segunda-feira, 7 de junho de 2021

Caso Pazuello evidencia plano bolsonarista de controle sobre os militares, central para a ultradireita

Em sua primeira viagem aos EUA, no início de 2019, o presidente Jair Bolsonaro foi claro: antes de pensar em construir qualquer coisa, seu Governo teria como função destruir o que existia.

E assim ocorreu. Nos controles ambientais, no espaço de participação da sociedade civil, na autonomia das universidades, no financiamento de linhas de pesquisa, na diplomacia e em tantos outros setores.

O projeto do bolsonarismo, assim como em todo o movimento de extrema direita, é o de fazer o Estado sucumbir em suas estruturas e transformar instituições em braços de uma ideologia que perpetue um grupo no poder.


Agora, chegou o momento de ampliar essa destruição às Forças Armadas. A decisão dos militares de não punir o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, por sua participação em atos com o presidente Bolsonaro revela que esse processo está em andamento e que a desmoralização das regras de conduta dos militares é uma realidade.

Considerados inicialmente como o “colchão” que evitaria os fundamentalistas da ala mais radical do bolsonarismo de contaminar o Estado, os militares brasileiros hoje vivem uma situação de constrangimento.

Se toda e qualquer destruição do Estado pode ser considerada como alarmante para a sobrevivência da frágil democracia brasileira, uma transformação do papel das Forças Armadas pode ser decisiva se for consolidada.

Por isso, o “caso Pazuello” não pode ser nem minimizado e nem normalizado. Como um prefácio, ele poderia apontar caminhos de tensão para os próximos meses. Como um prelúdio, ele estabelece dúvidas sobre como alas armadas poderiam reagir em determinados resultados nas urnas no próximo ano.

De muitas formas, ele pode ser o prólogo da história da eleição de 2022.

Ao longo das últimas décadas, o envolvimento político de militares definiu destinos e governos no Brasil. Hoje, ela ganha um novo componente, inchado por uma ideologia que não vem apenas de uma base radical. Mas liderada por um presidente e aliados que tentam sequestrar, em diversas áreas, o próprio Estado.

A ameaça de cooptar os militares a esse movimento não é um caso isolado do Brasil. Ao longo dos últimos anos, grupos com ideologias de extrema direita em diversos países pelo mundo mergulharam em estratégias deliberadas de infiltrar seus pensamentos e seus homens nas Forças Armadas de seus respectivos países, inclusive em democracias consolidadas.

Neste ano, nos Estados Unidos, a invasão do Capitólio reabriu as investigações sobre a presença de supremacistas e extremistas entre os soldados do país. E a constatação foi de que o problema é real.

Já em 2020, uma pesquisa conduzida pelo Military Times revelou que um terço dos militares americanos presenciaram sinais de nacionalismo ou racismo ideológico entre as tropas.

Em 2016, um movimento de extrema direita no Reino Unido, o National Action, foi desmantelado depois da descoberta que seu objetivo era o de colocar seus homens dentro das Forças Armadas britânicas. Três anos depois, foi descoberto que soldados ingleses usavam fotos do então líder da oposição e considerado de esquerda, Jeremy Corbyn, como alvo para treinar tiro.

Na Alemanha, traumatizada por seu passado, o monitoramento é permanente. Mas, ainda assim, o que surpreende as autoridades é que o movimento de extrema direita nas casernas sobrevive.

Um verdadeiro terremoto ocorreu quando investigações revelaram a presença de soldados simpáticos à extrema direita no Kommando Spezialkräfte (KSK), um grupo de elite das Forças Armadas da Alemanha.

Na Holanda, entre 2014 e 2019, 21 investigações foram abertas sobre suspeitas de atividades da extrema direita dentro das Forças Armadas do país. Desde 2013, mais de 50 militares canadenses foram identificados como tendo conexões com esses movimentos.

Na França, cartas anônimas publicadas por soldados nos últimos meses questionando o presidente Emmanuel Macron foram aplaudidas por Marine Le Pen, a líder do movimento xenófobo e extremista.

Mas, entre as sociedades ocidentais, talvez seja na Hungria de Viktor Órban que o plano de usar as Forças Armadas para legitimar uma ideologia no poder esteja mais avançado.

Diante da covid-19, o primeiro-ministro ultraconservador colocou os militares no centro da resposta contra a pandemia. Hospitais passaram a ser administrados por generais, militares foram designados para áreas estratégicas e cidadãos passaram a ser informados, quase diariamente, por coletivas de imprensa concedidas por militares.

Na tentativa de lidar com o desemprego criado pela crise sanitária, Orban ainda propõe a criação de uma unidade de voluntários no exército para absorver 3.000 homens.

O processo vem acompanhado por novos investimentos. Para 2022, ele prevê 2,9 bilhões de euros para as Forças Armadas, um volume recorde de dinheiro.

Neste fim de semana, ao entregar o comando militar ao general Romulusz Ruszin-Szendi, Orban apontou que seu principal papel seria o de “integrar o exército à sociedade húngara”. Isso envolveria “ganhar dezenas de milhares de jovens” para defender o país.

Para seus críticos, a meta não é a de garantir a defesa do território ou assegurar a estabilidade. Mas consolidar Orban no poder. Por essa perspectiva, a militarização faz parte de uma estratégia para conter o vírus, mas também para enfraquecer a oposição, combater a imigração e o próprio espaço de atuação da sociedade civil.

Num momento de ameaça à estabilidade democrática e de um avanço de forças autoritárias, exemplos pelo mundo revelam que a busca pelo controle das Forças Armadas faz parte de uma estratégia ambiciosa.

O Estado, sequestrado, ganha uma dimensão de instrumento para perpetuar um grupo no poder.

Nos corredores do poder na Europa, na OTAN ou em centros de estudos, há um reconhecimento de que existe uma ofensiva neste sentido. E que as Forças Armadas fazem parte do trabalho minucioso de grupos radicais para romper com as garantias institucionais.

O antídoto a essa onda vem do fortalecimento de um controle democrático sobre as Forças Armadas. Isso, no caso europeu, não envolve apenas o Executivo. Mas um escrutínio permanente por parte do Legislativo e Judiciário, além de uma vigilante atuação dos auditores do Estado.

Sempre para garantir que os militares não sirvam nem a uma ideologia e nem a um partido político. Qualquer ação em outro sentido é uma ameaça real à democracia. Assim como foi a decisão do Exército brasileiro sobre Pazuello.

Socorro!

No dia 13 de maio de 2021, a urna eletrônica fez bodas de prata. Completou 25 anos de casada com as eleições brasileiras. Esse casamento, celebrado nas eleições municipais de 1996, rendeu bons frutos.

Com o passar do tempo, os componentes de software e hardware foram aprimorados, em nenhuma eleição aconteceu qualquer indício de fraude, a confiabilidade na coleta e apuração dos votos aumentou, e a agilidade no anúncio dos resultados cresceu. Provando assim que o sistema digital é superior ao sistema impresso.

Estranhamente, nos últimos tempos, o governo federal iniciou uma forte campanha pelo retorno do voto impresso.

Os especialistas em política dizem que essa campanha acontece porque os votos no papel, depositados nas primitivas urnas de madeira, permitem contestar os resultados, alegando fraudes, como fez nas últimas eleições americanas Donald Trump, ídolo do presidente Jair Bolsonaro.

Alguns presidentes de partidos, como Carlos Lupi, do PDT, e Carlos Siqueira, do PSB, aderiram a essa campanha. E a deputada federal governista Bia Kicis (PSL-DF) contratou duas empresas, pagas com dinheiro público, para a missão de provar imperfeições nas urnas digitais.


Tomara que essa postura retrô não se concretize, mas, se ela ocorrer, dá pra imaginar uma porção de outros retrocessos que os políticos brasileiros poderiam tentar promover nos próximos tempos.

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, poderia propor a proibição dos iPhones e a volta dos telefones pretos dentro das casas e nos estabelecimentos comerciais, assim como a instalação de alguns orelhões nas ruas.

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, poderia propor a volta do vestido tubinho, coisa que a ex-bolsonarista e atual opositora Joice Hasselmann contestaria imediatamente por ser adepta do tomara que caia. E que caia já.

Ainda sobre a ministra Damares, que tempos atrás cogitou proibir o sexo entre os jovens, neste momento e aproveitando a possibilidade de volta ao passado, ela poderia proibir a pílula anticoncepcional, criada por John Rock e Gregory Pincus, em 1960.

O refrigerante Grapette, estrondoso fracasso de vendas, lançado no Brasil pela Anderson Clayton & Co, em 1961, poderia voltar ao mercado a partir de agora, mas obviamente não recomendado nas escolas pelo ministro da Educação, Milton Ribeiro, porque “quem bebe Grapette repete”.

O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes, poderia criar condições privilegiadas para a Ford Motor Company voltar ao Brasil, desde que a empresa se comprometesse a relançar o Corcel cor de mel, e esse mesmo ministro poderia sugerir também o relançamento da Vemaguet e ajudar na ressurreição da Fábrica Nacional de Motores, com seus caminhões Fenemê.

Enquanto isso, o ministro da Cidadania, João Roma, poderia mandar distribuir pelo país toneladas de vidros de coalhadas, substituindo os iogurtes de frutas que a Danone francesa introduziu no Brasil a partir dos anos 1970.

Finalizando com um assunto do momento, a Covid-19 e a possibilidade de outras pandemias, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, poderia incentivar a população a hostilizar qualquer incentivador da vacinação, como foi feito com Oswaldo Cruz, em 1904, quando ele criou o programa de vacinação contra a varíola. E poderia também fingir não estar vendo as “motociatas” e passeatas nas principais capitais do país, que ocorrem sem o uso de máscaras, promovendo aglomerações e novas contaminações.

Claro que, se tudo isso acontecesse, o que restaria para a maioria dos brasileiros de bom senso seria pedir a volta do programa de rádio “Telefone pedindo bis”, do consagrado Enzo de Almeida Passos, na Rádio Bandeirantes de São Paulo.

Telefonando para lá, esses brasileiros poderiam pedir que Enzo executasse mais uma vez aquela canção dos Beatles que foi um enorme sucesso em 1965 e acabou virando nome do novo LP e do segundo filme dos quatro rapazes de Liverpool.

Help!

Bolsonaro, o gigolô da facada que poderia tê-lo matado

A história das palavras mais usadas por Jair Bolsonaro divide-se em antes e depois da pandemia. Depois, sem dúvida, a palavra mais repetida pelo presidente foi cloroquina, uma droga ineficaz contra a Covid-19 que o mandatário ainda insiste em recomendar. Tem lá suas razões para isso que um dia serão mais bem contadas.

Antes da pandemia, a palavra que mais usou foi facada, para extrair vantagens políticas do ato insano de Adélio Bispo de tentar matá-lo no dia 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Embora, à época, estivesse em ascensão nas pesquisas de intenção de voto, as chances de vitória de Bolsonaro eram incertas.

Seu tempo de televisão na propaganda eleitoral era minúsculo, irrelevante, se comparado com o dos seus adversários. Não conseguira tempo maior porque os partidos se recusaram a apoiá-lo. O despreparo de Bolsonaro era abissal, como ainda é, e por isso debates entre candidatos metiam-lhe medo.

A facada impulsionou sua candidatura. Ele foi para a cabeceira das pesquisas na condição de vítima. O atentado foi atribuído a um militante de partido de esquerda. A cobertura jornalística de sua recuperação funcionou como o tempo de propaganda que ele não tinha. E Bolsonaro pôde fugir dos debates.


Explorou o próprio sofrimento antes de se eleger, depois de eleito e antes de ser empossado, depois da posse, e até que a Covid chegasse. Não perde a chance de dizer que, se não morreu, foi porque Deus não quis, para que pudesse governar o Brasil. Ancorado em Deus e na facada, espera reeleger-se ano que vem.

O homicídio que não se consumou voltou a ser lembrado, desta vez pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), em resposta a uma reportagem da “The Economist”, a mais importante do mundo, publicada no jornal O Estado de S. Paulo sob o título: “A década sombria do Brasil”.

A revista apresenta Bolsonaro como um líder que pretende “destruir as instituições, não reformá-las”. E diz que “a prioridade mais urgente é derrotá-lo”. A Secom postou uma série de 23 posts no Twitter para dizer que ninguém levou a reportagem da revista a sério. Imagine se tivessem levado a sério…

A maioria dos posts é um panegírico a Bolsonaro e ao governo, distorce fatos, omite verdades e bate duro na revista, afirmando que a “The Economist” enterrou “a ética jornalística” e extrapolou “os limites do debate público”. Há limites para debate público? Se os há, o governo Bolsonaro costuma respeitá-los?

Às muitas provas de que o governo não os respeita, a Secom acrescentou mais uma ao sugerir que a revista fez a apologia à morte de Bolsonaro. Em um dos post, escreveu:

“Vejam bem: não falam apenas em vencer nas urnas, superar, destituir. Falam em eliminar. Estaria o artigo fazendo uma assustadora apologia ao homicídio do presidente?”

Na versão original da reportagem, está escrito: “The most urgente priority is to vote him out”. Na versão do Estadão, a frase foi traduzida assim: “A prioridade mais urgente é eliminá-lo”. A construção correta é: “A prioridade mais urgente é derrotá-lo (no voto, nas eleições)”. Deve haver na Secom quem domine o inglês…

A Secom insistiu em outro post: “Parece que o desespero da Economist e do jornalismo militante, antidemocrático e irresponsável é para que o presidente da República seja eliminado o quanto antes, antes que ele e seu governo concluam o excelente trabalho que fazem para o bem do Brasil”.

A reação do governo a uma reportagem “que não chamou a atenção de ninguém” dá a medida do sufoco que ele vive. A pandemia não foi detida, e uma nova onda do vírus se aproxima. Falta vacina. A CPI do Senado aperta-lhe os calos. E a oposição põe o povo de novo nas ruas.

(Atenção, Secom! O “poderia tê-lo matado” que consta do título acima não é apologia ao homicídio que não passou de uma tentativa malsucedida. Convenhamos que a facada poderia, sim, ter matado Bolsonaro.)

Pensamento do Dia

 


Não é Copa, é mata-mata

A grande jogada agora, meu capitão Casemiro, é ouvir o clamor dos deuses dos estádios e, solidário na dor pelos 500 mil mortos, na luta para que essa goleada pare, dispensar a copa fúnebre em que querem meter a seleção. A pedalada, a caneta, a tabelinha. Tudo isso espera. Se Pelé disse “love, love, love”, chegou a horar de você também entrar para a História. Diga “não, não, não” a tamanha maluquice.

Restaura a sanidade à amarelinha de nossas glórias e mostra que, mais do que nunca, o gol é detalhe. Em junho de 2021, o caneco em jogo é o da sobrevivência. Parte para cima dos que querem ampliar o placar de mortes contra nossas próprias cores, pede licença ao Tite e adota a única tática possível neste momento da partida – a das boas defesas sanitárias. Craque da rodada é o que fica em casa.

Mostra, meu caro Neymar, que você cresceu, o menino já não mais te habita as idiossincrasias, e, em nome dos arquibaldos e dos geraldinos que se foram com a Covid-19, assuma de voz grossa. Não vai ter Copa. Veste as chuteiras da humildade, esfrega a máscara na cara desses cartolas assediadores de vírus e se negue ao vexame de mais um 7 a 1 dentro de casa.


O Brasil já perdeu para a pandemia seis Maracanãs lotados de torcedores e, agora, meu Gabigol, os que restaram não querem saber de levantar Copa alguma. Querem levantar os filhos no colo, os netos nos ombros, a pessoa amada no abraço e brindar de vinho a vida futura. É hora de chamar o jogo para si, Richarlison, entrar de sola na ignorância nacional que campeia fora das quatro linhas e, sob os aplausos da torcida, tirar vitorioso o time de campo. 

Perguntem ao Everton Ribeiro, que organiza o jogo no meio de campo. Num momento desses ninguém distribui passes, distribui cepas, variantes vindas de jogadores de todos os cantos do planeta. Contra esse esquema do mais terrível dos adversários, a morte, é inútil avançar os beques, recuar os halfes ou ressuscitar o WM. A única chance de vitória é vacinar em dois toques.

O Brasil tem agrupamentos notáveis, como os cientistas de Manguinhos e os ritmistas da Mangueira, mas são os 11 da seleção canarinho, com a incomparável mistura de inteligência e jogo de cintura moleque, aqueles que melhor resumem o orgulho nacional. Eu te asseguro, meu jovem Lucas Paquetá, vai ser uma redenção dos nossos horrores, uma pausa nas humilhações, se todos vocês, a pátria em chuteiras, dispensarem o bicho e em protesto abaixarem o meião diante da convocação insana. 

O jogo de futebol, com suas regras seculares, disciplinas e exaltação dos talentos, é um dos mais deliciosos simulacros do processo civilizatório da Humanidade, e definitivamente, meu zagueirão Marquinhos, não há nada de civilizado em adentrar o gramado e enfrentar uma multidão assassina de vírus com o único e notório recurso do carrinho por trás.

Já bastava, meu caro Alisson, a clássica angústia do goleiro na hora do pênalti e eis que agora constata-se que há no Brasil quem esteja jogando contra o Brasil. Neguem-se aos que negam as evidências e caiam fora da loucura de enfrentar a pandemia com passes de trivela. Uma Copa dessas não tem turno, returno ou fase classificatória. É tudo mata-mata.

Vinte e uma dicas para deter o fim do mundo

Na última segunda-feira, comecei o dia espalhando, em rede social, dicas para a semana que se iniciava. Repito-as aqui sem saber se são valiosas, ainda que, imodestamente, creia que, mil vezes repetidas, elas nos auxiliariam a deter este momento assemelhado ao fim do mundo, senão o próprio.

Divida as tarefas domésticas / Manifeste-se contra o governo / Beba, se for o caso, mas não deixe de orar / Ore, se for o caso, mas não deixe de beber / Troque uma ideia com amigos / Ouça música. Leia. Cante. Dance / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Tenha saudades / Procure se informar. Desconfie de tudo / Agradeça a vacina tomada / Se prepare para tomar a vacina / Não se conforme com tantas mortes / Olhe para o Jacarezinho. Cobre justiça / Olhe para as aldeias indígenas. Cobre justiça / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Mande uma gracinha pelo ZAP / Confronte fake news / Faça planos / Chore / Ria / Olhe bem para os lados, não esteja sozinho.


À beira da autoajuda, as dicas beliscam temas que me mobilizam e misturam aquelas claramente políticas com as apenas afetuosas. Sabendo-se que o afeto, e isso está tão claro hoje, é mais político que muito grito de guerra, minhas dicas — com destaque para “divida as tarefas domésticas” — são absolutamente políticas e absolutamente afetuosas.

Escrevi as vinte e uma ações instigado, de um lado, pelas derrotas quase diárias, representadas pelas chacinas do Jacarezinho e de muitas aldeias indígenas: dois exemplos tirados de uma lista que, no dia 29 de maio, quando os descontentes com o governo tomamos a rua (não fui, mas, como acumulo crédito em protestos e passeatas, é como tivesse ido), foi acrescida por um ataque covarde da polícia pernambucana contra a população. Daniel Campelo da Silva e Jonas Correia de França, que nem estavam no protesto, perderam parte da visão depois de levarem tiros de bala de borracha. De outro lado, o impulso veio do brilho saído das ruas cheias e inconformadas. Escrevi, portanto, a partir de um lamento e de uma esperança. Olhemos para os lados e não estejamos sozinhos — não estamos!

A extrema direita, essa cobra por muito tempo escondida e alimentada pela própria fome, voltou ao poder com o intuito único e claro de desinventar o Brasil, o Brasil cordial. Digo cordial não no sentido de ser habitado exclusiva ou majoritariamente por pessoas afáveis e sinceras, mas sim por abrigar o povo que inventou o drible e que, se não o inventou, aperfeiçoou a gambiarra. Povo que, do trauma da escravidão e agarrado à ancestralidade africana, fez surgir o samba, nossa trilha da alegria, da congratulação, “o pai do prazer” e “o filho da dor”, nas palavras de Gil e Caetano. Cordial porque age de coração.

A direita quer acabar com os atravessamentos entre o antigo (e até o conservador) e o moderno que marcam este país em permanente exercício de autoconhecimento. Vandré e sua Disparada. O Lamento Sertanejo, de Gil e Dominguinhos. Os Mutantes cantando Dois mil e um, de Rita Lee e Tom Zé. Os irmãos Pena Branca e Xavantinho, crias do Brasil Central, rural, boiadeiro, acaipirando Cio da Terra, de Milton e Chico. Bethânia levando Evidências para além do que é. Emicida absorvendo Belchior. Todas essas experiências são o resultado de diálogos entre o centro e a periferia, entre o rural e o urbano, entre o interior e as capitais, entre a costa oceânica e os sertões e as florestas, entre o negro e o branco, entre distintas gerações, portanto diálogos feitos também ou principalmente de embates. O Brasil, bem ou mal, foi se construindo a partir dessas contradições que agora querem dizer que não existem, querem proibi-las de dar norte ao país.

A direita no comando não tem um projeto neoliberal claro, nesse ponto ela enfrenta suas contendas internas, mas, não resta dúvida, tem um projeto coerente de, agarrado às batidas agendas conservadoras, impor um poder que não é civil, também não é militar, é miliciano. As milícias nasceram oferecendo, mediante pagamento e de forma chantagista, “segurança” aos desassistidos (no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense). Aonde a lei não chegava, as milícias agiam como se zelassem por ela. Lorota. Na verdade, reescreviam as leis e encarceravam — expandindo os serviços já oferecidos, que passaram a contar com o gatonet, a venda monopólica do gás etc. — primeiro os seus protegidos e, depois, todos os moradores dos territórios sob sua influência.

É nessa esquina que estamos. Se não reagirmos, de 500 mil mortos por Covid-19, saltaremos para um milhão. A esse um milhão, acrescentaremos outro milhão de mortos por perseguição e balas perdidas. E mais não sei quantos milhões vitimados pela fome. É hora de trazer o poder para o campo civilizatório, tomá-lo de volta desse projeto de destruição. Depois, bem, depois a gente retoma as velhas questões. Uma retomada que, embora anteponha projetos distintos, quiçá incompatíveis, garanta a alternância no poder e o estabelecimento de um consenso duradouro, qual seja, o de que situação e oposição agirão sempre respeitando a democracia.

Bebendo sem deixar de orar e orando sem deixar de beber, nos concentremos na luta civilizatória e resgatemos o Brasil da mão dos facínoras.

Charlatanismo a peso de ouro


Esse negócio que a hidroxicloroquina era isso, era aquilo, negativo! Era dinheiro. Vou ser mais claro: corrupção; passando a mão; esquema; advocacia administrativa. Nós temos provas disso na CPI
Randolfe Rodrigues, senador vice-presidente da CPI da Covid-19

Do verde ao amarelo

A decisão do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello é dessas notícias que anunciam uma época.

Já tinha escrito que saberíamos por ela se há luz no fim do túnel ou se nos espera uma longa escuridão. Infelizmente, o Exército brasileiro amarelou diante da pressão de Bolsonaro. No futuro, saberemos se amarelou por covardia ou se aderiu conscientemente a um projeto autoritário.

Isso já não importa tanto. Ele já tomou o seu lado. O que importa agora é uma leitura correta do fato e uma preparação adequada para as consequências.

Sempre me exponho à acusação de exagero, mas, com tantos golpes na trajetória, minha tendência é avisar: quanto mais preparados estivermos, melhores condições teremos de resistir.

A primeira consequência tem de ser o estreitamento de laços entre todas as forças democráticas. Como assim, se elas se preparam para disputar uma eleição com candidatos diferentes?

É preciso ser ingênuo para supor que o processo eleitoral não contenha uma armadilha. Bolsonaro já afirmou que não aceitará resultados de urnas eletrônicas. Ele é defensor de rebelião armada, chegou a falar dessa possibilidade contra as restrições sanitárias na pandemia.


Policiais militares aqui e ali já se manifestam. No Recife, cegando as pessoas; em Goiás, prendendo manifestantes; em Brasília, no discurso bolsonarista do comandante.

Com a capitulação do Exército, é necessário começar desde agora a organizar a resistência.

É preciso admitir que tanto os autoritários quanto os democratas estão numa situação delicada. É complexo articular uma resistência a um golpe, mas também é complexo aplicá-lo neste momento da história.

Biden governa os Estados Unidos, e as eleições na Alemanha abrem espaço para Annalena Baerbock , líder do PV, que pode substituir Angela Merkel. Europa e Estados Unidos se movem numa mesma direção democrática e sustentável.

Isso tem pouca importância para o grupo no poder e possivelmente também para o Exército, que continua vendo a preocupação ecológica como fruto da cobiça estrangeira.

Quem confia apenas na força das armas ignora sistematicamente essas variáveis. Entretanto o exemplo venezuelano mostra que apoio externo sem grandes movimentos internos não resolve sozinho.

Estrategicamente, será preciso articular os dois e compreender como é vulnerável uma oposição dividida.

Bolsonaro jamais escondeu sua admiração pelo trabalho de Chávez. As Forças Armadas de lá tornaram-se cúmplices pelo mesmo caminho que as daqui. A diferença é que, lá, muitos cargos ocupados por militares abrem caminho para a corrupção.

Aqui, até o momento, são apenas vantagens materiais que ampliam legalmente os salários, além das benesses do poder.

Na Venezuela, há uma estrutura partidária no controle do governo. Aqui, alguns generais articulados entre si fazem a ligação entre governo e militares e entre governo e a parte fisiológica do Congresso.

Pazuello juntou-se ao grupo com o pomposo título de secretário de assuntos estratégicos. Mas é apenas mais um general do núcleo do Planalto que, na aparência, transmitiria sensatez a Bolsonaro. Na verdade, são o Estado-Maior desse regime em gestação.

Na Venezuela, tombaram militares, congressistas, juízes, e a imprensa foi detonada por Chávez e agora Maduro.

No Brasil, ainda estão de pé a imprensa, os juízes e uma parte do Congresso. Sem um grande apoio popular, não resistem sozinhos.

De uma certa forma, discutir outra coisa que não a resistência, em termos políticos, equivale à frase da doutora Luana Araújo para a crise sanitária: “É como se estivéssemos discutindo de qual borda da Terra plana vamos pular”.

Talvez tenhamos de esperar algum tempo para bloquear esse processo de cooptacão de nossas moralmente frágeis Forças Armadas. Certamente, o caminho será proibir por leis que militares da ativa participem de governo.

O mundo pós-covid será outro – e a Alemanha também

"Quem sou eu, se sou igual a tantos outros?" Com essa pergunta um tanto enigmática, certa vez o filósofo pop alemão Richard David Precht convidou seus leitores a uma viagem de exploração para dentro de si mesmos.

No momento muitos se colocam exatamente essa questão, ao finalmente verem luz no fim do túnel, após de meses de confinamento, o anúncio de uma época pós-coronavírus. A luz da normalidade, a expectativa de um despreocupado verão europeu, como tanto se desejou durante o longo período de distanciamento e e paralisação.

No entanto, cabe parar por um momento e se perguntar, duvidoso: ainda sou aquele de antigamente, de antes da pandemia de covid-19? Até que ponto me tornei um outro? E como vou me arranjar nesse novo velho mundo?

De peito inflado de orgulho, a política anuncia taxas de incidência cada vez menores. Na Alemanha, parece que conseguimos controlar o vírus Sars-Cov-2 – um motivo de alegria não só para a chanceler federal, Angela Merkel, e o ministro da Saúde, Jens Spahn.

Contudo, para além das cifras anônimas, muitas vezes se esquece o indivíduo. No que diz respeito a nós mesmos, a cada ser humano, não é raro que à queda da curva de incidência se contraponha um aumento das apreensões e temores.


Pois uma coisa é clara: assim como o caminho através da pandemia foi pedregoso e atormentado, o caminho para fora está longe de ser plano e tranquilo.

Isso não se aplica apenas aos seriamente abalados pacientes de uma covid-19 prolongada, ou ao grande grupo dos recuperados que agora de debatem com ansiedade patológica e oscilações de ânimo anormalmente fortes, como revelou um estudo britânico publicado na revista The Lancet Psychiatry. E tampouco se aplica só às não computadas vítimas de violência doméstica ou que sofrem de outros traumas.

E, por exemplo, as crianças que há meses estão privadas de aulas presenciais e da companhia dos amigos de escola? Ou, bem simplesmente: e nós, que pensamos ter atravessado bastante bem o tempo de isolamento e solidão?

E nós, que até certo ponto nos beneficiamos do ritmo mais lento, que trabalhamos diligentes no home-office, mas que também apreciamos a oportunidade de estar sós? E que renunciamos com muito gosto à loucura do business hiperintenso e dos excessos de ambição profissional?

Também para esses, o caminho para fora da pandemia não é plano. Estudos científicos e dados dos seguros de saúde comprovam que a pandemia afetou muitos psiquicamente. Uma maior tendência à depressão é um fenômeno difundido: ela permanece, não desaparece automaticamente junto com o coronavírus.

Nesse contexto, não é aceitável o prazo de espera para uma psicoterapia ambulante na Alemanha estar se alargando cada vez mais e, segundo dados da associação nacional dos psicoterapeutas, os pacientes dos planos de saúde terem que esperar 22 semanas por uma consulta.

Infelizmente a política não agiu de maneira previdente para ampliar as ofertas de acompanhamento psicológico. Assim como nas demais grandes instituições, nota-se a tendência para um acelerado e insensível "business as usual". Um bom exemplo desse descaso é a brutal chamada de certos empresários para que seus funcionários façam o favor de deixar o home-office e retornem o mais breve possível aos escritórios das firmas.

O empregado, que até há pouco era louvado por sua flexibilidade, esfrega os olhos, incrédulo. E com ele, também todos que constataram que pós-covid não é simplesmente igual a pré-covid: não só nós mudamos, também o mundo à nossa volta.

A reconfiguração do mundo do trabalho, as bênçãos da comunicação digital ou o retorno ao âmbito de atuação regional não devem ser degradados a sacrifícios emergenciais ditados pela pandemia, mas sim tornar-se parte de uma reconfiguração do nosso entorno e de uma redefinição da nossa vida.

Comecemos com isso: deixemo-nos inspirar pelo encontro com a nova realidade. Caso contrário, terão sido em vão todos os sacrifícios na luta contra o coronavírus.
Gero Schliess

Imagem do Brasil

 

Luc Descheemaeker (Bélgica)

Impostura em rede nacional

O presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional na quarta-feira para prestar contas das ações de seu governo em meio à pandemia de covid-19. Na prática, contudo, o discurso serviu como mais uma das peças de propaganda de sua campanha à reeleição, iniciada assim que tomou posse. Nessa condição, Bolsonaro fez o que os maus políticos fazem nos palanques: distorceu fatos e inventou conquistas e qualidades inexistentes em seu governo.

A impostura começou logo na primeira frase: “Sinto profundamente cada vida perdida em nosso país”. Depois de passar mais de um ano desdenhando da morte em massa de seus compatriotas, o presidente resolveu “sentir profundamente” – mas, ocupado demais com passeios de moto, comícios golpistas e banhos de mar, ainda não encontrou tempo para visitar os hospitais, os familiares de doentes e mortos e os médicos que estão vivendo o pesadelo da pandemia.


Em seguida, Bolsonaro festejou “a marca de 100 milhões de doses de vacinas distribuídas a Estados e municípios”. Trata-se de escárnio: conforme constatou a CPI da Pandemia, o Brasil poderia ter 150 milhões de doses até maio passado, se o governo não tivesse sabotado a compra de vacinas quando foram oferecidas.

Segundo o presidente, “o Brasil é o quarto país do mundo que mais vacina no planeta”. No entanto, levando-se em conta o número de vacinados em relação à população, o Brasil é apenas o 79.º no ranking. Somente 10% receberam as duas doses da vacina – e, nesse ritmo, é difícil acreditar que “neste ano todos os brasileiros que assim o desejarem serão vacinados”, como anunciou Bolsonaro. Soa, portanto, como promessa demagógica de campanha.

A ênfase de Bolsonaro na vacinação poderia ser uma boa notícia se fosse autêntica, mas sabe-se que é só cálculo político. A maioria dos brasileiros quer tomar a vacina, conforme atestam as pesquisas, e a escassez dos imunizantes tem motivado o mau humor dos cidadãos com o presidente. Pressionado por seus súditos do Centrão, Bolsonaro parece ter sido convencido de que boicotar as vacinas não dá votos.

O presidente foi à TV para se passar por campeão da vacinação também como resposta às revelações chocantes da CPI da Pandemia. Durante a semana não faltaram depoimentos demonstrando como Bolsonaro fez de seu governo uma cidadela do negacionismo científico – um dos fatores cruciais para que estejamos perto de atingir 500 mil mortos pela pandemia.

Num dia, falou a oncologista Nise Yamaguchi, referência bolsonarista na defesa da cloroquina contra a covid-19. Incapaz de provar a seriedade dos “estudos” que citou para propagandear o elixir, a doutora, no entanto, demonstrou ter as qualidades exigidas por Bolsonaro: sustentou a mistificação mesmo diante de evidências em contrário.

No dia seguinte, falou a infectologista Luana Araújo, que havia sido convidada para chefiar a secretaria do Ministério da Saúde que centraliza o combate à pandemia, mas acabou dispensada depois de apenas dez dias de trabalho. O depoimento deixou claro por que a doutora foi preterida: é defensora da ciência contra o curandeirismo, algo inaceitável para Bolsonaro.

Nessa toada obscurantista, o “estadista” de fancaria que Bolsonaro incorporou na TV aproveitou também para faturar a alta do PIB e para dizer que “estamos avançando no difícil processo de privatizações” – uma falsidade que pode ser atestada por qualquer um dos vários assessores do Ministério da Economia que pediram demissão por frustração com o atraso nas privatizações.

Bolsonaro não citou nenhuma vez a palavra “cloroquina”, mas também não mencionou a palavra “reformas”. Segundo reportagem do Estado, o presidente já disse ao ministro Paulo Guedes que não quer mais a reforma administrativa. Informado por Guedes, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, questionou em público: “Há o compromisso do Executivo com a reforma administrativa?”.

É óbvio que não há, porque nunca houve. Para Bolsonaro, vacinas, reformas e privatizações são palavras vazias, que ele usa em seu discurso eleitoreiro para enganar otários.

Tá no forno


O Brasil ainda corre o risco de ficar obsoleto antes de ficar pronto
Claude Lévi-Strauss

Acorda, Brasil

Urge colocar um cabresto na cabeça do presidente da República, Jair Bolsonaro. E calibrar rápido essas correias para frear o insano galope presidencial em curso. Como demonstrou o engavetamento do processo disciplinar contra o general da reserva e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o desfibrilado Alto-Comando do Exército abriu porteira a uma anarquia fardada de cima para baixo. Com as PMs de vários estados já bandeadas como linha de frente do capitão, Bolsonaro sabe que também pode contar com a confraria fortemente armada das milícias, que aguarda apenas a ordem para sair das sombras e atropelar o que resta de Brasil civil e civilizado. Uma pesquisa de julho do ano passado já mostrava que 12% dos policiais militares eram favoráveis à prisão de ministros do STF e ao fechamento do Congresso.

As minudências do “episódio/provocação Pazuello”, desencadeado por Bolsonaro, conseguiram eclipsar por um dia outras constantes nacionais como o descontrole da Covid-19, cuja curva de mortandade aponta para a inimaginável marca de 500 mil vidas descartadas, além de 13 estados com UTIs novamente lotadas e uma CPI que desenterra os porões da (ir)responsabilidade do governo. O desmatamento da Amazônia também acaba de atingir o pior índice para maio desde 2016, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), enquanto a brutalidade policial contra o cidadão comum está cada dia mais escancarada. É um desmatamento institucional de vidas — a humana, a animal, a ambiental, a política —pela força.


Não bastasse, ainda temos a Copa América, rebatizada de Copa das Cepas pelo escritor Ruy Castro. Se é que Copa haverá. A absurda realização do evento deslocado às pressas para solo brasileiro, com a participação de dez seleções e um número indefinido de possíveis variantes do vírus, corre o risco de ter apenas um torcedor desvairado —Jair Bolsonaro. Além,é claro, da quadrilha de sempre — a CBF. O presidente apostou forte no poder anestesiante de uma bola rolando em estádios, com um possível triunfo da seleção canarinho.

Errou feio.

Cinquenta e um anos atrás, outro capitão, o jogador Carlos Alberto, tornara o Brasil o primeiro tricampeão do mundo ao marcar o último gol do histórico 4 a 1 contra a Itália, no México. Naquele junho de 1970, vivia-se aqui a fase mais repressiva da ditadura militar, mas a pátria dos “90 milhões em ação” comemorou como se não houvesse o amanhã da tortura, dos mortos e desaparecidos, do aniquilamento da vida nacional. Naqueles anos sombrios, venceu o “Ame-o ou deixe-o”.

Desta vez, será diferente: essa Copa bolsonarista tem tudo para dar errado. O enjeitado torneio, expelido da Colômbia e da Argentina por motivos diferentes, fará pouso arriscado num país que se arrasta em 79º lugar entre 180 países no ranking mundial de vacinados com duas doses. Somada à notícia de que vários convocados da seleção canarinho, atuantes em times europeus, poderão até desistir de jogar —seja por pressão, precaução ou convicção —, deve ter acendido alerta brabo nos organizadores. Mesmo que o evento seja disputado nos quatro estados acordados, a possibilidade de um desempenho pífio do Brasil agravará o efeito político bumerangue da coisa.

A propensão de Bolsonaro por gerar crises e planejar estultices é deliberada, fruto de sua insegurança conspiratória na Presidência. Impregnado de estratagemas usados à exaustão por Donald Trump, o primeiro presidente dos Estados Unidos a utilizar a expressão “meus generais” e a tentar um autogolpe para manter-se no poder apesar de derrotado nas eleições, o capitão no Planalto já quase oficializou sua estratégia para 2022, caso saia surrado nas urnas: simplesmente invalidar o resultado, convencer seus apoiadores de que houve fraude e convocá-los a mantê-lo no poder somando o uso da força ao caos nacional.

Convém não esquecer que, embora o assalto ao Congresso promovido por Trump não tenha conseguido impedir a posse de Joe Biden em 2021, a ala majoritária do Partido Republicano sustenta até hoje que o processo eleitoral foi fraudado e promete troco nas próximas eleições legislativas (2022) e presidenciais (2024). As conspirações para abalar a democracia nos Estados Unidos são bem financiadas, persistentes e alarmantes. Felizmente, nem todas chegam ao desvario do general da reserva Michael Flynn. Semanas atrás, o ex-assessor de Segurança Nacional de Trump sugeriu publicamente que as Forças Armadas dos EUA dessem um golpe de Estado semelhante ao dos militares de Mianmar, que causou perto de 800 mortes quatro meses atrás.

Tempos brabos, em resumo. Portanto, tempos de o Brasil encarar o pesadelo nacional de olhos bem abertos.

Escárnio, caos e retrocesso

Que o presidente Jair Bolsonaro não tem qualquer apreço por regras, normas, leis é algo sabido. Há mais de 30 anos, a indisciplina colocou fim à sua curta carreira militar lançando-o nos lucrativos braços da política do baixo clero, para a qual carreou a sua prole. De mau militar no passado se tornou um mau político e mau presidente, que insiste em dar maus exemplos.

A obsessão de Bolsonaro em romper regras beira o vício. Por vezes, desfila de motocicleta sem usar capacete, como fez no Acre, carregando o empresário Luciano Hang, e em Rondônia, com o ministro Tarcísio de Freitas na garupa, ambos também sem a proteção obrigatória. Tudo sob os olhos passivos da Polícia Rodoviária. Fanfarrão e sorridente, zomba dos mais de 470 mil mortos pela Covid-19 – de suas famílias e dos exauridos profissionais de saúde que se empenham pela vida – ao expor nas redes sociais vídeos de suas aglomerações, sem máscara, desafiando as normas sanitárias. Prega remédios milagrosos, inventa estatísticas, mente compulsivamente.


É tão avesso às normas que chegou ao absurdo de afrontar as estruturas de seu próprio governo ao estabelecer um gabinete paralelo para tocar os procedimentos de combate à pandemia, todos na contramão da ciência. No vídeo divulgado pelo Metrópoles de uma reunião de Bolsonaro com “conselheiros”, entre eles o deputado Osmar Terra, o mesmo que dizia que a Covid-19 faria menos vítimas do que a H1N1, e a imunologista Nise Yamaguchi, árdua defensora da hidroxicloroquina, o virologista Paolo Zanotto defende, sem qualquer constrangimento, a formação de um shadow cabinet (gabinete da sombra, literalmente).

O nome, importado do Reino Unido, refere-se à prática da oposição de juntar um time para fazer frente ao programa e ações do governo da vez, o que torna surreal uma formação semelhante patrocinada por quem está no poder. A iniciativa bolsonarista só se explica para fugir da publicidade, do Diário Oficial, da obrigação legal de transparência nos atos públicos.

Mas a consagração do desrespeito às regras foi o episódio da não punição do general Eduardo Pazuello, com quem Bolsonaro dividiu palanque no Rio de Janeiro depois de uma motosseata em que usou capacete e, mais uma vez, dispensou a máscara. O presidente premiou a transgressão do ex-ministro da Saúde nomeando-o para um cargo no Planalto, ao seu lado, deixando claríssimo que não aceitaria que ele recebesse nem mesmo um leve puxão de orelha. Foi atendido com a perigosa quebra do regulamento militar, expresso em lei de 2002, baliza da hierarquia e da disciplina.

Ao fazê-lo, o general Paulo Sérgio Nogueira também infringiu o código por “deixar de exercer autoridade compatível com seu posto ou graduação” – item quatro dos 113 expressos na relação de transgressões passíveis de punição. Mais do que se anular como comandante, deixou o Exército de cócoras diante de um presidente que da boca para fora tece loas às Forças Armadas, mas que por elas não nutre respeito algum. Quer apenas manipulá-las a seu bel prazer.

A falação contra as leis faz parte da história de Bolsonaro. Rendeu-lhe votos e continua sendo a chave para assegurar seguidores fiéis. Deputado, notabilizou-se como apologista da tortura. Cuspia na Lei da Anistia, aplaudia o pau-de-arara, a morte de comunistas – o eterno inimigo imaginário -, agradando à minoria carpideira, saudosa dos anos de chumbo.

Presidente, passou a operar cotidianamente para derrotar a legalidade e sujeitar o Estado às suas vontades. E já antecipou que sem voto impresso vai mandar às favas a legislação eleitoral, negando-se a aceitar o resultado das urnas diante de uma eventual – e provável – derrota em 2022. Recentemente, passou a alardear um falso respeito às “quatro linhas da Constituição”, divertindo-se com reiteradas ameaças de romper esse limite, descaradamente em nome do “poder do nosso povo”.

Bolsonaro se lixa para as instituições ou para as quatro linhas que tanto cita. Faz de tudo para detoná-las. Ao mesmo povo que prometia “respeitar” e fazer valer o lema “ordem e progresso”, entrega escárnio, caos e retrocesso.

Zé Bozo e Zé Ninguém

O psicanalista Wilhelm Reich acabou expulso do Partido Comunista alemão depois de publicar seu “Psicologia de massas do fascismo”. Entre outros, o conteúdo desagradara aos soviéticos. O ano era 1933, Hitler chegara ao poder, e Mussolini já realizava suas “motociatas” por cidades italianas. Ambos estimulavam a violência como arma política — ganham o poder pelo incentivo ao ódio, disseminação do medo e construção de fake news. Como Lênin.

A tese de Reich: os fascistas (e nazistas) chegaram ao poder como sintoma da repressão sexual que, praticada desde a infância, leva os adultos a abraçar o autoritarismo. Castrados em seus desejos, reprimirão quem possui outro comportamento, mais libertário. O reprimido precisa da ordem unida para acalmar sua ansiedade, fruto de suas vontades abortadas. Daí clamarem sempre por uma ditadura e darem pouco valor à vida (com a camisa da CBF).

Os cristãos adjetivam aqueles que vivem diferentes de seus conceitos como “pecadores”. Os fascistas, como “comunistas” e “depravados”. Os comunistas classificam seus opostos como… “fascistas”. Não à toa, o pobre Reich foge das tropas nazistas para a Noruega e depois se estabelece nos Estados Unidos, onde é encarcerado por suas ideias (como as narradas acima). Em 1954, o juiz ordena que seus livros sejam destruídos. Em plena Guerra Fria, ele conseguiu desagradar a russos e americanos.


'O Zé Ninguém, que é povo, odeia o povo'

Pena que o Bozo (e o Heleno) vivam afastados dos livros. Saberiam que, décadas atrás, eles e seus seguidores foram catalogados por Wilhelm Reich noutro clássico: “Escuta, Zé Ninguém”. A obra também desagradou ao Malafaia da época (1948) e acabou censurada em muitos países. O Zé Ninguém é o sujeito médio, do bom senso, medianamente inculto; poderia ser o homem comum; é ainda o sujeito que, tudo bem, pode se privar da liberdade e até de ter opinião própria, desde que possa imprimir sua frustração sobre os demais. É também o cara nomeado com pequenos poderes. Frustrado fundamentalista, oprime os amigos e obedece aos inimigos. Se chegou ao poder para salvar o povo, massacrará esse povo. Porque não tem empatia — e daí?

Dá pouco valor à existência, porque afinal a vida terrena é um inferno e, como garantiu o Malafaia de sempre, depois da tempestade vem a bonança ou o paraíso. Com adiantamento de dízimos.

A ascensão do Bozo ajudou a destampar a garrafa onde adormecia o espírito do Zé Ninguém. Perseguido pelo medo da falência sexual, o Zé Ninguém busca apoio (conforto) no confronto, no preconceito ou na encrenca. Também nos meios capazes de escamotear seu medo, como armas, fardas (mesmo que seja a de zelador) e máquinas velozes.

Pipocam diariamente exemplos de pequenos ditadores, aqueles munidos de uma autoridade restrita, porém capaz de azucrinar os demais. Desde o policial que prende o motorista com o carro adesivado em protesto contra as atrocidades do Bozo a outro mané, que processa o cidadão por externar num outdoor sua indignação com a falta de vacina. Alguém aí mentiu? Temos também os senadores da CPI da Covid, machos-alfa diante das mulheres, mas soltando miados fininhos diante do general Pazuello. Covardia.

Ou ainda se esconde na farda de soldadinho para dar os tiros assassinos em Recife contra manifestantes desarmados e pacíficos. Que pediam vacina! Ah, comunistas! De novo: o Zé Ninguém, que é povo, odeia o povo. Tem ódio de seu espelho, em especial quando não reza pelo mesmo credo.

Os sinais emitidos diariamente pelo Zé Bozo servem de guia a seus seguidores. A violência, movida por ressentimentos e frustrações, ocorre imitando a história. Foi assim sob Stálin (gente que entregava o vizinho para roubar sua casa), foi assim sob Hitler (deduragem por inveja pequena).

É onde entra em cena um ogro no papel de diretor da Fundação Palmares. Qual soldado descerebrado, vomita todo o ódio emanado pela chefia contra negros, esquerdistas e pessoas de talento. Pinçado no RH das redes sociais, exerce seu pequeno poder contra quem já é história em vida, como Gilberto Gil ou Martinho da Vila. É um ignorante pago com dinheiro público para tentar destruir aquilo já consagrado pelo público. Mussolini tentou algo igual e acabou no poste. De ponta-cabeça em praça pública.