhar adequadamente o poder moderador das tensões geradas pelos demais Poderes da República, aponta para um futuro onde “a cidadania deve ser o direito fundamental à justiça e não uma mera aspiração”, como afirmou a nova presidente do Supremo.

Resultado de imagem para ministra carmem lucia charge

Terão as palavras da ministra Cármen Lúcia influenciado a acachapante derrota de Cunha por seus pares na sessão do julgamento do ex-presidente da Câmara dos Deputados que aconteceu ainda naquele mesmo dia? Com quase três décadas, demorou, mas a Constituição Cidadã começa a ser levada a sério. Não apenas pela limpeza geral da vida pública dos políticos delinquentes reclamada nas ruas pelos cidadãos, mas pelos inúmeros compromissos de levar a cabo a força da lei por parte dos chefes das instituições jurídicas e por alguns das instituições políticas do Estado. O Judiciário saiu na frente convicto, a Câmara tende apenas a se curvar à vontade da cidadania, mas ainda temos de ver se o mesmo ocorrerá no Senado e no Palácio do Planalto. Estamos em meio a uma tormenta em que se provará essa mudança de mentalidade, de passagem de uma cultura de impunidade e jeitinho para uma cultura de soberania dos cidadãos, verdadeiros patrões dos servidores do Judiciário e dos mandatários políticos do Executivo e do Legislativo. A posse da ministra Cármen Lúcia na presidência do Supremo e a sessão de julgamento da cassação de Eduardo Cunha são dois eventos promissores num único dia. Como bem disse a advogada Janaína Paschoal: estamos num momento decisivo de nossa história em que devemos nos esforçar para fazer rodar o círculo vicioso de uma prática política imoral para um círculo virtuoso de uma cultura política fundada na moralidade pública.

Destaco no primeiro evento da posse da ministra Cármen Lúcia o discurso do decano do STF, Celso de Mello, que lembrou e repisou com veemência: “Nenhum, nenhum”, repetiu, “dos Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios ou a manipulações hermenêuticas”. E afirmou isto diante dos cúmplices Renan & Lewandowski, que fizeram cara de paisagem sem vestir a carapuça endereçada pelo episódio do fatiamento da sentença do impeachment. “O direito a um governo honesto é um direito insuprimível da cidadania”, continuou Celso de Mello em sua denúncia do “imoral sodalício entre setores do poder público, de um lado, e agentes empresariais, de outro”, finalizando com a citação de doutor Ulysses Guimarães: “A corrupção é o cupim da República!”. Já o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, aborda a Lava Jato e exige mudança do sistema político e jurídico-moral do país. Afirma que não erraremos como na Operação Mãos Limpas e repudia a tentativa de barrar as investigações da Lava Jato. Defende as “dez medidas contra a corrupção” como o início de uma transformação na cultura política nacional, contra as forças do atraso! Mas o auge da sessão é quando a ministra Cármen Lúcia avisa que vai quebrar o protocolo que lhe manda iniciar a solenidade cumprimentando a mais alta autoridade presente, o presidente da República. Em vez disso, cumprimenta a mais alta autoridade do cidadão brasileiro! E se referiu à Justiça, recorrendo a citações literárias de autores nacionais, como sentimento o mais fundamental entre os direitos fundamentais dos cidadãos, brandindo: “A lei não é aviso!”.

Mais tarde, no palco da sessão de julgamento da cassação de Eduardo Cunha, parecia que voltávamos à página virada do passado, quando um dos deputados de sua tropa de choque ainda teve o desplante de buscar o mau exemplo do inconstitucional fatiamento da condenação do impeachment, com a proposta de trocar a sentença capital por uma mais branda de suspenção temporária do mandato, com a clara tentativa de livrar Cunha da mão pesada do juiz Moro. Mas o próprio relator do processo de cassação, o deputado Marcos Rogério, foi taxativo: “Acabou a esperteza, pois Cunha não apenas mentiu, mas escondeu patrimônio, sonegou o Fisco e recebeu propina!”. Depois de mais um show de horror da série “Lava Jato” – que continuo a afirmar que não teve este nome apenas pela razão manifesta de ter se originado numa operação policial trivial contra um doleiro operando num posto de serviço de limpeza automotiva, mas por uma razão inconsciente do desejo coletivo de mudança nas práticas políticas nacionais –, temos a esperança de reafirmação do compromisso republicano do Judiciário brasileiro em prosseguir na limpeza da vida e dos costumes políticos nacionais. Já podemos vislumbrar o roteiro dos próximos e lancinantes capítulos: com as revelações das delações premiadas das empreiteiras, poderão responder por crimes os mais variados de 10% a 20% dos parlamentares da atual legislatura, o que, aqui entre nós, não justifica as tentativas de barrar a “Lava Jato” para “estancar a sangria da vida política”, como se referiu num áudio vazado um dos nossos “nobres” senadores implicados até o pescoço.

A esperança do compromisso do presidente Temer de “pôr o país nos trilhos” não pode depender das manobras de barrar o seriado “Lava Jato”. Muito ao contrário, os próximos capítulos no front da Justiça estão mais para um roteiro do tipo “a fila vai andar”. Pois é justo o inverso: para encarar reformas imprescindíveis do Estado, controlar o câncer da demagogia, da dívida pública impagável, retomar o fluxo de investimentos internacionais, privatizar, voltar a crescer a produção e o emprego é que se torna imprescindível deixar a sangria correr para desintoxicar do sangue contaminado o corpo político nacional. A banda podre dos políticos que deverá sair da vida pública, segundo o noticiário político e as delações que hão de vir, não chega a comprometer todo o corpo político. Segundo médicos que consultei, sendo atendidos no CTI bem equipado da Cidadania, Transparência e Integridade, podemos perder até 20% do sangue ruim que, aos poucos, o próprio corpo político se encarregará de se renovar com o sangue bom de novos atores da vida pública.

Jorge Maranhão

Imagem do Dia

Great Ocean Road,na Auastrália

O país se transforma depois de sentir na carne a desgraça do petismo

Descalça na deslumbrante Mesquita Azul, na Turquia, como cristã que sou, eu reconhecia que aquele santuário não pertence só aos muçulmanos; como realização humana, pertence à civilização. Além de mercados públicos ou feiras, quando viajo sempre visito lugares santos (de templos, sinagogas e mesquitas pela Ásia e África a lindas catedrais como a da Sé e igrejinhas de missionários evangélicos no interior do nordeste). Diante do sagrado, choro sempre. Silencioso, copioso e sereno, meu pranto é gratidão e alegria reverente por simplesmente estar viva; também comoção por aqueles cujo repertório pessoal (de valores, desesperança, experiências, etc.) os impede entender a vida, na insuficiência constitutiva dela, como a oportunidade fugaz de, veja só, viver. Agastada pelas dificuldades cotidianas, me esqueço às vezes de olhar a vida assim, um esquecimento que impossibilita tudo.


Dilma jamais supôs que seria cassada, Cunha nunca acreditou que seria cassado, Lula sequer cogitou que seria pego. Mas sua excelência, o povo, se meteu na história e o fato é que a mulherzinha foi cassada, Cunha foi cassado e Lula, que já não se sentia muito bem, piorou antes que a súcia terminasse de comemorar o fim de Cunha não porque o ex-deputado é um escroque, mas porque é um escroque dissidente. No duelo entre a mulherzinha e o ex-deputado, o Brasil ganhou porque os dois delinquentes romperam a parceria pela qual saquearam o país e voltaram-se um contra o outro. Aos que perderam para o país devastado se arejar, não tenho nada a agradecer; batem o portão fazendo alarde típico dos que se vão tarde sem saber ascender nem decair com dignidade, além dessa ladainha cínica de vítimas perseguidas que se defendem com alguns dos advogados mais caros do país alargando todas as brechas legais inacessíveis à maior parte da população.

Diante do sagrado, o que somos além de nada? Não sei, mas um autor que adoro, o historiador romeno das religiões Mircea Eliade, diz no livro “O sagrado e o profano” que só somos se sairmos do tempo, assim como o sagrado que existe além e aquém do tempo (e por isso é); no tempo – profano por definição –, vamos desaparecendo no terror de existir para desaparecer. Talvez seja na memória ecoando existências que consigamos escapar ao tempo alcançando, mesmo como poeira transitória, certo modo de permanecer. Me achando esvaziada desse nada, tirei da bolsa meu diário de viagem para os apontamentos dispersos neste texto. Queria falar da luz e da cor do dia, das linhas arquitetônicas da Mesquita, das pessoas ali, das feições delas, reações, roupas e idiomas. Na estupidez de eliminar minhas referências, já que me pretendia preenchida do Outro/do sagrado, como se fosse possível compreender isso sem que algo em mim o compreendesse… cara, que viagem!

Mas meta-se a escrever em primeira pessoa e você vai ver só aonde isso te leva: lá dentro da história, porque a sintaxe puxa você, ela se atraca aos teus silêncios, vai abrindo coisas dentro da tua alma e você só vai se tocar de que disse realidades adormecidas quando a paz de pequenas e cotidianas hecatombes adiadas ou consumadas atravessar a tua percepção como a luz num vitral. Anos depois, relendo os apontamentos inconscientemente feitos em primeira pessoa, vi como, achando estar conectada ao sagrado fora de mim, meus registros estavam contaminados das minhas verdades e ficções, estas dando consistência àquelas. Que porcaria: quanto mais você procura fora, mais o fora te devolve a você mesmo. Que maravilha: não vale a pena viajarmos se voltarmos os mesmos; é como se não tivéssemos saído do lugar porque, de fato, não teremos saído do lugar. “Lugar”, por favor, entendido não como ponto geográfico, mas como aquele que delimita um jeito de estar no mundo. “Sair do lugar” é sair de si, dar passagem ao outro, universalizar-se e, então, voltarmos com o que tocamos e nos tocou. Ou seja, transformados. Possibilidade também sem deslocamentos geográficos: sair pelo mundo, sair para dentro de nós mesmos – viagens e viagens – talvez seja esta transformação o que combate o não sentido da vida.

O país se transforma depois de sentir na carne a desgraça do petismo fundado por um metalúrgico que há mais de 30 anos vi subir na carroceria de um caminhão para discursar em favor do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas, erigindo a nefasta figura soteriológica. Dispensável e indesejável ser um salvador, bastaria não ter sido um farsante que, tendo todas as condições como ele teve, modernizasse a nação. Enquanto à acelerada decrepitude física de Lula parece corresponder o acirramento da alma ególatra cujo dono continua se vendo acima da lei, Marcos Valério se transformou: é visível o quebrantamento na viagem interior imposta pela cadeia, o homem apresentou até certa disfunção na fala num depoimento, nesta semana. Isso conquista meu respeito pela dignidade que há na submissão ao que é superior a nós, atitude que sempre nos eleva. Claro que coletivamente o país vive um drama resultante das delinquências de um bando, mas sempre há o indivíduo e a circunstância dele, o olhar dele, a tragédia e a comédia dele – e isso me atrai de forma especial.

Transformação não alcançada pelo ex-deputado cujos planos de chegar à presidência da República se reduziram à expectativa da prisão; ausente na mulherzinha cujas gestão e cassação demoliram os sonhos de hegemonia do PT; inexistente no jeca que substituirá o trono de imperador perpétuo do Brasil pela eventual cadeia por tudo o que fez. Na resposta à coletiva do Ministério Público, cedendo às deformidades da alminha ególatra, Lula atacou FHC só para lembrar que o amor está sujeito a momentos de descuido que lhe podem ser fatais, mas o ódio é incansavelmente zeloso; é fiel na alegria, na tristeza e na proximidade do camburão. A denúncia desta quarta-feira pelo MP Federal e a aclamação do jeca como o chefe da propinocracia o encontram na sepultura política da qual não se erguerá. É nela, mais do que na cadeia, que Lula, transformado no miserável que sempre foi, pagará por seu crime mais grave: tudo o que deixou de fazer pelo país.

O sacrifício de ir à escola

Todos os dias as crianças da aldeia Atuleir, na China, fazem da ida à escola um risco de morte. Nas aldeias isoladas das montanhas, os alunos correm perigo para estudar, e estudam.Não faltam à escola, como também não há falta de professor, nem de apoio aos estudos.





Não a mais sofrimento

Quando nas sociedades as coisas funcionam bem, você pode se comprometer, pode ter diferenças, mas não divisões enormes.

Zdzisław Beksiński

Se você tem pessoas que sofreram muito, elas não vão querer se comprometer a sofrer mais
Joseph Stiglitz, professor de Columbia e assessor do ex-presidente Bill Clinton

Desemprego liga a política à ideia de inutilidade

Passado o impeachment de Dilma Rousseff e a cassação de Eduardo Cunha, há um vazio em Brasília. Sem mais espantalhos para chutar, as tribos políticas voltaram seus olhares quase que integralmente para as eleições municipais. E não restou aos desempregados senão rezar para que Deus dê uma prova de sua existência aparecendo na forma de um contracheque.

Trabajo, paro - Work, Unemployed:
Nesta sexta-feira, o Ministério do Trabalho informou que o Brasil perdeu 1,51 milhão de empregos com carteira assinada em 2015. É o pior resultado em 31 anos. Num instante em que o total de desempregados roça a casa dos 12 milhões, notícias como essa potencializam o paradoxo que embaça a atividade política. Hoje, os brasileiros são incapazes de reconhecer a utilidade da política. E os políticos são incapazes de demonstrá-la.

O desemprego herdado da gestão Dilma dá a Michel Temer a ilusão de que sua preocupação é útil. O desemprego dá aos ministros a oportunidade de fazer rostos graves, frontes crispadas. O desemprego dá ao pedaço da plateia que ainda dispõe de salário para encher a geladeira a impressão de que o novo governo está se movendo. Mas nada se move de verdade aos olhos dos desempregados, a não ser os índices de desemprego, que sobem.

Diante do desemprego crescente a eterna rinha política, o ' nós contra eles', o 'deixa que eu chuto'… Tudo isso ganha ares de insensatez. Imagine a cena: quatro amigos numa mesa de bar, na calçada. Travam uma dessas conversas engajadas. Esbarram em indagações transcendentais. O PT é melhor que o PSDB? O PMDB é a favor de tudo ou é contra qualquer outra coisa? O populismo estragou o Brasil? O liberalismo vai salvar o país? Súbito, um sujeito cabisbaixo aborda o grupo: “Podem me pagar um almoço, tô desempregado?”

Ou os políticos começam a cuidar do que é essencial ou logo, logo haverá brasileiro se perguntando: E se a democracia for isso mesmo?

A busca de Marinete

Dia desses li um interessante texto sobre o nióbio. Trata-se de um metal utilizado principalmente na produção de ligas de aço de alta resistência, com aplicações na construção civil, na indústria mecânica, aeroespacial, naval, automobilística e nuclear, dentre outras.

O grande diferencial deste metal, pelo que compreendi, é sua incrível resistência à corrosão e às temperaturas extremas. Assim, quando adicionado na proporção de gramas por tonelada de aço, confere a este propriedades sem as quais o mundo como o conhecemos seria impossível.

Segundo entendi, o Brasil detém as maiores reservas conhecidas de nióbio (98,43%), seguido pelo Canadá (1,11%) e Austrália (0,46%). No país, as jazidas conhecidas estão em Minas Gerais (75,08%), Amazonas (21,34%) e em Goiás (3,58%).
Resultado de imagem para a pequena catadora de lixo ilustração

Parei para meditar um pouco: torna-se evidente que o Brasil tem praticamente o monopólio deste metal raríssimo, sem o qual muitas das facilidades tecnológicas às quais a humanidade se acostumou - de computadores a aviões a jato, de tomógrafos a reatores - escasseariam. Eis aí, sem qualquer sombra de dúvida, um patrimônio irrenunciável do povo brasileiro.

Tive a ideia, então, de procurar saber qual o preço de venda de tão distinta riqueza. Que arrependimento! Afinal, como exclamava Lichtenberg, “nada induz a uma maior paz de espírito do que não ter opinião sobre nada”. Sim, seria melhor ter continuado a viver na ignorância - doeria menos.

Constatei, absolutamente consternado, que o preço médio de exportação do ferro-nióbio subiu de US$ 13 o quilo em 2001 para US$ 32 em 2008. Em 2012, a média ficou em US$ 26,50 o quilo.

Decidi, para fins de comparação, apurar o preço de um quilo de chocolate importado da Suíça, país no qual até onde sei não existe um único pé de cacau. Fui a um supermercado e verifiquei que quatro latinhas de 250 gramas cada totalizariam US$ 85,08 - umas três vezes mais!

Me perdoem por ser repetitivo, mas há que se acentuar esta realidade: exportamos um dos mais raros e essenciais minérios do planeta a US$ 26,50 o quilo e importamos por US$ 85,08 um quilo de chocolate feito em um país que não dispõe de sequer um pé de cacau!

Decidi fazer uma outra comparação, desta feita com um litro de uísque envelhecido 12 anos - desses que encontramos em supermercados. Uma garrafa custa em média US$ 68 - umas duas vezes e meia mais. Baixei a “idade” para 8 anos, e só assim consegui igualar os preços do raro minério e da bebida importada.

Fiz, então, uma última comparação: coloquei lado a lado um quilo de nióbio e uma máscara de palhaço com touca colorida e nariz vermelho, dessas usadas em festas infantis. O nióbio ficou nos US$ 26,50 conhecidos, e a máscara de palhaço em US$ 33,61 - e isto não é palhaçada alguma, claro!

Meu susto foi ainda maior ao ler sobre a existência de um documento do Departamento de Estados dos EUA, vazado pelo famoso Wikileaks em 2010, que incluía as minas brasileiras de nióbio em uma lista de locais considerados estratégicos - por aquele país, claro!

Porém, mais há: em 2011, segundo estudei, um grupo de empresas estrangeiras - da China, Japão e Coreia do Sul - adquiriu robustos direitos de exploração deste nosso minério.

Enquanto isso, alheia a estes graves problemas nacionais, lá vai Marinete, 6 anos de idade, rumo ao seu trabalho como catadora de lixo, na companhia de milhares de outras crianças brasileiras. Boa sorte, Marinete! Espero que você encontre algum nióbio lá no lixão!

Crise política e perenização do subdesenvolvimento

O Brasil é o quinto país em população e em extensão territorial. Mesmo assim, continua subdesenvolvido, porque crises políticas afetam a economia, desde 1822, gerando insegurança em investidores, inviabilizando a modernização tecnológica e condicionando projetos públicos aos humores de chefes paroquiais, que sempre quiseram manter seu eleitorado submisso. Chegamos, então, ao século XXI com índices socioeconômicos à beira da iniquidade, distanciando-nos cada vez mais de países que vêm propiciando boas condições de vida a seus habitantes.

Resultado de imagem para subdesenvolvimento

Os desarranjos políticos são tantos que vivemos sob a égide da sétima Constituição, promulgada em 1988. Isso escancara a instabilidade institucional, que permite acomodação de lideranças nocivas a novos arranjos na administração pública, assegura privilégios a muitas autoridades, viabiliza imperativos do Poder Executivo e afasta adversários com prestígio popular. Assim, o país não conheceu duas décadas seguidas de prosperidade. Houve sempre grupos antagônicos buscando o controle do Estado, sem apresentar um projeto integrado para a nação e sem compromisso com a governabilidade. Pelo contrário, é possível identificar sabotagens a propostas que contrariavam interesses de alguns ou iriam conferir visibilidade a concorrentes indesejáveis.

Continuamos, então, com alto índice de analfabetismo, relações arcaicas de trabalho, mão de obra desqualificada, dependência tecnológica, péssimas condições sanitárias, insuportável desequilíbrio regional e vergonhosa desigualdade social. Os desacertos entre liberais e conservadores do Império estão reproduzidos hoje em “golpistas” e remanescentes do petismo, em meio a acusações de corrupção em todas as facções e desconfiança generalizada de cidadãos exauridos pelos tributos para financiar a vida nababesca de políticos e empresários aliados nos negócios com o Estado.

Se, em passado recente, sofremos os solavancos da ditadura militar e da hiperinflação, fomos premiados com a conquista do Centro-Oeste, o Plano Real e a modernização das telecomunicações. Houve momentos de otimismo, porque percorreríamos logo o caminho para a prosperidade. Os inimigos estavam, entretanto, prontos para sabotar o governo do momento, como a campanha petista contra o plano de estabilização econômica e o esforço da mídia para pespegar no presidente Itamar Franco rótulos depreciativos que minassem sua autoridade e seu prestígio ascendente junto à população.

Vivemos agora a pior crise econômica, e, mesmo assim, muitos grupos contestam a posse de Michel Temer e querem eleição direta, demonstrando que não respeitam a Constituição vigente. Preferem o casuísmo que não existe em Estado democrático de direito, porque a legislação deve primar pela objetividade que está acima de problemas ocasionais. Ou seja, esses segmentos apostam em soluções improvisadas, indicando que continuamos agindo como no século XIX e pouco interessados no futuro do país.