sexta-feira, 10 de maio de 2024

Capítulo do Gênesis

1. E o Senhor, vendo que os homens não melhoravam, antes se tornavam piores, decidiu mandar-lhes uma chuva de advertência; e com isso lhes manifestava seu enfado, e que outro dilúvio não estaria fora de suas cogitações.

2. E a chuva começou a cair, a princípio alegre com seu destino de chuva; insistente, depois, e zangada, fazendo aluir a morada dos homens.

3. E os caminhos se encheram de lama, e na lama passavam cadáveres de criancinhas com suas bonecas; e também boiavam corpos de velhos e de moços na fluorescência do amor.

4. E as águas cumpriram seu serviço e se retiraram ao cabo de um dia; e quedou sobre a terra uma dor feita de mil dores.

5. Nisso vieram os sábios da cidade e puseram-se a fazer a exegese da catástrofe; e concluíram que todo mal provinha de certas povoações altaneiras, desligadas do corpo social, a que se dava o nome de favelas.

6. As quais dependuradas na crista e no declive dos morros, vertiam sobre a cidade, com algumas notas de música, seus detritos e sua miséria, travando o escoamento das águas.

7. E individualmente se chamavam Querosene, Escondidinho, Pasmado, Pretos Forros, Cabrito, Vintém, Cantagalo, Curral das Éguas, Nheco, Borel, Esqueleto, Catacumba e apelativos que tais.


8. E mereciam ser destruídas pelo que se escolheu a Favela da Catacumba, de nome exemplar, para ser arrasada primeiro que as outras, e das outras a hora soaria a seu tempo.

9. E milicianos, na calada da noite, subiram até lá e arrasaram-na, ateando fogo aos escombros e os sábios se persuadiram de que haviam acabado com a causa primeira da enchente.

10. Embora não houvessem acabado com a causa maior das favelas; e os favelados foram recolhidos a uma casa de boa vontade, enquanto seus pertences tomavam rumo de uma praça de jogos, Maracaná chamada.

11. E havendo entre esses alguns tamboretes e cadeiras, bem podiam ser aproveitados para assento de amadores das grandes justas e atletas, que eram a glória da cidade.

12. E reinou sobre o morro um silêncio catacumbal, que nem a voz de um papagaio bicava.

13. E seus amigos moradores, depois de alguns dias na casa de asilo, subiram a outro morro ainda virgem e lá plantaram seus fogos e entoam sua música.

14. E outra vez choverá o aborrecimento de Deus, e eles serão responsabilizados, expulsos, apartados de seus bens, e descobrirão novos terrenos de cume, de onde voltarão a ser tangidos.

15. E milicianos em número crescente desalojarão ainda mais numerosos catacumbeiros.

16. A menos que o Senhor, em sua ira, se lembre de consumar a ameaça e promova a magna chuva final.

17. Da qual ninguém escapará; e depois dessa ninguém será acusado e molestado por ninguém.

18. A menos ainda que, a poder de palavras e subtis manobras, os sábios consigam desviar a atenção do Senhor para outros mundos ainda mais errados que este.
Carlos Drummond de Andrade

Estupidez mata


Estupidez é o mesmo que maldade, se você julgar pelos resultados

Margaret Atwood

A lição e a dor que vêm do Sul

Cada vez que enfrentamos eventos extremos como os que atingem o Rio Grande do Sul, sempre nos perguntamos se a mudança não virá agora, se não vamos aprender as lições que as mudanças climáticas nos oferecem ou se não vamos romper os diques do negacionismo que impedem a ação transformadora.

Ninguém pode ter a pretensão de saber todas as respostas para o novo tempo. Mas é preciso começar humildemente por reconhecer que é loucura continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes.

Passado o momento da emergência e de salvar vidas, proteger as pessoas atingidas e restabelecer serviços essenciais como água e luz, será preciso discutir a reconstrução e, simultaneamente, através dela, inspirar as medidas preventivas em outros pontos do País.

É senso comum afirmar que precisaremos de recursos. Mas antes de pensar nos recursos seria necessário refletir sobre a maneira como os distribuímos.


O Congresso detém grande parte do Orçamento e a distribui em emendas parlamentares. O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumenta que esse é o caminho correto pois só parlamentares em contato com suas bases conhecem as necessidades municipais.

Contesto essa tese porque pensar em termos exclusivamente municipais não dá conta da complexidade de muitos problemas, principalmente o de adaptação às mudanças climáticas.

O Lago Guaíba, por exemplo, é alimentado por quatro rios: Gravataí, Jacuí, Caí e Sinos, Não adianta pensar apenas em termos locais. Há alguns anos, criamos um instrumento de gestão para cuidar disso, o Comitê de Bacia. Ele é essencial não só para tratar do abastecimento da água e dirimir conflitos dele decorrentes, mas também para planejar uma defesa adequada às inundações.

Embora os Comitês de Bacia ainda estejam longe de cumprir seu potencial, em alguns lugares o planejamento esbarra sobretudo em planos de desenvolvimento municipal isolados da realidade da bacia hidrográfica.

De nada adianta construir um grande esquema de drenagem rio acima e despejar toda a água em vizinhos despreparados, para dar apenas um exemplo.

Sistemas de diques e drenagem não funcionaram bem em Porto Alegre. Algumas construções em outras cidades metropolitanas datam da década de 1960, quando ainda não se falava muito em aquecimento global.

Segundo o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), o índice de chuvas na Região Sul do Brasil cresce há 60 anos e está sendo impulsionado pelo aquecimento global. Mas isso é difícil de demonstrar, principalmente em áreas tão desconfiadas sobre mudanças climáticas, como alguns setores do agro.

De fato, não se demonstram com facilidade nem o aquecimento nem seus efeitos. Porto Alegre teve uma grande inundação há 83 anos, em 1941. Não seria apenas a repetição daquele desastre?

Acontece que o Rio Grande do Sul foi atingido por grandes chuvas na primeira semana de setembro do ano passado. Tudo indica que estamos diante de outra situação, que alguns chamam de novo normal.

Tudo isso acontece num ano de eleições. As cidades trocarão prefeitos e vereadores. Todos terão de pensar num novo planejamento urbano, todos terão de colocar as preocupações ambientais no topo da agenda, uma vez que tornaram-se uma questão de sobrevivência.

É preciso ressaltar a grande força da inércia, a forte tendência de tudo ficar como está, sobretudo quando passam os momentos mais graves.

Dessa vez, há algo que ficará no horizonte por algum tempo. O processo de reconstrução do Rio Grande do Sul não se fará da noite para o dia. Não são apenas algumas estruturas que precisam ser revistas. Parece que até a localização de algumas cidades, como Roca Sales e Muçum, devem ser reavaliadas.

Caiu muita água. Não é possível esquecer rápido nem pura e simplesmente destinar dinheiro para reconstrução sem refletir sobre o novo tempo, sem otimizar com uma análise detalhada o uso desse dinheiro.

Todo o País tem uma chance agora de se adaptar às mudanças climáticas, de trabalhar a resiliência de suas cidades e de considerar também que o perigo não vem apenas do céu e que grande parte de suas regiões litorâneas serão atingidas pelo aumento do nível do mar.

Trabalhei num pequeno documentário intitulado O Avanço do Mar, percorrendo praias já destruídas, como a de Atafona, no Estado do Rio, e outras ameaçadas em Pernambuco e Santa Catarina.

Concluí que o título era inadequado. Ainda não se tratava propriamente do avanço do mar. Passei a chamá-lo de A Resposta do Mar, cujo território foi invadido pela especulação imobiliária.

Mas foi possível imaginar o que nos espera quando o mar avançar de fato e nos colher em nossa indiferença ao derretimento das geleiras, que começou há muito tempo.

Talvez o mundo da política institucional não se dê conta da rapidez necessária de tantas mudanças. Mas a sociedade sim terá um papel essencial, cobrando dos seus governantes e tomando algumas iniciativas que não dependem deles. Meninos e meninas que ainda estão na escola já começam a saber do que se trata, e certamente serão decisivos.

Paradoxo climático: a causa global de prejuízos locais

A bomba climática que devastou o sul do Brasil revela a limitação das prefeituras, dos estados e do governo federal para lidarem com um problema que é planetário. Quanto custa reconstruir um estado? De quem é o dinheiro e a responsabilidade para pagar esse prejuízo?

Pra simplificar, basta comparar a situação com uma guerra mundial nuclear. O prefeito de Bento Gonçalves não conseguiria, com recursos do município, evitar os efeitos da radiação sobre sua população, nem reconstruir a economia e a infraestrutura de sua cidade devastada por bombas atômicas lançadas do outro lado do mundo.

Analistas como Kissinger, John Naisbitt e Dani Rodrik já alertavam para um paradoxo característico da globalização (na economia, geopolítica e meio ambiente): a economia globalizada produz efeitos positivos e negativos em escala planetária que se desdobram em outros benefícios e prejuízos nos locais mais remotos.


O aquecimento global é assim. Grandes multinacionais emissoras de gases efeito estufa, estimulando consumidores insaciáveis, contando com a tolerância de governos arcaicos, acabam disseminando impactos incontroláveis sobre o clima e os sistemas naturais mundo afora. Foi-se o tempo em que era suficiente “pensar globalmente e agir localmente”.

Esqueçam aqueles eventos colegiais do “Dia da Árvore”. Também não adianta a costumeira troca de acusações entre os políticos em ano eleitoral. Ninguém consegue mais amenizar nem resolver um estrago desse porte. Negócios feitos nas bolsas de Nova York ou Tokio acabam afetando, bem ou mal, a vida de pessoas comuns, desde Paris até Lajeado.

Nesse cenário, os prejuízos que estamos vendo nas cidades, estradas e lavouras sulistas são uma soma de fenômenos da natureza com a ação de pessoas que sequer estão lá na região para pagarem a conta. E quem está lá (moradores e prefeituras) não dispõe dos recursos necessários. A escala bilionária está além dos orçamentos, tecnologias e equipes da região.

O prefeito de São Leopoldo pode até “pensar globalmente”, mas pouco poderá fazer quando for “agir localmente”. É um esforço de enxugar gelo (nesse caso, o gelo de geleiras longínquas), até porque tudo se repetirá com força e frequência cada vez maiores.

É bem verdade que os governos e os legisladores municipais e estaduais podem endurecer na elaboração e aplicação das regras ambientais e urbanísticas. Também podem melhorar a qualidade do gasto público em geral, como forma de prepararem melhor suas cidades para esses efeitos locais das mudanças do clima global.

Contudo, é inadiável que se estabeleça uma governança climática superior e efetiva, no nível federal e no nível internacional. Não será fácil em tempos de ONU fragilizada e de retomada do espírito beligerante mundial, quando, no Brasil, nosso ‘presidencialismo de coalisão’ segue animado.