sábado, 26 de junho de 2021

Amém à corrupção

Ricardo Salles pediu demissão, mas o estrago foi feito e vai prosseguir. Ele deixou o caminho da boiada livre para o sucessor. Criou regras que dificultam a aplicação de multas, solapou os poderes da pasta ambiental limitando a atuação dos fiscais e os substituindo, favoreceu o trabalho de garimpeiros ilegais e grileiros de terras, bancou um esquema de contrabando de madeira. E comprou briga com a Polícia Federal —único erro na sua estratégia de destruição. Foi o maior predador da história da Amazônia debaixo do nariz do Exército.

Tudo isso só foi possível porque ele agiu com o amém de Bolsonaro, que agora o descarta para desviar a atenção do escândalo envolvendo a compra da vacina Covaxin. Salles tinha tanta liberdade que decidiu mandar no Cristo Redentor. Segundo o Ministério Público Federal, a gestão dele atuou para favorecer, sem licitação, o grupo Cataratas na exploração comercial do ponto turístico no alto do Corcovado.


São seis pequenas lojas de alimentação e suvenires que funcionam aos pés do monumento, que antes da pandemia recebia cerca de dois milhões de visitantes por ano. Uma delas estava nas mãos da mesma família há quatro gerações. Bisavós do atual lojista ganharam a concessão da Igreja Católica. Em julho de 2019 ele recebeu uma ordem de despejo da ICMBio, órgão do Ministério do Meio Ambiente responsável pelo Parque Nacional da Tijuca, área de floresta urbana que circunda o Cristo.

Na terça, as lojas foram desocupadas. A Arquidiocese do Rio de Janeiro defende a permanência dos antigos comerciantes e afirma que o terreno pertence à Igreja. Salles caiu e pode até ser preso, mas a disputa judicial pela exploração do Santuário não acabou.

Às vésperas do seu aniversário de 90 anos, do alto e de braços abertos, o Cristo Redentor tem acompanhado a transformação do país em feira de milicianos. Mas não esperava que a sujeira chegasse tão perto.

Será sério?


Se estivermos em um país sério, o governo Bolsonaro acabou
João Amoêdo, fundador do partido Novo

Não dá mais para disfarçar o cheiro de podre

Se ainda havia alguma dúvida, ela desapareceu ontem. O autoritário, intolerante, reacionário, equivocado e hipócrita governo Bolsonaro terá de explicar agora o cheiro de podridão que exala do Palácio do Planalto. O presidente sabia que havia um esquema de desvio de verbas montado no Ministério da Saúde. A denúncia feita à CPI da Covid talvez seja a mais grave, pelo menos dentre os episódios que já se conhece, porque envolve vidas humanas. Segundo o deputado Luis Farias, Bolsonaro sabia que o deputado Ricardo Barros, seu líder no Congresso, estava envolvido na falcatrua da importação da vacina Covaxin.

O presidente está diretamente envolvido, no mínimo por prevaricação. Segundo a acusação do deputado Luis Miranda e de seu irmão Luis Ricardo, funcionário do Ministério da Saúde, os dois foram a Bolsonaro em 20 de março, um sábado, relatar que autoridades do ministério faziam pressão para o servidor aprovar uma importação de vacina com irregularidades evidentes. O presidente disse que tomaria providência, e citou o nome de Barros. Ele não tomou providências e só agora apareceu com a desculpa esfarrapada de que apresentou o caso ao ministro Pazuello (querem deixar a bomba no seu colo, general, abre o olho) e que este voltou depois dizendo que não havia nada.


Como mandar uma investigação ser feita pelo órgão sobre o qual repousa a suspeita? Era caso de polícia, que não foi acionada. Pior, Pazuello estava de saída e seu substituto já despachava no Ministério da Saúde, embora o general tenha ficado participando de um processo de transição até o dia 22 de março. Houve, portanto, apenas um dia útil para o general investigar a denúncia e “constatar” que nada houve. Ao sair, contudo, Pazuello disse aos funcionários que havia gente querendo levar um “pixuleco” do Ministério.

Segundo o recibo apresentado pelos Miranda, deveriam ser transferidos US$ 45 milhões dos cofres públicos (R$ 225 milhões, ou duas Mega-Senas de Natal), para a conta de uma empresa em Cingapura, que não constava do contrato. Fora isso, o preço da vacina poderia estar superfaturado. A alegação do governo é que o contrato não foi finalizado. Claro, não foi concluído porque vazou. Detalhes: 1) A empresa Precisa já havia dado outros golpes na Saúde; 2) Bolsonaro intercedeu junto ao governo indiano em favor da Precisa.

O escândalo, que envolve políticos e militares, foi mal conduzido pelo governo. O ministro Onyx Lorenzoni ameaçou as testemunhas e mandou a Polícia Federal investigar um deputado no exercício do seu mandato sem autorização do Supremo. A mesma PF que não foi mobilizada quando a denúncia surgiu. Onyx disse ainda que o recibo apresentado era forjado. Não era. A arrogância do ministro é a cara do governo Bolsonaro. A estupidez do presidente parece transbordar em cascata para os escalões inferiores.

Dois zerinhos também mostraram a cara ontem. O deputado Eduardo Bolsonaro teria sido avisado por Luis Miranda e, como o pai, nada fez. O senador Flávio Bolsonaro, teria levado Francisco Maximiano, presidente da Precisa, empresa que intermediou o contrato da Covaxin com o Ministério da Saúde, a uma audiência com o presidente do BNDES, Gustavo Montezano, em outubro do ano passado. Essa intimidade com Maximiano, revelada ontem pela revista “Veja”, deve empestear ainda mais o ambiente no Palácio do Planalto.

Além dos escândalos que se avolumam e desmascaram Bolsonaro, não dá para esquecer as falcatruas domésticas, como as rachadinhas dos gabinetes da família do presidente e o depósito de R$ 89 mil feito pelo miliciano Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, dona Michelle. Também precisa ser explicado onde o zerinho senador arrumou dinheiro para comprar uma mansão de R$ 6 milhões em Brasília. Ele recebe R$ 32 mil brutos, ou pouco mais de R$ 24 mil líquidos por mês. Se desse todo o salário para financiar o imóvel, teria de trabalhar sem receber nada por 20 anos e oito meses. E ser eleito mais duas vezes, o que a esta altura já não se pode garantir.

Com a maior cara de pau, Jair Bolsonaro disse a uma plateia no Rio Grande do Norte que em dois anos e meio o seu governo não foi objeto de nenhuma acusação de corrupção. A declaração foi feita na última quinta-feira, dia seguinte à demissão de Ricardo Salles do Meio Ambiente, denunciado no STF por enriquecimento ilícito, e à denúncia do deputado Luis Miranda sobre a Covaxin. Talvez ele tenha tentado dizer que ignorou as denúncias e se expressou mal. Ou foi um lapso psicológico. O torniquete vai sendo apertado no pescoço do presidente e de seu governo.
Ascânio Seleme

A culpa é da imprensa

Tenho o hábito de colecionar manchetes mal redigidas. Minhas favoritas são aquelas ambíguas e carregadas de humor involuntário, do tipo “Polícia indicia estudante picado por naja, mãe, padrasto e outras 9 pessoas”.

Quando posto essas pérolas no Facebook, é inevitável que os comentários deixem de lado a graça da coisa e apontem para a decadência da imprensa, as nefastas consequências do fim da exigência de diploma para jornalistas ou a “geração Paulo Freire” (seja isso lá o que for).

Não, a imprensa não está em declínio. A sintaxe e a ortografia andam levando surras diárias, mas a imprensa, como instituição, continua sendo uma salvaguarda da democracia: denuncia condutas antirrepublicanas, combate a desinformação, propaga a diversidade de opiniões. Daí incomodar tanto e ser alvo prioritário de qualquer projeto totalitário de poder.

O desapreço pela imprensa não é monopólio da direita ou da esquerda. Jornalistas foram agredidos tanto por militantes petistas, na era Lula, quanto por bolsonaristas, na gestão atual. Há 17 anos, um correspondente estrangeiro quase foi expulso do país por ousar escrever sobre os hábitos etílicos do então mandatário. Do “cachaceiro” ao “pequi roído” (passando por “ladrão” e “genocida”), a liberdade de expressão tem sido deliberadamente embaralhada com difamação e calúnia.

Para Lula, a “Veja” destilava “ódio e mentira” contra seu governo. “Nós somos a opinião pública”, gabava-se o ex-presidente. “Nós não vamos derrotar apenas os nossos adversários tucanos; nós vamos derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como se fossem um partido político.”

Nada muito diferente do que andou dizendo Jair Bolsonaro ao declarar que “o certo é tirar de circulação” a “Folha de S.Paulo”, O Globo, “O Estado de S.Paulo” e o site O Antagonista — todos “fábricas de fake news”.

Bolsonaro vê na imprensa uma inimiga; Lula só a concebe como correligionária. Entre o PIG (Partido da Imprensa Golpista) de antes e a imprensa “patife” e “canalha” de agora, mudou apenas o remetente. O destinatário é a mídia que cumpre seu papel.

O iutuber Felipe Neto foi intimado a depor numa investigação de “crime contra a segurança nacional” por ter se referido ao presidente como “genocida”. Mobilizou, merecidamente, milhares de apoiadores.

Poucos dias antes, Felipe Neto havia tuitado um recado aos “prezados jornalistas tucanos”: não batam na esquerda até as eleições. Em outras palavras: não cobrem autocrítica, abram mão da independência de pensamento. Se não aderirem à servidão voluntária da imprensa chapa-branca, depois não reclamem. Uma espécie de “minha liberdade de expressão é sagrada; a dos outros, nem tanto”. É o autoritarismo dos “libertários”, diferente só na forma daquele dos liberticidas.

Ao contrário do que digam o título lá em cima e o governante de turno, a culpa (pelas maracutaias, pelo descaso com a vida) não é da imprensa. Ainda que estropie o português aqui e faça uma manchete hilária acolá, ela continua sendo a maior aliada do povo contra os abusos do poder.