segunda-feira, 7 de junho de 2021

Vinte e uma dicas para deter o fim do mundo

Na última segunda-feira, comecei o dia espalhando, em rede social, dicas para a semana que se iniciava. Repito-as aqui sem saber se são valiosas, ainda que, imodestamente, creia que, mil vezes repetidas, elas nos auxiliariam a deter este momento assemelhado ao fim do mundo, senão o próprio.

Divida as tarefas domésticas / Manifeste-se contra o governo / Beba, se for o caso, mas não deixe de orar / Ore, se for o caso, mas não deixe de beber / Troque uma ideia com amigos / Ouça música. Leia. Cante. Dance / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Tenha saudades / Procure se informar. Desconfie de tudo / Agradeça a vacina tomada / Se prepare para tomar a vacina / Não se conforme com tantas mortes / Olhe para o Jacarezinho. Cobre justiça / Olhe para as aldeias indígenas. Cobre justiça / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Mande uma gracinha pelo ZAP / Confronte fake news / Faça planos / Chore / Ria / Olhe bem para os lados, não esteja sozinho.


À beira da autoajuda, as dicas beliscam temas que me mobilizam e misturam aquelas claramente políticas com as apenas afetuosas. Sabendo-se que o afeto, e isso está tão claro hoje, é mais político que muito grito de guerra, minhas dicas — com destaque para “divida as tarefas domésticas” — são absolutamente políticas e absolutamente afetuosas.

Escrevi as vinte e uma ações instigado, de um lado, pelas derrotas quase diárias, representadas pelas chacinas do Jacarezinho e de muitas aldeias indígenas: dois exemplos tirados de uma lista que, no dia 29 de maio, quando os descontentes com o governo tomamos a rua (não fui, mas, como acumulo crédito em protestos e passeatas, é como tivesse ido), foi acrescida por um ataque covarde da polícia pernambucana contra a população. Daniel Campelo da Silva e Jonas Correia de França, que nem estavam no protesto, perderam parte da visão depois de levarem tiros de bala de borracha. De outro lado, o impulso veio do brilho saído das ruas cheias e inconformadas. Escrevi, portanto, a partir de um lamento e de uma esperança. Olhemos para os lados e não estejamos sozinhos — não estamos!

A extrema direita, essa cobra por muito tempo escondida e alimentada pela própria fome, voltou ao poder com o intuito único e claro de desinventar o Brasil, o Brasil cordial. Digo cordial não no sentido de ser habitado exclusiva ou majoritariamente por pessoas afáveis e sinceras, mas sim por abrigar o povo que inventou o drible e que, se não o inventou, aperfeiçoou a gambiarra. Povo que, do trauma da escravidão e agarrado à ancestralidade africana, fez surgir o samba, nossa trilha da alegria, da congratulação, “o pai do prazer” e “o filho da dor”, nas palavras de Gil e Caetano. Cordial porque age de coração.

A direita quer acabar com os atravessamentos entre o antigo (e até o conservador) e o moderno que marcam este país em permanente exercício de autoconhecimento. Vandré e sua Disparada. O Lamento Sertanejo, de Gil e Dominguinhos. Os Mutantes cantando Dois mil e um, de Rita Lee e Tom Zé. Os irmãos Pena Branca e Xavantinho, crias do Brasil Central, rural, boiadeiro, acaipirando Cio da Terra, de Milton e Chico. Bethânia levando Evidências para além do que é. Emicida absorvendo Belchior. Todas essas experiências são o resultado de diálogos entre o centro e a periferia, entre o rural e o urbano, entre o interior e as capitais, entre a costa oceânica e os sertões e as florestas, entre o negro e o branco, entre distintas gerações, portanto diálogos feitos também ou principalmente de embates. O Brasil, bem ou mal, foi se construindo a partir dessas contradições que agora querem dizer que não existem, querem proibi-las de dar norte ao país.

A direita no comando não tem um projeto neoliberal claro, nesse ponto ela enfrenta suas contendas internas, mas, não resta dúvida, tem um projeto coerente de, agarrado às batidas agendas conservadoras, impor um poder que não é civil, também não é militar, é miliciano. As milícias nasceram oferecendo, mediante pagamento e de forma chantagista, “segurança” aos desassistidos (no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense). Aonde a lei não chegava, as milícias agiam como se zelassem por ela. Lorota. Na verdade, reescreviam as leis e encarceravam — expandindo os serviços já oferecidos, que passaram a contar com o gatonet, a venda monopólica do gás etc. — primeiro os seus protegidos e, depois, todos os moradores dos territórios sob sua influência.

É nessa esquina que estamos. Se não reagirmos, de 500 mil mortos por Covid-19, saltaremos para um milhão. A esse um milhão, acrescentaremos outro milhão de mortos por perseguição e balas perdidas. E mais não sei quantos milhões vitimados pela fome. É hora de trazer o poder para o campo civilizatório, tomá-lo de volta desse projeto de destruição. Depois, bem, depois a gente retoma as velhas questões. Uma retomada que, embora anteponha projetos distintos, quiçá incompatíveis, garanta a alternância no poder e o estabelecimento de um consenso duradouro, qual seja, o de que situação e oposição agirão sempre respeitando a democracia.

Bebendo sem deixar de orar e orando sem deixar de beber, nos concentremos na luta civilizatória e resgatemos o Brasil da mão dos facínoras.

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